Começar a ler Stephen King - Vida longa ao Rei
No dia 21 de setembro de 1947, nascia um poço de maldição, trevas e monstruosidade. Tomava forma a origem de tanta coisa odiosa e profana, não permitindo a ninguém prever o que o Universo planejava para nós.
O cidadão mais famoso do Maine, Stephen Edwin King, que agora em setembro de 2021 celebra 74 anos de vida, cresceria, casaria, e aí aprenderia com Ray Bradbury, Richard Matheson e H.P. Lovecraft. Se jogaria em vícios terríveis, conseguindo se livrar dos menos saudáveis.
Mas o vício de escrever, desse ele nunca largou.
Quem vê o simpático velhinho hoje não enxerga nele a origem de Carrie, a Estranha, O Iluminado, A Torre Negra, It - A Coisa, Cemitério Maldito e tantos outros pesadelos, além de livros de fantasia, aventura e mistério.
Não assusta só o conteúdo de seu trabalho, mas o escopo. 61 livros de ficção, escritos sob seu nome ou sob seu pseudônimo, Richard Bachman. Isso sem contar os livros de não-ficção, as coletâneas de contos, ensaios, adaptações para o cinema e para a TV. Tem também o fato de que seu filho, Joe Hill, acabou se tornando um autor de horror de muito talento por si só.
Na frente desse abismo temoroso, o que fazer quando se quer entender qual é a do rei?
Cara... é melhor você correr. (Imagem - United Artist / MGM / Divulgação)
Por onde começar a ler Stephen King?
Por mais que ele seja conhecido por seus livros de terror (e que mesmo seus trabalhos de outros gêneros não fiquem livres de elementos sinistros), não é justo jogar toda a sua obra no mesmo saco de ossos.
Temos histórias perfeitamente centradas na realidade, na loucura do que gente má é capaz de fazer quando enlouquecida e muito motivada (como em Louca Obsessão e O Pupilo - ambos adaptados para o cinema). Há livros do bom e velho “tem um monstro solto na noite e ele quer te devorar”, com lobisomens, zumbis, vampiros e fantasmas.
Existe o horror cósmico lovecraftiano, onde mistérios sobre como o universo funciona levam seus protagonistas a descobertas de pavor, como em Revival. Possessão demoníaca de animais e entes queridos? Cemitério Maldito. Possessão demoníaca de carros? Christine. Possessão demoníaca de ativos imobiliários? O Iluminado.
Carrie, A Estranha é uma ótima maneira de começar porque foi o início da própria carreira de Stephen King. Seu primeiro livro, rapidamente catapultado ao sucesso pela adaptação cinematográfica de Brian de Palma, mostra os primeiros traços de muito do que assombraria seus leitores nas décadas seguintes. Acontecimentos paranormais sem tanta explicação, o impacto deles sobre gente comum, uma crítica eterna à hipocrisia religiosa, fogo e gente sendo trucidada.
Nem King acreditava em Carrie. Tentou se livrar do manuscrito, mas sua esposa, Tabitha King, obrigou-o a recuperar as páginas do lixo e a mostrar a um editor. O resto é sangue.
Se você não tem medo, especialmente de livros grandes, outra maneira de mergulhar nesse mundo é It - A Coisa, o celebrado livro que ensinou para todo mundo do que palhaços são realmente capazes.
Foi adaptado duas vezes. Nos anos 90, para a TV, com o lendário Tim Curry no papel da entidade maléfica que se alimenta do medo de crianças. E recentemente para o cinema, em um filme muito bom (Parte I) e um filme inexplicavelmente ruim (Parte II).
A versão da Editora Suma, lançada no Brasil em 2014, traz 1104 páginas, então recomenda-se a versão digital do que a em papel, mas nenhuma delas vai melhorar a sua relação com o circo.
E se eu não quiser ler uma história de terror?
Stephen King também tem boas portas de entrada que não chegam no campo das forças das trevas. Outro de seus livros imensos é Novembro de 63, uma história de viagem no tempo, que conta com uma atmosfera incrível da época em que John Kennedy foi assassinado.
Ou você pode escolher o “Senhor dos Anéis” de Stephen King — no sentido de ser uma grande saga épica de fantasia. A Torre Negra é uma amálgama de lendas arturianas, faroeste, feitiçaria, monstrengos bizarros e um pistoleiro mal-humorado.
