Charles Darwin: a origem
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A tal cauda longa da internet parece se refestelar nos podcasts. Se a temática não está atrelada ao factual - como é o caso do excelente Café da Manhã - o delay dificilmente será um empecilho para que bons programas continuem vivos e ao dispor de nossos interesses do momento.
É o caso do Vinte Mil Léguas, que trata da junção entre a ciência e a literatura. Nada mais adequado, uma vez que é um podcast da revista 451 em parceria com a livraria Megafauna, e conta com apoio do Instituto Serrapilheira, de fomento à divulgação científica brasileira.
Apresentado por Leda Cartum e Sofia Nestrovski, com esmerado roteiro de Fernanda Diamant e trilha sonora original marcante de Fred Ferreira, o Vinte Mil Léguas já entreabre a porta de nosso imaginário ao pegar emprestado o título de uma obra clássica de Julio Verne. E a primeira temporada é de se achegar no sofá pra ouvirmos a história: cobre a vida de Charles Darwin, desde seus iniciantes interesses por biologia até a publicação de “A origem das espécies”, sua obra definidora.
Navegar foi preciso, escrever também
Já de cara, o título de seu primeiro episódio é um carinho na curiosidade do ouvinte - “Um navio com nome de cachorro”. Por mais que saibamos que o jovem Darwin embarcou pelo mundo a bordo do Beagle, o gracejo é uma amostra do que está por vir. No desafio de narrar não apenas a biografia do cientista como explicar sua obra, o podcast ainda consegue correlacionar as duas coisas, e do modo o mais leve possível pra tamanha missão.
Há uma sensação constante de ser um observador privilegiado das reações de Darwin e de seus contemporâneos diante dos achados, confirmações e dúvidas da jornada. A locução por vezes repete trechos, empatizando com o ouvinte que, na maioria dos casos, dificilmente será um iniciado no tema (ao menos para além dos conhecimentos gerais e/ou escolares). Porém a trajetória encontrada pela roteirista, com o apoio dos produtores, dificilmente desagrada os entendidos.
E o personagem pra começar a temporada não poderia ser mais ideal. A importância histórica e o caráter divisor de águas de Charles Darwin e sua pesquisa dão o tom. Mas o cientista também escreveu. Seus diários são um prato cheio para o Vinte Mil Léguas, uma ajuda dada pelo próprio homenageado, que sempre buscou se dirigir ao público leigo sublinhando o entusiasmo pelos seres do planeta e suas vivências. O podcast faz de tudo - e entrega bastante - para reproduzir esse clima.
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Indiana Jones e um clube de leitura anabolizado
Se os relatos biográficos (não apenas de Darwin e seus familiares, como de sua parentela e de seus companheiros de profissão e viagem) já humanizam os feitos, a abordagem dos registros são feitos de forma a incentivar leitores antigos e novos.
Após cada episódio é gerada uma certa ansiedade pra saber o que vai acontecer nos próximos passos da aventura de Charles Darwin - vários deles no Brasil. Mas principalmente no sprint final da temporada, ao abordar o processo de escrita e o contexto da publicação de “A origem das espécies” o podcast abre de vez o gosto pra se ler a obra maestra do inglês.
Isso porque nós só “chegamos” no livro depois de acompanhar todo o esforço de Darwin para poder produzi-lo. A sensação é de que Indiana Jones se aposentou e resolveu escrever suas memórias futuras. Sim, futuras, pois se “A origem das espécies” trata de como as espécies foram se desenvolvendo pelo compasso dos tempos, é um livro que aponta nosso presente passageiro e para o futuro que nos espera. Entendemos perfeitamente como e por que Darwin chegou àquelas conclusões. Méritos para a proposta - e para a equipe - do podcast.
Ponto pra ciência - e esperamos que os cientistas entendam
Uma grande contribuição do Vinte Mil Léguas é demonstrar como é possível falar da ciência e de sua importância praticamente descartando a linguagem técnica, a fim de reforçar o interesse no tema. O que não chega a ser novidade para o jornalismo da área em todas as suas vertentes (televisiva, impressa, radiofônica etc). Contudo o potencial que um podcast narrativo apresenta, ainda mais na era dos streamings sob demanda, parece multiplicar as possibilidades.
Cada descoberta científica possui uma trilha de pesquisa que, mesmo o pesquisador não sendo um Charles Darwin, pode ser contada de forma a revelar para além das revistas especializadas e do reduto acadêmico. Talvez a forma de fazer a sociedade redescobrir a importância da ciência tenha mais a ver com um “vem cá pra eu te contar um troço” do que com a arrogância dos doutores.
Este artigo foi escrito por Marcos André Lessa e publicado originalmente em Prensa.li.