Conhecimento e Internet, um conflito de consciência
Conhecimento e internet podem gerar conflitos que perfumam ou ferem. (Foto de Poan Studio no Pexels)
A batalha retórica sobre conflito entre conhecimento e internet começou, no Brasil, já nos primeiros anos do advento desse meio de informação. Não imediatamente, pois os analistas envolvidos nos efeitos da tecnologia ainda estavam como os ursos que nunca comem mel.
Décadas depois, as ciências do comportamento dispõem de elementos mais expressivos. Ao que parece, ainda não se chegou à conclusão evidente. Ou, pelo menos, a alguma suficientemente forte para que se tomem decisões sobre o fato.
Decisões, aliás, que renorteiem os rumos do conhecimento. Fala-se aqui de tratativas dadas por internautas sobre os vários tipos de conhecimento adquiridos na rede. São muitos, inumeráveis e, por isso mesmo, agrupáveis em características.
Tem-se que, geralmente, agrupamentos produzem conflitos. Na questão conhecimento e internet, geram também conflito de consciência porque, como se vê neste artigo, informações são capazes de elevar ou destruir uma comunidade.
Tripé do conhecimento na internet
De certa maneira e pelo quesito conhecimento, é possível representar a internet como um tripé que suporta uma plataforma. Assim, as pernas seriam o conhecimento…:
negativamente produtivo
inócuo
positivamente produtivo
E a plataforma seria a sociedade em si mesma. Há preponderância temporária ou longa de uma ou outra perna do tripé. Assim, essa plataforma-sociedade apresenta relações adoecidas ou saudáveis a depender do nível da preponderância.
Nota: convém, leitoras e leitores, ter em mente o conceito de dado, informação e conhecimento.
Dado é unidade informativa isolada não instrucional, isto é, dispor ou não dele não infere, não incentiva conclusões ou decisões. A placa de um carro, o número de RG de um cidadão ou a quantidade de crianças numa calçada são dados
Informação é conjunto de dados que possibilite alguma decisão ou comportamento
Conhecimento é a percepção dos elos entre as informações capaz de produzir efeito sobre algum nicho de atividade na coletividade
Este artigo pretende deixar uma questão a você, leitor. Esteja à vontade para responder ao fim.
Assimilação de conhecimento
O dia a dia do cérebro ao longo dos milênios o induziu a buscar apoio em grupos, em clãs. Essa postura natural se dá desde quando o ser humano começou a perceber a realidade a sua volta e interagir com ela. Daí para formação do sentido de família foi um pulo lógico; o passo seguinte foi constituição de coletividade, de sociedade.
Passados milhares de anos, essa necessidade permanece enraizada - clara e surpreendentemente, ainda que a tecnologia tenha levado o homem à lua e ao fundo dos oceanos. O ser humano ainda precisa viver em grupos; nos tempos atuais, em grupos virtuais.
Então, esses grupos mantêm a estrutura de assimilação de conhecimento até a atualidade: a partir de terceiros. Isso ocorre ainda que, em muitos casos, haja um processo complicado empírico, experiencial.
Necessidade de conhecimento
Foi por conhecimentos assimilados por terceiros que Einstein construiu seu próprio conhecimento. Não à toa, Isaac Newton teria dito que chegou longe porque esteve sobre ombros de gigantes. Assim, a humanidade como um todo evolui a partir da transmissão de experiências que o indivíduo acumula.
O artigo “O Processo Evolutivo das Bibliotecas da Antiguidade ao Renascimento”, de Josiel Machado Santos, lembra que “desde o início da humanidade, o homem tem se preocupado em registrar todo o conhecimento por ele produzido. Esta forma de registro evoluiu desde os blocos de argila até o armazenamento de dados em uma rede digital”.
Nesse contexto, o ser humano precisa tanto consumir quanto produzir conhecimento. O filósofo alemão Emanuel Kant considerava que conhecimento é inerente ao ser e provém de duas fontes: sensibilidade e entendimento. A primeira está centrada já no nascimento e pode ser chamada de intuição. A segunda é aproveitada durante a vida por meio da observação, que é o foco deste artigo, aliás.
Compartimentação do conhecimento
Assim, a ânsia por informações acompanha a humanidade, da argila pré-neolítica aos supercomputadores do Google. E, a exemplo da antiguidade, as informações continuam sendo compartimentadas e destinadas a determinados grupos, a clãs, a famílias virtuais.
O conflito de consciência no uso do conhecimento nasce nos interesses desses grupos.
Por sua vez, os compartimentos informacionais são departamentalizados. Assim, os setores absorvem certo tipo de conhecimento a depender de suas necessidades práticas.
Conhecimento e internet: perna negativamente produtiva
O conceito de “luta entre o Bem o Mal” é facilmente notado nas invenções humanas. O homem inventou a roda para facilitar o transporte; outro homem a usou para esmagar inimigos; o homem inventou arco-e-flecha para caçar melhor; outro homem o usou para se livrar de inimigos; criou o fogo para se aquecer; outro homem o usou para incendiar a coletividade vizinha.
Assim também tem sido ao longo da história das invenções. Não é diferente com a internet.
Conhecimento e internet: departamento de crimes
É preciso algum conhecimento para gerar crimes na internet, sejam eles quais forem. Alguns deles mostram até mesmo níveis de organização, como uma cabeça idealizadora → gestores operacionais → executores.
Esse organograma é visto nos roubos de valores de aposentados, nos envios de mensagens com vírus, na venda estelionatária de bens e serviços etc. Os praticantes necessitam assimilar algum tipo de conhecimento e este é geralmente conseguido diretamente na própria internet.
