Ciência x Negacionismo, o poder da divulgação
“Curiosidade é uma qualidade inata de muitas espécies animais. Na espécie humana, têm sido a mola mestra de boa parte dos avanços científicos desde a idade da pedra.” Talvez seja razoável imaginar que, também desde a Idade da Pedra, o embate Ciência x Negacionismo atravanque o desenvolvimento do cérebro humano.
A frase que inicia este artigo é de Raimundo Alberto Tostes e está em seu artigo “A importância da divulgação científica”. Ao longo de todo ele, o autor expõe clara crítica à atenção que os governos brasileiros têm oferecido à Ciência. A partir disso, a mente dos cidadãos "pensantes" e socialmente responsáveis não deixa de lembrar que o atual incentiva negacionismo.
A enxurrada de mentiras que expõe o caráter obscurantista das sociedades atuais em relação à Ciência é alarmante. Mais que isso, é destrutiva, é trágica, é catastrófica. Capítulos abaixo neste artigo mostram esse caráter.
Nesse cenário, este artigo se constrói sobre a ideia de a curiosidade ser inata e, por isso, precisa ser alimentada com informações consistentes e produtivas; caso contrário, o lado obscuro da mídia vai ocupar esse espaço. Afinal, o poder da divulgação não tem ética.
Ciência x Negacionismo, metáfora nojenta
A pandemia em si fez os movimentos negacionistas entrarem em evidência. Numa metáfora meio nojenta, é comparável à massa purulenta de cravos e espinhas, objeto de operação da dra. Sandra Lee. Em comparação pobre, diz-se que:
A dra. Sandra é a Ciência que trabalha contra a…
pandemia que, por sua vez, representa os males das sociedades em si cujo…
rosto (“cara” da sociedade) é pressionado; assim…
a massa fétida, que é o negacionismo, se expõe em toda sua virulência…
e contamina o ar a sua volta
No caso das intervenções da dra. Sandra, se o ambiente laboratorial não estiver bem preparado, a contaminação se alastra e aumenta o poder dos males. Por inerência, assim, o papel da Ciência é higienizar os ambientes psicológicos das sociedades para que o vírus do negacionismo não prolifere.
Ciência x negacionismo, um caso antigo
Não obstante ter sido exposto nesta mais recente pandemia - e não última, segundo novos estudos -, o embate entre Ciência e negacionismo é antigo. Não é de todo improvável que ambos tenham nascido juntos, no mesmo parto.
As primeiras menções ao conceito negacionista ocorreram na França pouco antes de 1950. Surgiram a partir de movimentos que procuravam mostrar que o holocausto não existiu, que tenha sido fruto de propaganda enganosa de políticos e humanistas inconsequentes.
Negacionismo na Revolta da Vacina
Os inúmeros conflitos ocorridos mais de um século atrás em razão da vacina no Brasil são conhecidos como “A Revolta da Vacina”. O dr. Oswaldo Cruz visava livrar o Rio de Janeiro da varíola. Entretanto, sua intenção transformou a cidade em verdadeiro campo de batalha.
Os doentes se atulhavam nas unidades sanitárias, o que fez o então jovem médico sugerir campanha de vacinação em massa. O governo da República tornou a vacina obrigatória; contudo, a lei não foi bem aceita pela população (veja as consequências disso mais abaixo).
Galileu enfrentou o negacionismo
Todos os leitores interessados em ciência e religiosidade conhecem a história de Galileu Galilei. Suas afirmações sobre o heliocentrismo foram completamente opostas ao geocentrismo pregado pelo sistema ptolomaico.
Afinal, o geocentrismo se adequava perfeitamente às ideias bíblicas. Como é sabido, a força da Igreja na época era estrondosa. Contrariá-la seria trabalho hercúleo.
Com tal forca, a Igreja tinha conseguido manter oculta a teoria heliocêntrica de Aristarco de Samos, desenvolvida ainda no século III antes desta era. Nicolau Copérnico a retomou e provou sua efetividade séculos mais tarde, nos XV e XVI. Ou seja, Galileu nem mesmo defendeu ideia original, tendo sido apenas um de seus defensores.
Entretanto, como se vê logo abaixo, o cientista não enfrentou apenas a fé popular, tendo sido obrigado a negá-la, inclusive. Interessados diversos tinham intenções dos mais diferentes matizes para negar o heliocentrismo.
