Censor: o último bastião da moral
Foto por Michael Dziedzic do Unsplash
Bastião da moral. Guardião dos costumes. Era provavelmente assim que se sentiam os figurões encarregados de garantir a moralidade pública na Roma antiga, desde quase 800 anos antes de Cristo. Os tais de Censores, que deram origem a um conceito que vimos na pratica bem de perto num Brasil sombrio: a censura.
Avançando para 2022, vimos a censura tomar diversas formas, e agir em inúmeras situações, mas a que mais tem me chamado atenção é uma de suas ocorrências mais recentes. A forma como o mundo vem respondendo às informações relacionadas ao conflito ou guerra na Ucrânia.
A menos que você tenha andado numa caverna, já sabe a essa altura que a Rússia começou uma ofensiva militar sobre a Ucrânia há quase 20 dias. As razões para isso são inúmeras, dependendo da perspectiva aplicada. E teorias novas não param de surgir.
E apesar de muita incerteza sobre o desfecho de toda situação, uma coisa já é mais que certa: está doendo em muita gente. De diversas maneiras.
A ONU estima que 2 milhões de Ucranianos já tenham deixado suas vidas para trás, procurando abrigo em algum país vizinho. Ao mesmo tempo, vamos para a segunda semana seguida sem abertura da Bolsa de Moscou. Some a isso a lista de marcas e empresas multinacionais que encerraram seus negócios com a Rússia, que já passa de meia centena.
Assim como os refugiados deixando suas casas, empregos e carreiras, o que será da população afetada por tais sanções? Quais são os planos para mitigar os impactos gerados por tais decisões? Para onde podem migrar os russos também assustados com o que se passa em seu país? Longe dos tiros e bombas, claro, mas também fortemente afetados.
Exponho esses pontos até aqui não para defender um lado ou outro, mas sim para mostrar como o conflito que vemos é muito mais profundo e complexo do que perfis de fofoca no twitter e até a grande mídia brasileira e mundial querem fazer parecer.
Há muito a se entender e explicar. Há muito a se considerar. E o pior, tudo está acontecendo muito rápido e bem na frente dos nossos olhos.
Esse é um conflito televisionado e conectado como nunca visto antes. E não só a grande mídia está lá dessa vez, com suas câmeras e coletes azuis. O pessoal da dancinha do tik-tok está agora transmitindo as explosões de sua janela. Alguns inclusive recebendo treinamento para isso. As stories no instagram mostram deslocamento de tropas. E os fios do twitter atualizam os fatos em tempo real, anos luz à frente do que as tvs e jornais podem fazer.
Para uma guerra isso não é novidade, mas devemos ressaltar que esse conflito é, acima de tudo, uma guerra de informação.
Narrativas completamente diferentes são vendidas e espalhadas por um lado e pelo outro. E ainda assim pessoas se deixam levar pela emoção e tomam partido antes mesmo de entender o todo.
Empresas se precipitam e tomam decisões com impactos incalculáveis por suas proporções. E novamente pessoas são levadas pela maré de senso comum e se vêem forçadas a cancelarem o strogonoff de seus restaurantes, em protesto e repúdio ao conflito. Por mais que isso seja tão eficaz quanto pintar as unhas de branco para protestar contra a violência no Brasil.
Um dos casos mais intrigantes foi a liberação dos posts no Facebook e do Instagram com conteúdo ofensivo e "linguagem de ódio" contra a Rússia e seus mandatários (leia-se: não vão deletar nada de ninguém se você gritar "morte aos russos"). Além do banimento dos veículos de comunicação russos das principais redes.
O que já era complicado antes, fica ainda mais agora, já que mais que nunca nos vemos expostos a um lado só dos fatos. E somos obrigados a aceitá-los como verdade.
De onde venho, isso tem um nome. Censura.
Censura é por definição (segundo o Michaelis): "Exame de trabalhos artísticos ou de material de caráter informativo, a fim de filtrar e proibir o que é inconveniente, do ponto de vista ideológico ou moral."
