Clifford o gigante cão vermelho e padrões de comportamento incentivados por Hollywood
Clifford: o gigante cão vermelho é uma aventura live-action.
(Nossa como esse termo me irrita, já que se tornou sinônimo de espremer histórias que já fizeram sucesso, ganhando muito dinheiro, sem que haja a necessidade de criar algo novo. Basta, contar com a nostalgia do público. Uma mina de ouro, até não ser mais. Longe de mim, rogar praga!)
Voltando, o filme apresenta a história do cãozinho vermelho da série de livros ilustrados “Clifford, O Cachorrão Vermelho” da escritora Norman Bridwell, publicado pela extinta editora Cosac & Naify. Clifford também já virou série de animação que passou na TV Cultura, que está disponível no catálogo do Prime Video.
Filmes como Clifford são desenvolvidos para um tipo específico de público, crianças pequenas. Dado que temos um cachorro gigante na tela, que só uma criancinha consegue aceitar o fato sem questionar. Eu ainda me pergunto como aquele cachorro coube num apartamento, visto que tem dias que minha shih-tzu quase derruba todo mundo aqui em casa. Porém, essa é a magia de Hollywood.
Sinopse
Emily Elizabeth, Darby Camp, e seu Tio Casey, Jack Whitehall, encontram um cachorrinho vermelho que magicamente se torna enorme. Agora eles precisam esconder o bichinho e impedir que Tieram, Tony Hale, capture e realize experiências com Clifford.
Refletindo sobre o tio irresponsável
Clifford é o tipo de narrativa que precisa de uma pessoa que toca o F***-se para as regras sociais, já que é a única capaz de ignorar o fato de que manter dentro de um apartamento um cachorro de 3 metros de altura é uma péssima ideia. No entanto, não é sobre isso que quero falar. O ponto que desejo trazer é o que consideramos sucesso ou fracasso.
Tio Casey, Jack Whitehall, é um jovem que vive no seu caminhão, não tem um trabalho fixo e, por isso, é visto como um fracassado. Um adulto incapaz de cuidar de si, porventura, de uma criança. Aliás, uma garotinha que já se vira sozinha, uma vez que a mãe passa boa parte do tempo fora de casa, em algumas oportunidades até fora da cidade viajando.
O que consideramos sucesso?
Um tema que precisa ser repensado por Hollywood, inclusive, pela sociedade. Dado que temos o costume de conectar sucesso com bens materiais. A propósito, Hollywood exerce enorme influência nessa interpretação de mundo, com seus filmes sobre pessoas que fizeram fortuna do nada, como as narrativas que mostram os gênios do Vale do Silício. Se nunca ouviu falar a respeito do “mito da garagem” recomendo fortemente o vídeo: https://bit.ly/3yNdfKE
Onde Senhorita Bira explica que os gênios do Vale do Silício tiveram, sim, apoio financeiro para começar seus impérios. Apesar de tentarem levar a gente a acreditar que não.
Acontece que a vida não se resume a isso, acumular riqueza. Uma vez que existem muitas formas de viver. Afinal, desde que sua existência não impossibilite a existência de outras pessoas, não cabe a ninguém determinar como você deve viver. Ou julgar conforme a própria visão de sucesso. Afinal de contas, cada pessoa tem uma concepção sobre o assunto.
Mas gente, não era só um filme infantil? Não, são narrativas que criam representações em seres em desenvolvimento. Nunca esqueça disso. No final das contas, as crianças passam mais tempo diante de telas que lendo livros ou conhecendo realidades diferentes. Logo, essas histórias influenciam mais do que imaginamos.
Prova disso é que nosso ideal de amor, que foi trabalhado pelas comédias românticas, entretanto, isso é assunto para outra oportunidade.
Refletindo sobre maternidade
Se tem uma parte do filme que me deixou passada foi o passado de Maggie, Sienna Guillory, mãe de Emily Elizabeth, Darby Camp, e irmã de Casey. Que precisou abrir mão de uma excelente oportunidade de estudar na universidade dos sonhos, pois, a mãe morreu e o pai não deu conta das coisas sozinho. Por isso, Maggie teve que assumir o papel de mãe e concluir a criação do irmão.
Até quando vamos continuar assistindo narrativas onde uma mulher desiste do seu sonho para executar a obrigação de um homem, no caso o pai dela???
Como se a dor dessa mulher fosse menor. Caramba!!! A garota tinha acabado de perder a mãe, mas teve que sacrificar um sonho para ajudar o pai, que era o adulto responsável no momento. Oi??? Maggie precisava de amparo, não de uma obrigação. O que a jovem fez com a própria dor?? Suprimiu em favor do outro?? Haja terapia para superar tanta perda.
Esta alegoria da mulher que renuncia seus sonhos para assumir a responsabilidade de outro já deu né?! Afinal, o pai era fraco e tudo o que desse errado com o filho era responsabilidade dele, não da filha/irmã. #prontofalei
Vamos parar de romantizar a maternidade que está feio. Isso porque não toquei no assunto ausência do pai da Emily Elizabeth, que o filme nem se deu ao trabalho de justificar.
Só para ilustrar o quanto essa ideia de instinto maternal é cruel com as mulheres, separei um trecho da entrevista que Elisabeth Batinder filosofa, historiadora e escritora francesa. Autora de “Um amor conquistado - O mito do amor materno”, deu para a revista Veja em 2018:
“O ‘mito do amor materno’ foi uma forma de atribuir um papel às mulheres, sobretudo de atribuir um papel exclusivo.
Para os homens o poder, o domínio do mundo exterior. Para as mulheres a casa, o cuidado das crianças e os trabalhos domésticos. Pois, a partir do momento que as mulheres têm como papel principal uma função imposta pela natureza, cuidar das crianças, quer dizer que elas devem ficar em casa.”
Sim, o extinto materno é só mais uma ferramenta de controle feminino criada pelo patriarcado. Que Hollywood explora com maestria.
Enfim, recomendo que você assista o filme Clifford o gigante cão vermelho para tirar suas próprias conclusões.
Este artigo foi escrito por Kika Ernane e publicado originalmente em Prensa.li.