Interesses escusos
Entretanto, como dito, é quase certo que o negacionismo tenha nascido assim que a própria ideia de Ciência passou a se formar. Ou seja, há milênios. Com o passar dos tempos e evolução das relações sociais, a Ciência precisou encarar o negacionismo segundo duas frentes de objetivos:
Interesses corporativistas com elos políticos
Movimentos fundamentalistas com elos religiosos
Certamente, ambas as frentes são terríveis. O caso da Revolta da Vacina mencionado acima é exemplo. A oposição ao Governo da época usou a insatisfação popular quanto à vacina para realizar plano político em interesse próprio. Pretendia impor as bases militares dos primeiros anos da República, assim derrubando o presidente Rodrigues Alves.
Mas a situação saiu de ilusório controle da oposição. O populacho causou conflitos trágicos, resultando em dezenas de mortos, mais de uma centena de feridos, milhares de deportados sociais e políticos.
Quanto a Galileu, seus impasses se deram não apenas por motivos religiosos. Havia também componentes diversos, como política e soberania de pensadores orgulhosos da época.
A matéria da BBC lembra que um dos apoios em que Galileu se baseava, o italiano Giordano Bruno, foi um visionário. Além disso, Bruno preferiu ajustar-se à burguesia revolucionária que contra-argumentava a Igreja de então e seus potentados reis e imperadores.
Nesse contexto, as ideias de Galileu contrariavam também os interesses de muitos colegas. Estes dependiam de reis, papas e outros financiadores de carreiras.
Versões de negacionismo atual
Os danos causados pelo negacionismo são incalculáveis. É possível chegar a números representativos de valores econômicos, mas é impossível chegar a algum deles que represente perda de vida.
Em especial, se forem mais de 600 mil vidas no Brasil, mais ou menos 10% das mortes no mundo.
Para a maioria dos sociólogos da atualidade, é erro importante avaliar o negacionismo como simples manifestação de opinião. Os efeitos desse movimento retrógrado vão além dos direitos individuais. Afinal, influenciam postura destrutiva de boa parte das sociedades.
Nesse contexto, é possível identificar dois grandes grupos de negacionistas:
Negacionismo ideológico
Negacionismo oportunista
Negacionismo ideológico
Esse tipo de comportamento tem fortes tendências a crenças. Sejam religiosas, políticas ou pessoais, há sempre o elemento "intransigência" embasando os conceitos expostos.
O ato da negação em si - não necessariamente o negacionismo - tem caráter psicológico estudado por Freud. Trata-se de mecanismo com objetivo de defesa contra hipotético perigo que qualquer ideia nova possa representar. Assim, a mente prefere ignorar a aceitar.
Essa percepção é aceitável até o ponto em que não interfira na vida da sociedade. Isto é, até que a negação se mantenha nos limites do indivíduo.
O negacionismo ideológico apresenta outro componente não menos surpreendente: orgulho pela intransigência. O indivíduo socialmente desconectado da realidade tem satisfação em não mudar de opinião ainda que venha a causar danos a si e a muitos outros.
Negacionismo oportunista
A postura negacionista oportunista é, de longe, a mais contraproducente, a mais deletéria para a condição humana. Enquanto o ideológico trava batalha local, a ação do oportunista é mais ampla. O primeiro defende sua própria “honra intransigente” e, assim, intervém negativamente apenas em pequeno grupo.
Por outro lado, o segundo tipo dispõe de financiamento. Atua em redes sociais, em conferências, em reuniões de classe, em programas de TV aliados etc., pois defende interesses de terceiros.
Oportunismo tabagista e alimentar
Trata-se de estratégia antiga. Nos anos 1950, a indústria de tabaco americana usou o negacionismo oportunista para minimizar o conhecimento científico. Assim, tentou distanciar os efeitos do cigarro da incidência de cânceres diversos por meio de ações de marketing.
Então, contratou cientistas, celebridades, personalidades em geral para “confabular”, “palestrar” e “se deixar fotografar” com os produtos. Boa parte daqueles negacionistas tinham conhecimento - ou, no mínimo, boa noção - sobre os fatos.
Entretanto, o oportunismo falou mais alto.
O site ACT Promoção da Saúde (contra as Doenças Crônicas Não Transmissíveis - DCNTs) alerta que as gigantes multinacionais de alimentos, refrigerantes e álcool usam de estratégia semelhante às usadas pelos produtores de tabaco. Ainda que saibam que seus produtos prejudicam a saúde e o bem-estar, investem em publicidade com celebridades.
Oportunismo climático
Negacionistas oportunistas há em todas as áreas. Certo movimento de interesses escusos lançou negação sobre a fenda na camada de ozônio nos anos 1980. Por mais que imagens de satélites, cálculos matemáticos e conferências climáticas mostrassem a tal fenda, negacionistas defendiam - e defendem ainda - tese contrária em apoio ao nicho industrial interessado.
