Comunicar o incomunicável
Um dos temas mais dramáticos da contemporaneidade é sem sombra de dúvidas, a crise das relações humanas; se hoje, essa problemática demonstra-se latente e explícita, em um passado recente já se demonstrava crescente em um outro nível.
Em 1960, Antonioni iniciava com A aventura, a série de filmes que seria aclamada como “trilogia da incomunicabilidade”. Aqui a incomunicabilidade apresenta-se de forma muito mais sutil e profunda do que pessoas metidas com seus smartphones; se apresenta especialmente no campo da incapacidade de relacionar-se, de interagir de modo real, de tratar as relações com verdade.
As grandes revoluções que aconteceram no século passado, me refiro obviamente no campo dos costumes, revestiram-se de uma roupagem libertadora, e em certa medida o eram sob certos aspectos, contudo, retiraram a objetividade de um modus operandi social que já vigorava há séculos.
O resultado não poderia ser outro, as pessoas encontraram-se absolutamente despreparadas para responder ao novo modo de ser nos mais diversos aspectos da vida social. No campo dos relacionamentos, a coisa foi ainda mais dramática, pois o homem e a mulher não podiam mais afirmar-se na posição de sempre, não que aquela fosse a melhor, mas qual seria?
É um pouco a premissa que Michelangelo Antonioni toma para iniciar sua trilogia. Em “A aventura”, protagonizado por Monica Vitti, Gabriele Ferzetti e Lea Massari, iniciamos acompanhando um passeio de barco pela costa italiana. É importante notar os cenários nesta obra, pois estes têm muito a refletir em relação aos personagens. Durante praticamente todo o filme somos imersos em cenários magistrais, gigantescos, completamente desprovidos de proximidade, intimidade, todos estão sempre muito distantes.
Na cena inicial do passeio pela costa, ocorre o sumiço de Ana, personagem de Lea Massari, que de alguma forma é o motor da trama. Desde o início somos tomados por uma sensação de mal estar, de uma expectativa de algo que deve ser dito, mas não sabemos exatamente o quê.
Após alguns dias de procura por Ana, o foco é desviado para uma relação amorosa que surge entre o namorado da desaparecida e sua melhor amiga Cláudia, personagem de Monica Vitti. Novamente somos imersos em um ambiente de desconforto, pela artificialidade da relação, e paradoxalmente, apesar da amplitude dos cenários, nos é gerada uma forte sensação de uma claustrofobia agônica, pela expectativa de um deslanchar que não ocorre. E tudo isso somado aos personagens secundários que não devem em nada aos protagonistas. Pessoas completamente fragilizadas em suas relações, absolutamente superficiais, que encontram na falta de profundidade, espaço para suas crises circunstanciais.
No segundo filme da trilogia, “A noite”, o cenário inverte-se, invés de grandes tomadas em campos abertos, ou em ambientes magistrais, somos transportados para uma radicalização da claustrofobia, em ambientes menores, intimistas, que ajudam a intensificar os elementos da narrativa.
A trama gira em torno de um casal em crise, interpretados magistralmente por Marcelo Mastroianni e Jeanne Moreau. Uma crise matrimonial cercada de enigmas, pois ambos não sabem expressar suas motivações, parece haver uma porta trancada em suas subjetividades.
Mais da metade do filme é ambientada em uma festa na casa de um industrial capitalista, que possui uma mentalidade excessivamente pragmática, e mantém sua filha, personagem de Monica Vitti, em um ambiente de enclausuramento emocional. Ocorre que os personagens se encontram, e nesse encontro há o entrelaçamento das ausências de sentido.
Giovanni, personagem de Mastroianni, acaba por relacionar-se rapidamente com Valentina, personagem de Vitti, com a intensidade de uma vela que se consome quase instantaneamente. Isso certamente gera uma expectativa no espectador, no sentido da descoberta da infidelidade de sua mulher Lidia, personagem de Moreau, mas o desfecho é mais evidente do que o melodrama narrativo que estamos acostumados a consumir nos indicaria, ou seja, a indiferença.
Nos momentos finais da trama, quando se ensaia algo perto de um diálogo real e baseado na verdade, ainda que no verdadeiro subjetivo, porém se interrompe com o que não sabemos se é uma reconciliação ou a reação natural do acomodamento do homem hodierno que não quer olhar para o espelho de sua fracassada tentativa de sobrevivência emocional.
Em O eclipse, capítulo final da trilogia, iniciamos de modo mais objetivo, não acompanhamos os caminhos que levam ao fracasso da relação, mas já iniciamos no fracassado. Acompanhamos já na primeira cena o término do relacionamento de Vittoria, novamente uma personagem de Monica Vitti, e Ricardo, interpretado por Francisco Rabal, na claustrofobia de um apartamento lotado de elementos cênicos muito significativos, em especial a moldura vazia que Vittoria segura com um constrangimento agudo por não saber com que preencher o vazio que o objeto, claramente metafórico, carrega consigo.
O filme caminhará em uma direção mais esperançosa que seus dois predecessores, pois a partir do envolvimento de Vittoria com Piero (Alain Delon), irá abrir-se uma pequena fissura que dá margem a um olhar otimista para o futuro das relações. No entanto, o espectador está observando um início, certamente promissor, mas ainda um princípio, que mesmo apaixonado não preenche todas as respostas do modo como se deve levar a cabo a relação entre o homem e a mulher contemporâneos.
A trilogia da incomunicabilidade trata-se de um conjunto indispensável para aqueles que estão debruçados sobre a jornada do enfrentamento ao dramático quadro dos relacionamentos humanos. Muitos acham a obra enfadonha, contudo, desde sempre o enfado e a reflexão são companheiros inseparáveis.
Este artigo foi escrito por Filipe Machado e publicado originalmente em Prensa.li.