Vale a pena ler para reparar na escrita. King foi escrevendo seus episódios ao longo de anos, e é nítida a evolução do autor como contador de história e como inventor de conceitos pitorescos. E o final da saga é uma daquelas que divide mais fãs do que o final de Game of Thrones na TV (que não dividiu ninguém — todos nós ficamos do mesmo lado. O lado de fora).
Porém, o primeiro livro da série, O Pistoleiro, tem um estilo bem pouco convencional, e pode afastar o fã que não experimentou coisas mais “tranquilas”.
Morgan Freeman e Tim Robbins em Um Sonho de Liberdade. Viu só, não é tudo terror. (Imagem: Divulgação)
E se eu quiser ver os filmes?
King é famoso (e segundo seus contadores, infame) por ter criado a política do Dollar Baby: ele cede os direitos de seus contos a qualquer estudante de cinema que queira adaptá-los, pelo preço de um dólar.
Embora a maioria destas obras nunca tenha chegado ao grande público, King é quase um gênero de cinema por si só. Na votação do público da maior base de dados cinematográficos da internet, o IMDB (https://www.imdb.com/), o número 1 é, há anos, Um Sonho de Liberdade, drama sobre um homem preso injustamente e baseado em um de seus contos.
Sua escrita acessível, seus personagens memoráveis e suas ambientações firmemente norte-americanas são um banquete para Hollywood. De maneira que, mesmo quando o próprio King nem sempre concorda com o resultado final, grandes diretores já passaram por suas páginas à procura de inspiração.
O já citado O Iluminado é tão icônico quanto cirúrgico, nas mãos do doutor Stanley Kubrick. Já falamos de Brian de Palma, mas temos também o grande David Cronenberg adaptando o thriller telepático A Hora da Zona Morta.
Frank Darabont, diretor de Um Sonho de Liberdade, refez a parceria em um filme humano e belíssimo (A Espera de um Milagre) e outro de profundo horror perturbador (O Nevoeiro). Rob Reiner explora a beleza das amizades infanto-juvenis em Conta Comigo, mas também mergulha num tortuoso frenesi em Louca Obsessão (que rendeu um Oscar a Kathy Bates!).
O Stephen King nem gostou dessa adaptação. (Imagem - Divulgação / Warner Bros.)
O segredo de King - Sobre Escrita
Stephen King tem um método de escrita muito peculiar.
Não, ele não invoca páginas datilografadas sob a luz do luar num pentagrama. Ele faz algo muito pior: ele não planeja sua trama.
Uma de suas leituras mais interessantes — especialmente para quem quer aprender com o mestre — é o livro com o título menos criativo de toda sua obra. Em Sobre Escrita, ele explica seus métodos de desenvolvimento de história. King abre sua caixa de ferramentas e expõe as técnicas que o tornaram um dos maiores autores de sua geração.
Em primeiro lugar, King escreve muito. Um sujeito que lançou tanta coisa, ou fez algum pacto tenebroso com forças sombrias, ou simplesmente escreve cinco horas por dia há pelo menos 60 anos.
O outro aspecto é que King estabelece sua premissa — digamos, “o que aconteceria se uma cidade fosse isolada por um domo transparente” ou “e se um homem ficasse preso num apartamento assombrado” — e simplesmente começa a escrever. Com pouca pausa para pensar, King simplesmente despeja a história em sua máquina de escrever.
Por mais que isso torne-o muito prolífico, não o faz acertar sempre. Mesmo seus fãs encontram em seu corpo de trabalho momentos de maior “cafonice literária”. Ou algumas ousadias indesejadas (como a cena perto do final de It - A Coisa que é muito mais absurda do que o resto do livro e não tem nada de sobrenatural).
Mas lhe dá uma liberdade narrativa invejável, além de uma acessibilidade icônica. Todo mundo consegue ler um livro de Stephen King e se apaixonar, se enfurecer e se lamentar pelas desventuras de seus personagens.
Stephen King lançou em agosto de 2021 o thriller Billy Summers, e aos 74 anos, parece estar longe de uma aposentadoria.
Hoje, nós celebramos o aniversário do homem que moldou o medo de muitos. Sempre atual, sempre sinistro, bem-humorado e totalmente humano.
Vida longa ao rei.
Imagem de capa - Divulgação