Considerando a complexidade da situação, conferi também em outras línguas, como em inglês, francês, russo e ucraniano para ter certeza que culturas diferentes enxergam censura do mesmo modo. E o resultado é unânime: alguém com o poder de te dizer o que se deve ou não ver, ler, ouvir e pensar.
Isso nos leva a uma pergunta diretamente relacionada ao título desse artigo. Quem foi que garantiu ao ocidente a condição de guardião da moral? E que moral exatamente seria essa? Porque até onde sei, bombardear outros países não é exclusividade russa.
Da mesma forma, quem foi que decidiu que as big techs deveriam assumir esse papel também?
E notem as dimensões! A primeira pergunta se tratam de Estados. A segunda de empresas! Ambos cumprindo o mesmo papel.
E é importante ressaltar que aqui não falamos apenas de fake news, com avisos alertando o perigo de se ler uma notícia falsa, mas sim o total bloqueio de mensagens vindas de um único país. Isolamento é a palavra mais certa.
O assunto é tão sério que dia 12 de Março foi escolhido como o "Dia mundial contra a censura na internet". Começou em 2008 com os Repórteres Sem Fronteiras, tentando levar informação a lugares onde os governos a proibiam. Países como Arabia Saudita, México, Rússia (veja só!) e Vietnam. Mais recentemente, o Brasil foi incluído na lista. A maior conquista do grupo de jornalistas até hoje foi a biblioteca criada no Minecraft (sim, o jogo) disponibilizando conteúdo censurado aos cidadãos desses paises.
Não sou cientista político, historiador ou coisa que o valha para dizer que minha opinião sobre o assunto tem valor especial. Mas enquanto profissional de tecnologia, me sinto no dever de levantar questionamentos ao ver as proporções que tem ganhado o poder dos serviços que ajudamos a criar e que tantos usam diariamente.
E já aviso que não trago respostas. Não ousaria me precipitar nesse momento tão estranho e delicado que vivemos. Sobre tudo, como já dito até então, tenho somente mais perguntas.
É imoral uma pessoa ou país tentar defender seu ponto de vista?
É imoral num conflito ou guerra tentar ouvir todos os envolvidos?
Tudo o que sabemos é que o propósito da censura está na manutenção das cadeias de poder. Ela existe para que as coisas continuem como estão. O que nos leva a mais perguntas:
A quem interessa essa manutenção?
O que poderia haver do outro lado dessa moeda que não querem nos mostrar?
Como poderemos saber enquanto vivermos num mundo onde o debate de ideias e narrativas não é verdadeiramente possível, senão através de disputas de força e guerra?
A cultura ocidental se vangloria de sua democracia, "por ser civilizada". Mas a democracia é o governo do povo. E quantas vezes esse mesmo povo já foi consultado antes de um país se lançar num confronto?
Toda essa situação evidencia a hipocrisia vivida pela sociedade ocidental, e pelas outras que nela se espelham, como o Brasil.
Falamos de liberdade. De imprensa e expressão. Mas até que ponto?
Falamos de causas humanitárias, nos sensibilizamos com a guerra. Mas só se as vítimas forem brancas e o conflito passar na tv.
Dizemos defender uma sociedade justa e democrática, mas nos calamos ao apontarem um inimigo. E concordamos em despir nosso alvo de qualquer direito ao contraditório. Como confiar em instituições e sociedades que se pautam por esse tipo de conduta?
É fácil entender quem é o inimigo quando se tem uma arma apontada e atiram contra você. E é mais facil ainda que você o odeie exatamente por isso. Mas tudo fica mais nebuloso quando alguém tenta te controlar com uma falsa narrativa. Uma farsa. E é muito provável que você odeie esse outro tipo de inimigo ainda mais que o anterior, afinal, é muito mais difícil lutar contra alguém quando o chamamos de aliado.
Finalizo essas reflexões com uma frase que vi escrita no fundo da mente:
Armas falam quando diálogos falham.
E até agora, todas as palavras fracassaram.
Torçamos todos para que as coisas tomem outros rumos.
Este artigo foi escrito por Flavio Lee Budoia e publicado originalmente em Prensa.li.