CCXP: dias do Orgulho Nerd
Pequena multidão aguardando a abertura dos portões em 2019 | Divulgação: CCXP
Nas redações, há um termo conhecido como jornalismo gonzo. Apesar de sempre pensar no simpático personagem do Muppet Show, isso significa, resumidamente, o ato de se envolver como personagem em uma reportagem. Coisa que era muito bem executada pelo repórter Goulart de Andrade em seu Comando da Madrugada.
Rebatizado por ele como pele do lobo, consistia viver durante um período sob a ótica do assunto principal. Se fosse falar sobre uma plataforma de petróleo, por exemplo, passava os dias ali, fazendo as funções dos trabalhadores. Se fosse falar sobre cemitérios, passava toda a reportagem fazendo o trabalho do coveiro. E por aí vai.
Toda essa introdução para dizer que algumas vezes tomei a liberdade de fazer a pele do lobo, porém do jeito mais divertido possível. Na metade da década de 2010, já cobrindo variedades, tive o prazer de cobrir as Comic-Cons nacionais, entre elas a extinta Brasil Comic-Con e a Comic-Con Experience (a popular CCXP).
Sim, como diria um material publicitário da Turma da Mônica nesta última, “somos todos nerds”. E admito que vibrei quando soube da ideia de se fazer uma comic-com brasileira, lá em 2014. Na verdade, duas!
Há muito tempo atrás, numa galáxia muito distante…
A primeira seria a Brasil Comic-Con, criada pelos mesmos organizadores da Anime Friends, especializada nos animes e cultura oriental, em meados do ano. Sequer pestanejei e garanti meu ingresso. Em seguida pensei na ideia de “vender a pauta” para o jornal onde trabalhava.
Bem, posso dizer que o editor, bastante tradicionalista, não botou fé. Mas sou um bocado irritante e persistente quando quero. Seria num domingo, e mesmo achando que eu daria com os burros n’água, concordou.
Conhecia por reportagens o funcionamento de uma Comic-Con. Já havia visto muita coisa da SDCC, de San Diego, e outras. Esperava algo grandioso. E aqui entra minha ideia de pele do lobo (ou se preferir, o jornalismo gonzo). Fiz o papel de fã, deixei meu perfil de jornalista na bolsa durante o evento.
“Eu vou lutar por todos aqueles que não podem lutar por eles mesmos.”
O editor-chefe não estava errado. A impressão que tive é que a Brasil Comic-Con, BCC para os íntimos, fora montada às pressas. O centro de convenções escolhido era uma antiga fábrica de barcos, na Zona Norte de São Paulo. Havia sido convertido num belo prédio, mas tudo cheirava a novo, e faltando algo.
Ainda assim, modesta, a BCC trazia uma bela variedade de atrações. Muitos estandes vendendo todo tipo de memorabilia, boa parte organizado por fã-clubes. Tínhamos Star Wars, Star Trek, Harry Potter… acompanhei uma palestra interessantíssima de um legítimo Mestre Construtor da Lego, outra de Sylvester McCoy (um dos atores que personificou o Doutor na série britânica Doctor Who, além do mago Radagast na franquia O Senhor dos Anéis). Ah, e experimentei pela primeira (e se Deus quiser, última) vez a tal Cerveja Amanteigada, iguaria preferida de nove entre dez jovens bruxos de Hogwarts.
Na parte da tarde, dancei temas musicais de séries e desenhos animados interpretados pela Família Lima, conheci o cantor brasileiro Ricardo Cruz (especializado em temas de animes e tokusatsus) e de quebra ainda cumprimentei pessoalmente o ator Takumi Tsutsui, que protagonizou a série Jiraya, o Incrível Ninja, febre entre a molecada do final dos anos 1980.
Em resumo, me diverti e não foi pouco.
“Faça elevar o cosmo no seu coração”
Voltando para Santa Catarina, escrevi freneticamente a reportagem. Que não interessou a ninguém. Profissionalmente, perdi a viagem. Mas a Clarissa nerd já estava em alerta máximo. Não queria nem saber, e nem busquei patrocínio do jornal para a próxima Comic-Con: a primeira CCXP, que estava marcada para dezembro do mesmo ano, iniciativa do site Omelete e do estúdio Chiaroscuro.
Bom, nem meu ex-marido me levou a sério. Não só não quis me acompanhar como tentou me demover, dizendo que era imbecilidade da minha parte. Fiquei ofendida. Comprei ingresso para o último dia da exposição e embarquei num ônibus na véspera.
A primeira CCXP já primou pela organização. Não se comparava em quase nada à BCC. Mas tive uma decepção: apesar de toda a superprodução, faltava alma para o evento.
Talvez por falta de prática com o público, esta primeira edição era fria, ao contrário da BCC. Haviam estandes das maiores companhias do mercado do entretenimento e estúdios internacionais… e ainda assim, a diversão de uma Comic-Con parecia ter ficado de fora. Um Salão do Automóvel ou a tradicional feira das Utilidades Domésticas tinha mais vida.
