Como construir um ser
Este ensaio foi redigido há 10 anos (estamos em 2021) e jamais publicado. Poderia ser uma homenagem, mas não é; poder ser um currículo, mas não é; poderia ser resultado de narcisismo, mas não é. É constatação do que é possível num tempo em que o impossível ou é tema de palestrantes motivacionais megalômanos ou limite separatista entre vencedores e perdedores.
Nem uma só vírgula precisou ser retirada ao longo destes 10 anos; nem uma só palavra vai precisar ser retirada ao longo dos próximos 100.
Difícil conhecer o processo pelo qual um ser é feito. Há questões psicológicas, sociológicas, antropomórficas, constitutivas moleculares/celulares, situacionais, dentre outras. Um ser é construído ao longo do tempo, dos relacionamentos, das situações; enquanto tudo isso vai acontecendo, seu senso de assimilação vai desenvolvendo sua capacidade de análise.
Ou incapacidade. Quando nasce, seu cérebro ainda não está pronto e, nos anos seguintes, altera-se ao sabor da realidade que vai vivendo: pequenos traumas, alguns sorrisos, o cheiro da mãe, a silhueta do pai, contato com primos e visitantes, o formato do quarto, o que vê na TV etc.
Quando se vê, o ser está ali, pensando, observando, criticando, matando, corrompendo, salvando vidas, destruindo outras etc. E tudo transcorre de forma tão irreal e longe de nossa individualidade que nos parece acontecer somente em compêndios de psiquiatria ou em filmes conceituais criados por estudantes de comunicação ou de filosofia da USP - tal “Efeito borboleta” ou “Deixados para Trás”, produções estrangeiras. Entretanto, é como a “coisa” acontece. Bem abaixo dos nossos narizes.
Repentinamente, nossos filhos estão fumando maconha, fazendo arruaças vândalas, traficando, roubando, desrespeitando regras sociais etc. Ou trabalhando ao nosso lado, discutindo a vida, assimilando nossas ideias, mostrando hombridade etc. Aos quinze de idade. Ou menos.
Um ser se formando
Há alguns anos, publiquei uma crônica chamada “Imagens Atrás do Quadro”, na qual anunciava a maneira como eu gostaria de me relacionar com meu filho, então com dois anos de idade. Até hoje recebo mensagens de leitores com as mais diversas críticas construtivas.
Hoje, meu filho é produto do que ele e eu vivemos. Claro, muito do que ele é hoje é resultado de sua própria inteligência (intocável) e da constituição física de seu cérebro (tocável). Mas sei que, aliado a tudo isso, está nosso relacionamento. Meu filho nunca teve parcimônia em discutir comigo qualquer assunto, fosse qual fosse, desde que começou a falar e seja qual seja no presente.
Desde há muito, conversamos sobre drogas, sobre amores perdidos e conquistados, vida, religião, postura, reconhecimento de falhas e de capacidades, política, História e história, filosofia etc. Meu filho sabe que os resultados que obtém na vida (aos quinze anos e meio de idade) são desenhos do que tem sido e do que está sendo. E principalmente do que será.
Um ser pra chamar de senhor
Não há quem não o admire, sejam idosos ou adolescentes. Tem uma grande capacidade de ser admirado e não se portar como ídolo. Simplesmente é assim. Não tem medo de nada. Teve seus medos infantis (escuro, bicho-papão, Freddy Krugger...), mas isso foi há “séculos”. Ao longo de nosso relacionamento, foi descobrindo que tais medos são defesas de sua mente para que estabelecesse sua condição futura de “senhor da própria vida”.
E hoje é mesmo “senhor da própria vida”. Busca elementos circunstanciais para mostrar o quanto é dono de si mesmo. Aos quinze anos de idade.
Desde muito, acorda sozinho, toma seu banho e vai pra escola; quando retorna, em havendo algo importante, vai direto aos cadernos e livros. Caso contrário, ou vai jogar seu futebol de rua ou, vendo que há louças pra lavar, o faz enquanto vê TV; inscreveu-se por iniciativa própria na ETEC e foi aprovado com facilidade. Uma vez lá, é constantemente recomendado por professores e colegas. Há quatro anos, quis estudar espanhol; terminou o curso no meio do ano passado sem qualquer interferência externa.
Estou pintando um “homem perfeito”. Contudo, não é assim. Tem lá seus defeitos, como todos os temos, mas são plenamente assimiláveis e aceitáveis.
Há pouco mais de sete meses, encontrou uma menina adolescente extraordinária e com ela teceu relacionamento, que perdura por “longos meses” em tempos em que “ficar é a regra”. (“Você é o ‘culpado’, pai. Foi você que me ensinou que ‘ficar’ é indigno para a imagem da mulher e para o caráter do homem”, argumenta ele, brincando.)
Um ser de caráter
Meu filho não segue regras imbecis. Reconhece o direito dos idiotas de serem idiotas. Quando destaca eventual postura medíocre de colegas, o faz para que critiquemos e evoluamos em nosso senso de compreensão para com semelhantes.
As regras que segue são as que detêm o poder de mostrar o quanto ele é consciente de seu papel na sociedade: é fã de idosos, é amigo de colegas, não desperdiça água ou energia, não joga lixo em vias públicas. Apesar de não gostar de funk, reconhece que esse elemento de segregação tribal é o máximo a que alguns jovens podem chegar no momento, o que não significa que sejam marginalizáveis.
Assim como eu, meu filho não tem medo de pecados ou de dedos superiores imaginários apontados para si. Sabe que o semelhante deve ser respeitado já pelo simples fato de ser ser humano. Ele não precisa de regras psicoilusórias que aparentemente tenham o poder de demarcar regiões paradisíacas no pós-morte, nas quais “viverá” por toda eternidade.
Quando faz algo de bom, o faz por simples prazer pessoal; quando auxilia um colega, não é para agradar ou a grego ou a troiano. É porque sabe que assim há de se sentir bem.
Este texto se encerra aqui. Tenho verdadeira paixão e admiração por meu filho de quinze anos de idade, assim como por minhas filhas. Ele é a mostra do que eu posso fazer. É nos olhos dele que posso olhar hoje sem precisar esconder atitudes ou sentimentos. E no futuro também. Posso estar em sua presença e não ter vergonha do que fiz porque o que fiz foi sempre condizente com o que vivemos até agora.
São muitos os caminhos para se construir um ser. Como qualquer construção, pode ruir a qualquer momento se a base não for bem feita. A qualidade da argamassa aplicada tem relevância sobre a da tinta final porque, se for ruim, nenhuma tinta mantém a estrutura.
Este artigo foi escrito por Serg Smigg e publicado originalmente em Prensa.li.