Cisne Negro: entre perfeição e loucura
“Uma garota virginal pura e doce, presa no corpo de um cisne, ela deseja liberdade, mas só o amor verdadeiro pode quebrar o feitiço. Seu desejo quase se realiza, na forma de um príncipe. Mas, antes que ele possa declarar o seu amor, a irmã dela, o Cisne Negro, o engana e então o seduz. Desolada, o Cisne Branco, pula de um penhasco, se matando, e na morte, encontra a liberdade.”
A breve explicação sobre o musical Lago dos Cisnes feita por Thomas, personagem de Vincent Cassel, introduz na história o balé dramático do compositor russo Piotr Ilitch Tchaikovsky (1840-1893).
A escolha de Aronofsky pela peça como 2º plano para o filme é esplêndida. A beleza do balé, seus movimentos leves e delicados contracenam com a busca da perfeição artística, com todos os desafios físicos e psicológicos que isso poderia acarretar.
No filme, Natalie Portman interpreta Nina, uma jovem bailarina que sonha com um papel de destaque e é escolhida para ser a protagonista de uma adaptação do balé.
Entre a repressão da mãe, o ambiente tóxico e abusivo no trabalho, Nina desenvolve uma fixação pela nova colega, Lily. Tudo isso começa a afetar a sua saúde mental, o que acaba sendo a sua ruína.
O final trágico é emoldurado pela fala “Eu me senti perfeita” emitida por Nina. O fechar das cortinas nos faz soltar o ar que nem sabíamos que estava preso.
A perfeição luta com a leveza
Cisne Negro traz à tona a incansável busca perfeição no meio artístico. Odette e Odila, as princesas presentes na trama do balé, são opostos que devem permear dentro de Nina, como intérprete, e expressarem-se de formas distintas. Esse é o principal desafio para a protagonista. Nina precisa interpretar, no palco, os dois papéis, sendo que é perfeita para ser o Cisne Branco, mas não para o Cisne Negro.
Odette é controlada, delicada, precisa em seus movimentos, doce e frágil. Odile transborda malícia, paixão, leveza, o poder e a sedução. Essa disparidade entra as duas personagens travam uma batalha mental intrigante para o espectador.
A complexidade da protagonista e seus distúrbios mentais vão ficando mais visíveis conforme se aproxima a data de estreia do balé. Aronofsky traz o lago dos cisnes não só para o palco do filme, mas para a vida real de Nina.
Na peça, Odette é enfeitiçada por Rothbart, um mago que é pai de Odile, e só à noite lhe é permitido recuperar a aparência humana. A princesa só poderá ser liberta por um homem que a ame. Essa liberdade e transformação são metáforas para as mudanças de Nina, a começar pelo relacionamento com a mãe.
“Minha doce garotinha”
Imagem: Divulgação
A personalidade “perfeita” de Nina é reflexo de sua mãe, Erica Sayers, interpretada por Barbara Hershey. No início do filme, vemos a ex-bailarina transmitindo seus desejos para a filha.
A superproteção e manipulação de Erica está expressa através do quarto rosa cheio de bichinhos de pelúcia. Nina é inocente pois foi castrada pela mãe. Seu excesso de cuidado se concretiza na forma da anorexia e infantilização da protagonista, da repressão sexual e do controle exagerado.
Ou seja, Nina praticamente já vive como o cisne branco. Mas o cisne negro não se enquadra em sua inocência. Nina então começa a entrar em contato com algo adormecido dentro dela, deixando de lado toda essa proteção da mãe.
Erica se frusta a cada avanço de Nina no caminho do autoconhecimento, apesar deste conhecimento ser muito mais parecido com descontrole mental.
O relacionamento familiar abusivo vivido por Nina resulta em uma mulher insegura, que não consegue identificar as mesmas situações no seu ambiente de trabalho.
Thomas, o diretor do espetáculo, é outro personagem que se apossa da inocência de Nina com a falsa mensagem de “buscar o melhor” para a protagonista.
Além de torturar as bailarinas, sobretudo Nina, com críticas e humilhações constantes, - na prática, abuso moral - Thomas também as assedia sexualmente.
Thomas é o mago, buscando transformar a princesa em cisne por conta de seus próprios caprichos. Ou ele pode ser um príncipe, embora cruel, que domina o caminho para a liberdade de Nina.
A psicanálise em O Cisne Negro
Em sua segunda tópica, Freud apresentou três subpersonalidades em conflito: uma que busca satisfazer desejos o tempo todo, uma que adapta essa procura ao mundo real e uma desmancha-prazeres. O resultado disso? Você ou, no caso deste artigo, Nina.