Não escrevi nada sobre isso profissionalmente, mas fiz uma bela carta para a organização. Ok, já tinha eu passado dos quarenta, tecnicamente nem era o público alvo, mas descasquei tudo o que queria falar. E sei que não fui a única.
“Você já ouviu falar na Iniciativa Vingadores?”
Pelo jeito, deu certo. Porque as próximas edições da CCXP mudaram da água para o vinho. Sim, eu tenho o bicho da nerdice (se acompanham meus artigos, já viram dizer que enquanto minhas amigas liam Carícia eu lia O Cavaleiro das Trevas) e vim em todas as edições seguintes.
Tive momentos incríveis, sempre no esquema eu-comigo. Assisti palestra do Frank Miller (claro!), fiz perguntas para David Tennant, mergulhei na mega-piscina de bolinhas de Procurando Dory (quase quebrando um dente ao colidir com uma outra criança da minha idade), vi as maravilhosas armaduras em tamanho real dos Cavaleiros do Zodíaco, entrei numa fila para pegar um autógrafo de Maurício de Sousa, usei uma tiara com as orelhas do coelho da Mônica, vi Gal Gadot falando sobre Mulher Maravilha, apertei a mão do Ota (Otacílio D’Assunção Barros), lendário editor da revista Mad, e tive a oportunidade de conhecer o não menos lendário cartunista Neal Adams, ambos que nos deixaram recentemente.
E principalmente comprei muita, mas muita, muita coisa mesmo. Enchi meu apartamento de bugigangas. Nas mudanças que fiz depois, foram alguns dos materiais que transportei com mais cuidado e carinho.
“O ouro não é tudo. Também existem diamantes.”
Aqui deixo um pouco meu momento pele do lobo. Essa parte das lembrancinhas é o que move o mercado da CCXP. E que mercado! Segundo informações dos organizadores, a primeira edição em 2014 recebeu 97 mil visitantes. Na última edição física, em 2019, 280 mil visitantes estiveram por lá (lembre-se, tivemos uma pandemia que atrapalhou as coisas).
Somando-se as seis edições, mais de 1 milhão de pessoas frequentaram o pavilhão do São Paulo Expo. Em 2014, o evento ocupou 40 mil m2. Desde 2017, o espaço é ocupado em sua totalidade, em 115 mil m2. Isso a credencia como a maior feira do gênero no planeta, maior até que a tradicional SDCC de San Diego.
Os espaços para estandes e patrocinadores passaram a ser disputados à tapa. O período escolhido para a realização da CCXP também foi estratégico: dezembro. O evento foca um público com certo poder aquisitivo, vitaminado pelo 13º salário. E sejamos honestos, pra quem gosta, é quase impossível não sair de lá com algumas comprinhas.
“É uma dimensão tão vasta quanto o espaço, e tão atemporal quanto o infinito.”
A grande sacada dos organizadores foi entender o ecossistema nerd. Além de toda a multidão que vai até o pavilhão, a CCXP movimenta, e muito, o complexo hoteleiro de São Paulo e do Grande ABC; todo o setor de transportes, em vários modais. A feira hoje em dia influencia o movimento dos sistemas rodoviários e também dos aeroportos da Capital paulista.
O setor gastronômico também faz a festa, além dos restaurantes que se instalam nas gigantes praças de alimentação do evento; shopping centers, cinemas, livrarias, teatros, muita gente é beneficiada na semana onde ocorre a CCXP, geralmente entre quinta-feira e domingo da primeira semana de dezembro.
Em 2020 e 2021, para que a marca não fosse esquecida, o evento se tornou virtual, rebatizado “CCXP Worlds”. Não poderia ser diferente, pois a aglomeração humana seria um prato cheio para a Covid-19. Mesmo assim, os números são bem impressionantes: em três dias, a versão de 2021 trouxe 250 lives simultâneas, pico de 350 mil usuários conectados, 30 milhões de visualizações em streaming, assistida em 139 países.
“O quê? Eu, me preocupar?”
Agora, em 2022, é prometida a “maior de todos os tempos”. Foi aberta uma primeira venda em outubro de 2021, cujos ingressos se esgotaram rapidamente. Em 5 de maio, um novo lote de ingressos foi colocado à venda: em quatro horas, os ingressos combo para os quatro dias e o full experience (um tipo all inclusive de ticket) esgotaram-se.
Muito espertamente, a tia nerd aqui garantiu o seu, para o último dia. Não devo ir profissionalmente. Mas agora com uma diferença importante: acompanhada do marido e sobrinhos. Porque nerdice aqui é coisa de família.
Eu volto!
Este artigo foi escrito por Clarissa Blümen Dias e publicado originalmente em Prensa.li.