Cigarro eletrônico: além da cortina de fumaça
Na prática, a teoria é outra
Porém, em pouco tempo, percebeu-se que o benefício ficava basicamente na teoria. O tal gadget apareceu por aqui na primeira metade da década de 2010, e fez sucesso rapidamente entre os mais jovens, afinal, o equipamento transpira todo um ar de modernidade. E sim, contava com a presença da tal nicotina.
Envolvido em nuvens de pura química, os também chamados DEFs (Dispositivos Eletrônicos para Fumar) virou moda, sobretudo nas classes média e alta das grandes cidades. Estudos do INCA - Instituto Nacional do Câncer indicam que o uso do dispositivo oferece riscos diretos como dependência, doenças respiratórias e cardiovasculares, e é claro, câncer. A toxicidade pode ser tão prejudicial quanto a versão tradicional.
Fato é que além da nicotina, o vape também conta com acroleína, propilenoglicol e glicerina. Por ser primordialmente misturadas à água, a nicotina aqui em tese não seria tão agressiva como causa do câncer. Porém, nada vem de graça: na mistura, a dose do elemento é vinte vezes maior do que na versão tradicional, sendo que é justamente o componente mais viciante do cigarro. É o famoso lobo em pele de cordeiro.
Nove entre dez estrelas de cinema…
Assim como virou modinha entre jovens endinheirados, o cigarro eletrônico também chegou pesado no mundo artístico. Alguns medalhões como Leonardo DiCaprio, Katy Perry, Lindsay Lohan, Jack Nicholson e Samuel L. Jackson foram fotografados pitando os tais aparelhinhos fumacentos, segundo ostenta o site Blog do Vapor, digamos, com certo orgulho. Discutível, na minha opinião.
E é claro, isso veio dar as caras na classe artística verde e amarela. Mas nada tem bônus, sem ônus: assim como no exterior, alguns artistas manifestaram problemas de saúde bastante preocupantes pelo uso da maquininha viciante (e não estou me referindo aos celulares).
Pulmão de vidro
Um dos casos mais notórios ocorreu com o cantor Zé Neto, da dupla Zé Neto e Cristiano. Em dezembro de 2021, o artista precisou ser internado para um tratamento pulmonar severo. A princípio, foi atribuído algum resquício de uma recente contaminação por Covid-19. Porém, exames mais profundos deram a entender que o culpado era o tal vape.
As imagens dos pulmões do cantor eram impressionantes. Uma grande mancha, com aspecto de vidro fosco, tomou conta de boa parte do órgão. E não foi fácil para que a moléstia atenuasse. Zé Neto passou poucas e boas, chegando a apresentar estado de saúde crítico.
No final do ano passado, o portal noticioso Metrópoles trouxe um estudo do CDC, órgão máximo de saúde nos Estados Unidos, dando conta que o vape libera dez vezes mais formaldeído que o cigarro convencional, tornando-se potencialmente cancerígeno.
Entre outras divertidas combinações químicas, também foi descoberto que devido à presença de acetato de vitamina E, que é encontrado no líquido dentro do dispositivo, o uso do equipamento causa, e rápido, problemas no funcionamento dos pulmões.
Esta ocorrência foi chamada pelos especialistas norte-americanos de EVALI (E-cigarette or Vaping product use - Associated Lung Injury). Ou seja, a traquitana já tem uma doença para chamar de sua. E foi justamente essa EVALI que se manifestou no corpo de Zé Neto.
Crise de pânico
Mas ele não foi o único a ter problemas com o pendrive fumável. Em março deste ano, a cantora Solange Almeida, da banda Aviões do Forró, foi obrigada a parar as apresentações após sentir dificuldade em alcançar determinadas notas musicais, e depois, para respirar. Pensou que mesmo conseguindo vencer o vício, teria de encerrar sua carreira.
A cantora começou a usar o vape quase por brincadeira, no embalo, durante uma festa, e acabou ficando severamente viciada. Em entrevista ao site Purepeople, logo após sua dolorosa recuperação, declarou: "comecei a sentir coisas que eu não sentia. Era uma ansiedade, crise de pânico, uma série de coisas que depois fui ver de pessoas que deixaram de usar, que sentiram a mesma coisa”.
Ainda mais recentemente, a rapper norte-americana Doja Cat postou em suas redes sociais que iria fazer uma parada momentânea em seus shows, inclusive cancelando uma turnê, pois se submeteria a uma cirurgia de emergência nas amígdalas. O motivo? O estrago feito pelo uso excessivo do tal cigarro eletrônico!
Defendendo o indefensável
Apesar de todos os malefícios anunciados, ainda há aqueles que defendem o tal equipamento, dizendo que não é nocivo. Muitos, se escondendo atrás de uma ainda pequena, mas crescente, indústria do vapor eletrônico. Pequena, em comparação com a gigantesca indústria do tabaco, uma dor de cabeça de longa data para as instituições de saúde.
Os que se dizem favoráveis ao uso, comemoram decisões como a da Suprema Corte do México, onde o uso e comercialização eram proibidos. Desde outubro de 2021, o tribunal decidiu que esta proibição seria inconstitucional, já que o entendimento foi que “a restrição prejudicaria o livre comércio e o desenvolvimento desimpedido da personalidade”. Seja lá o que esta parte queira dizer. E não parou por aí: isso garantiria a “liberdade dos cidadãos em fazer escolhas envolvendo seus corpos e o que desejam consumir”.
Isso também poderia ser aplicado ao milho de pipoca ou rocambole de morango. A diferença é que estes dois últimos não têm nem de perto o potencial danoso do cigarro eletrônico. Ainda assim, fica evidente na parte do “livre comércio” quem é que está tentando fazer a roda girar.
Este veredito animou os apoiadores do produto por aqui. Com base nessa decisão da Suprema Corte mexicana, querem fazer o mesmo tipo de contestação nos corredores de Brasília. E claro, existe a chance de vencer o jogo. Mesmo que percam, uma divulgação maciça dessas ideias certamente contribuiria com a descoberta por muitos, e pelo aumento do consumo, nem que seja pela novidade.
Bom senso versus interesse econômico
Enquanto isso, a classe médica se mostra seriamente preocupada. A Associação Médica Brasileira, citada acima, lançou uma campanha junto à Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, intitulada Não se Engane: Cigarro Eletrônico é Cigarro, com a finalidade de divulgar pesadamente os malefícios do vape.
Vale lembrar que a venda de DEFs é terminantemente proibida por determinação da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), desde 28 de agosto de 2009, através da resolução 46/2009. Seu uso é desaconselhado por especialistas de várias áreas, e chancelado pela AMB - Associação Médica Brasileira.
De olho na análise que vem sendo feita pela ANVISA, visando a manutenção ou liberação da proibição, a Associação alerta em seu site “a comunidade científica e de saúde pública brasileira só esperam uma coisa da ANVISA: que não libere a comercialização dos cigarros eletrônicos no Brasil. Os cigarros eletrônicos não podem reverter décadas de esforços da política de controle do tabaco no País.”
Vamos torcer para que prevaleça o bom senso, e não o interesse econômico. Caso contrário, teremos o agravamento rápido de um incômodo problema de saúde pública.
Eu volto.
Este artigo foi escrito por Clarissa Blümen Dias e publicado originalmente em Prensa.li.