Toda a confusão mental, disputa interna sobre autoconhecimento e libertação de Nina se encaixa perfeitamente no clichê de “Freud Explica”. Segundo o estudioso, o aparelho psíquico possui três partes que controlam o seu funcionamento. Eles são o ID, o EGO e o Super Ego.
O ID pode ser definido como o desejo, a parte que busca unicamente o prazer. Uma espécie de subpersonalidade tarada, agressiva, egoísta e mimada. O Super Ego é o oposto do ID, representando todos os valores morais que aprendemos em sociedade, repreendendo o Id a todo momento.
Já o Ego é responsável por balancear e conciliar as outras subpersonalidades. Ele é regido pela realidade, trazendo a razão para a superfície mental. Quando os outros dois se desequilibram e o ego não consegue controlá-los, distúrbios de personalidade podem vir a aparecer. E é isso que acontece com Nina.
O cisne branco é o Super Ego, todos os valores estipulados pela mãe da protagonista comandam suas ações, e a torna submissa às regras, mesmo sem perceber. O cisne negro é o ID, carregado de desejos e vontades, pronto para ser liberto e tomar as rédeas.
Entretanto, nenhum dos dois deveria ser a personalidade principal de Nina. Era preciso um equilíbrio, algo que não ocorre.
A libertação do ID acaba levando à alucinações sofridas pela protagonista no decorrer do filme, como a visão dela mesma se enforcando na banheira, ou o momento em que a personagem começa a arrancar a pele próxima a suas unhas.
Mas nada é tão intenso quanto as visões que Nina tem com a sua concorrente, Lily.
A Odile perfeita
Lily, interpretada por Mila Kunis, é a bailarina recém chegada que se torna a maior ameaça para Nina. Pelo menos é o que suas alucinações demonstram. Nelas, Lily tem a leveza e a liberdade que a personagem deseja alcançar para se tornar o Cisne Negro.
Para aqueles mais atentos, é possível “matar a charada” da protagonista quando, ao chegar em casa, discute fervorosamente com sua mãe e, Erica não emite qualquer fala ou dá a entender que tem outra pessoa com sua filha.
O desejo para se encontrar com a liberdade é tão latente em Nina que a protagonista alucina que está tendo relações sexuais com Lilly, a qual em certo momento tem seu rosto transfigurado no de Nina. É o ID cada vez mais tomando espaço na superfície da inocente personagem.
Neste momento, Nina já está tão perdida em sua psicose que a concorrente é como se fosse seu suporte para externar toda a sua leveza e liberdade, simbolizando o início do renascimento de Nina.
A liberdade é a morte
Imagem: Divulgação
No dia da estreia do espetáculo, Nina já está tão fragilizada mentalmente que num milésimo de segundo em que perde a concentração no palco, caí na frente do público.
O susto que a protagonista leva e a cobrança seguida de Thomas são agravantes, e criam o clímax do filme. Nina volta ao camarim para se preparar para a apresentação da sequência do Cisne Negro e se depara com Lily se arrumando para assumir seu lugar no segundo ato.
As duas discutem por alguns instantes e Nina volta a ter alucinações com sua dualidade no corpo de Lily, o retrato do seu ID começa a ficar mais latente, e a briga entre as subpersonalidades acaba com Nina apunhalando Lily.
A protagonista assume agora a postura do seu ID liberto de todo controle, seus olhos vermelhos podem ser interpretados como raiva, paixão e transformação. Durante a performance, asas negras começam a surgir na bailarina que a cada movimento se sente mais completa, amada e perfeita.
Ao fim do ato, fica claro que tanto a apresentação de Nina quanto o assassinato de sua concorrente não são reais.
Ao voltar ao camarim novamente para se preparar para o ato final, Nina recebe a visita de Lily a parabenizando. Como se tudo voltasse ao centro novamente, Nina recobra a sanidade por alguns instantes, somente para perceber que sua maior concorrente não era Lily, e sim ela mesma. A protagonista havia se apunhalado.
A busca pela perfeição no momento de interpretar a rainha dos cisnes fez aflorar uma nova personalidade em Nina que encontrou, na morte, um modo de satisfazer seu desejo.
Cisne Negro não mostra somente uma mulher que enlouquece e se mata no final. O ponto aqui é todo o desgaste mental e físico de uma bailarina de sucesso que busca fervorosamente a perfeição. Toda a emoção e pressão negativa que ronda a protagonista tomam conta de si e no fim, o preço pago é sua vida.
Nina foi perfeita. As cortinas se fecham. O público aplaude.