Como o racismo criou o Brasil?
Arte de Gabriel Prado
Nos últimos anos, as pautas raciais conseguiram romper os espaços periféricos e atingiram lugares antes proibidos.
Nas telas da TV ou nas telonas dos cinemas, o discurso antirracista construiu narrativas de luta e resistência, alcançando uma representatividade nunca antes vista em espaços embranquecidos.
Inclusive a própria publicidade, espaço de reprodução de estereótipos da sociedade com o claro intuito de vender, abriu espaço para peças inclusivas e engajadas, uma espécie de marketing de emancipação, capaz de inverter a lógica misógina de propagandas de cerveja, colocando mulheres fora do “padrão” machista como protagonistas, donas de seu querer e do seu beber.
Isto posto, preciso te lembrar: nada disso apagou e nem apagará, a curto prazo, o racismo entranhado na sociedade contemporânea. Ele permanece voraz e sedento de sangue dos corpos negros, de mulheres e demais minorias.
Em 2021 foi publicado um livro excelente (mais um!) do sociólogo Jessé Souza, um dos pesquisadores mais argutos e lúcidos do Brasil. “Como o racismo criou o Brasil” é já uma obra necessária para entender o racismo.
Mas não só entender. Jessé disseca e põe à mostra como ele funciona e cria o nosso país.
Afinal, o que é esse “racismo”?
Para o sociólogo, parte dos estudos acadêmicos hoje apenas prova a existência do racismo, mas não o explica propriamente.
Em obras anteriores, Jessé já alertava sobre as multifaces do racismo, apresentando, por exemplo, o racismo racial e o racismo de classe como dois de seus elementos, sendo o racismo de classe o núcleo central da construção das desigualdades em nosso país.
Esse racismo de classe seria constituído por diversos elementos, para além da pura explicação econômica. Há, entretanto, dois pontos fundamentais mencionados por Jessé:
1. A socialização familiar, que pode ser explicada como o processo pelo qual os pais e demais parentes próximos tendem a influenciar a formação da criança, servindo de espelhos ou modelos.
Ou seja, se o pai é leitor e estimula em seus filhos este hábito; se a mãe é estudiosa e provoca a curiosidade pelo saber; se o tio poliglota introduz a vontade de conhecer um novo idioma. Tudo isso alimenta o crescimento das crianças por meio da socialização familiar.
Isso não se restringe, porém, à questão da educação. Famílias ricas tendem a passar para seus filhos e netos os bens, mantendo o padrão familiar.
2. O capital cultural (que é invisível, mas que reproduz os privilégios intelectuais das classes médias). Ou seja, se as classes médias não são ricas, donas de grandes patrimônios, elas possuem o diploma, que é o capital cultural, e por meio dele conseguem seu sustento.
Esse privilégio, claro, passou a ser ameaçado com a democratização do acesso às universidades.
Estes dois pontos estão interligados, aprofundando o racismo de classe. Em “Como o racismo criou o Brasil”, contudo, Jessé nos apresenta um outro conceito, o de racismo multidimensional.
Para combater o racismo, de acordo com o sociólogo, é preciso atacá-lo como ele é: múltiplo, cultural, racial, classista… Sem essa compreensão do todo, não há discurso antirracista que se sustente.
A privatização do discurso de emancipação
Com a apropriação, por parte do Neoliberalismo, do discurso “inclusivo” das grandes marcas em seus comerciais e propagandas, Jessé demonstra que “ser engajado” virou moda entre as empresas, algo que esvaziaria o legítimo movimento por representatividade das minorias.
É nítido que as identidades periféricas passaram por um processo de capitalização por parte das marcas, principalmente as grandes marcas do mercado capitalista, que buscam se apresentar ao público como inclusivas e antirracistas.
Particularmente, vejo esse processo de inclusão como um mascaramento de uma realidade muito mais profunda de desigualdades. Enquanto determinada marca exalta o passinho e o funk, caracteres culturais periféricos, no mundo real as pessoas que praticam essa cultura permanecem sendo vítimas de preconceito.
Daí, imagino, há esse interesse em mascarar a desigualdade e o racismo vendendo a ideia de que a marca já estaria trabalhando contra isso. Ou, pior: que esses problemas sociais teriam deixado de existir e foram solucionados.
O racismo estrutural
Acredito que seja inegável observar que as desigualdades raciais na sociedade brasileira possuem uma estrutura sólida e bastante difícil de quebrar. Daí o conceito de “racismo estrutural”, talvez um dos mais importantes nos debates da sociologia contemporânea.
Contudo, há certa circularidade de explicações em torno disso. Como se déssemos voltas e mais voltas e não saíssemos daquela interpretação condicionante de que essa estrutura existe, e não é possível superá-la.
Que estrutura é essa? Segundo Jessé Souza, é impossível responder a essa pergunta sem levar em consideração as relações morais, distorcidas e ocultadas por estratégias de dominação. Toda ação social ou coletiva tem essas relações morais como motor principal, e é na deturpação delas que o racismo nasce e se estrutura.
A crítica do autor de “Como o racismo criou o Brasil” está justamente naquilo que ele considera como superficialidade dos trabalhos acadêmicos sobre o racismo.
A dica que o livro deixa é bem clara: não basta mostrar que o racismo existe, é preciso encontrar seus mecanismos, identificar seu funcionamento e, então, destruí-lo.
Este artigo foi escrito por Pablo Michel Magalhães e publicado originalmente em Prensa.li.