Oportunismo no aquecimento global
Diversos ramos de indústrias, em especial a de carvão mineral, de petróleo e de madeira, ainda hoje, desde os anos 1990, procuram lançar dúvidas sobre a ciência. Afinal, reconhecer o aquecimento como resultado de processos industriais e extrativistas seria o mesmo que aceitar minimização de lucros.
Os fortes braços da Ciência
Felizmente, personalidades no mundo voltadas à Ciência lançam mão das redes sociais para contrapor o negacionismo. São cientistas, estudiosos, simples curiosos positivistas, autodidatas conscienciosos, seres pensantes, entre outros, dispostos a lutar contra a onda de insensatos.
Mãos brasileiras
Recentemente, Natália Pasternak uniu seus conhecimentos aos do editor da revista Questão de Ciência, Carlos Orsi, para criarem o livro “Contra a realidade: A negação da ciência, suas causas e consequências” (Amazon, ago/21). Ela é formada em Ciências Biológicas pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP) e PhD com pós-doutorado em Microbiologia, na área de Genética Molecular de Bactérias pelo Instituto de Ciências Biomédicas da mesma universidade (ICB-USP).
Gabriela Padilha Bailas é mais conhecida na internet como Bibi Bailas. Se analisada apenas por seus títulos acadêmicos, imagina-se que tenha uns 100 anos de idade. Entretanto, tem um terço disso. Seu trabalho virtual é defender ferrenhamente a ciência e desocultar o que ela e muitos outros chamam de “pseudagens”, ou seja, ações de charlatães que abusam da ingenuidade para divulgar conceitos sem comprovação científica.
Braços brasileiros
Daniel Gontijo é psicólogo, professor de Psicologia, Doutor em Neurociências pela Universidade Federal de Minas Gerais e fortíssimo defensor da Ciência. Mantém canal de vídeos no qual entrevista professores, teólogos, psicólogos, cientistas laboratoriais, entre outros profissionais. Soma milhares de horas de debate em prol da Ciência.
Jason Ferrer é ex-pastor. Seus argumentos em prol do raciocínio lógico perante espertalhões religiosos têm causado pânico entre charlatães e aproveitadores do negacionismo científico. Tem a Ciência como norte de seus conceitos e de sua batalha contra a anticiência.
Antonio Miranda é também mantenedor de canal de divulgação científica. Apologista do que chama de “Teologia Reversa e Contra-Apologética”, apresenta argumentos fortes em favor da Ciência por meio de um sistema de questionamento constante.
David Ribeiro é um jovem filósofo da Religião, ativista ateísta e naturalista. Também dispõe de canal de vídeos no qual busca evidenciar a importância da Ciência como base de defesa contra argumentos não científicos que proliferam na internet.
André Bacchi é Professor de Farmacologia pela UFR. Suas redes sociais são plenas em divulgação de práticas baseadas em evidências e eficiente propaganda de Ciência. É autor de vários livros relacionais.
Átila Iamarino é biólogo, doutor em microbiologia com pós-doutorado pela USP e pela Yale University. Também suas redes sociais são instrumento fortíssimo de divulgação científica.
Braços estrangeiros
Jacinda Kate Laurell Ardern é primeira-ministra da Nova Zelândia, reeleita aos 37 anos. Sua gestão é considerada uma das mais eficazes do mundo por diversos motivos, o principal deles foi ter se cercado de especialistas em ciências da saúde. Além disso, declarou confiança na Ciência em todos os momentos em que teve oportunidade para isso.
O africano Tedros Adhanom Ghebreyesus é diretor-geral da Organização Mundial da Saúde - OMS. Por ele e contra dezenas de poderosos líderes mundiais, o mundo soube que a Covid-19 não seria apenas uma gripezinha. Também por ele, uma campanha em massa teve início.
Em todas as oportunidades, destacou a importância do isolamento, do uso de máscara e da vacina. Usou suas redes sociais, programas de TV, alertas institucionais da ONU e qualquer outro instrumento de divulgação.
Anthony Fauci é diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos. Seu país também foi vítima de informações errôneas. O cientista contrapôs até mesmo o presidente Donald Trump, que cogitou demiti-lo.
É preciso ocupar espaços na mídia para divulgação do raciocínio lógico e da Ciência. Como dito, afinal, o poder da divulgação não tem ética.
Este artigo foi escrito por Serg Smigg e publicado originalmente em Prensa.li.