Engenharia social, técnica criminosa para levar usuários desavisados a dispor de seus dados pessoais e confidenciais, precisa também de certa hierarquia e conhecimento. Já bullying, injúria, racismo, discurso de ódio etc. via internet são crimes ou contravenções igualmente, mas dispensam arquitetura mais profunda - ainda assim, é necessário conhecimento mínimo para empreendê-los.
Conhecimento e internet: departamento de política
A maneira como o conhecimento é usado em favor da Política na internet deveria estar associado à perna “positivamente produtiva” do tripé. Entretanto, também nessa área, as vias digitais têm tratado o conhecimento tão negativamente quanto as tratam as vias tradicionais. Ou seja, assumiu os vícios.
São intensamente conhecidos os eventos de fake news que claramente interferiram nos resultados das eleições de 2018. De tempos em tempos, matérias do jornalismo rasteiro destroem a imagem de um candidato. Ou, ao contrário, esse jornalismo oculta conhecimentos deliberadamente a fim de contemplar seus próprios interesses.
Departamento de contra-conhecimento
O termo negacionismo ganhou espaço na mídia com o advento da pandemia. Extreministas de direita e até alguns de esquerda optaram por negar a eficiência da vacina. Mais que isso: foram à internet para fazer apologia contrária a ela. Nesse contexto, precisaram de conhecimento mínimo para expor seus pontos de vista.
O movimento de contra-conhecimento já atuava antes do espalhamento do coronavírus. Ideias como Terra plana, logro referente à viagem à Lua, Nova Ordem Mundial de dominação populacional, inexistência do holocausto contra judeus, teorias conspiratórias etc. já invadiam a internet muito antes. Geralmente, há algum cunho religioso como base de disparates semelhantes.
Apropriadores de conceitos científicos também se alastram pelo departamento de contra-conhecimento do tripé produtivo. São pseudocientistas que usam termos e ideias discutidas ou consagradas em pesquisas sérias para lançar movimentos metafísicos com intuito de locupletação.
Profissionais seriíssimos envolvidos em divulgação científica na rede mundial mantêm vídeos, textos e outros eventos para combater esse tipo de contra-conhecimento. O psicólogo Daniel Gontijo, a física Gabriela Bailas, o Neuromágico, Jason Ferrer, Antonio Miranda e muitos outros são estudiosos que atuam para diminuir o alcance do contra-conhecimento.
Conhecimento e internet: perna inócua
A segunda perna do tripé é lembrada no dito popular “nem cheira nem fede”. Trata-se de notícias - subnotícias, segundo muitos sociólogos que estudam relações comunicacionais - que não alteram a vida da sociedade como um todo. Talvez interfiram na vida de pequena comunidade que orbite os envolvidos, mas só.
O conhecimento alastrado na perna inócua da internet pode ser observado em sites de fofocas, em espaços virtuais de pequeno porte, páginas da chamada deep web (o submundo da internet de que pequena parcela da humanidade tem conhecimento), imagens e textos sobre o dia a dia de um cidadão ou cidadã, blogs e vlogs voltados a pequenos nichos de atividades etc.
Exemplos de inocuidade
Um exemplar de “conhecimento” desse tripé é manchete de jornal que virou meme: “Caetano Veloso estaciona o carro no Leblon”. Durante meses, o redator se viu espelhado nos sites de humor das mais diversas formas.
Outro modelo desprezível de perna inócua do conhecimento na internet retrata oportunismo do mais imbecilizante. Stephanie Matt, subcelebridade americana moradora na Inglaterra, tem arrecadado milhões de libras vendendo seus “puns” engarrafados na Internet.
Conhecimento e internet: positivamente produtivo
As sociedades mundiais evoluiriam muito mais rápida e eficazmente se a perna positivamente produtiva sobressaísse aos outros. Essa é a opinião da esmagadora maioria dos sociólogos, antropólogos e outros profissionais da análise do comportamento. É também o pensamento do internauta minimamente consciente.
Sociedade do conhecimento
Carlos Alberto Vogt foi presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - Fapesp de 2002 a 2007. Em 2005, ao receber o título de Doutor Honoris Causa da Escola Normal Superior de Letras e Ciências Humanas - ENS-LSH em Lyon, na França, assim definiu a “Sociedade do Conhecimento”:
“Um dos pressupostos essenciais da chamada sociedade ou economia do conhecimento é, para muito além da capacidade de produção e de reprodução industriais, a capacidade de gerar conhecimento tecnológico e, por meio dele, inovar constantemente para um mercado ávido e nervoso nas exigências de consumo”.
Com isso, Vogt identificou o cerne mais profundo e importante do “tripé-internet”, o positivamente produtivo: produzir e distribuir conhecimento, criando mecanismos para desenvolvimento da inteligência.
Kleber Carrilho é articulista do site Prensa. Publicou recentemente o ensaio “Para mim, ‘a Terra é plana’”. O enredo desenha com excelente remate a questão da consciência na absorção do conhecimento atualmente.
Departamento corporativo
As empresas são os subcompartimentos que mais vantagens adquirem no conflito conhecimento e internet. Foi esse nicho que mais imediata e facilmente se apoderou da perna “positivamente produtiva”. Com maestria, passou a desenvolver mecanismos para criação, manutenção, registro e aplicação de conhecimento.
Gestão do conhecimento
O austríaco Peter Ferdinand Drucker é considerado o “Pai da Administração” [corporativa]. Sua vida se estendeu por todo o século 20, tendo falecido em 2005. Foi um escritor, professor e consultor. Ao analisar sua obra, J. R. Santiago, também consultor, entende que o pensador europeu previu a atual preocupação com o conhecimento como base social.
Santiago destaca que Drucker via “conhecimento” como futura base econômica, sobrepondo-se à mão de obra, indústria e agricultura. “A forma pela qual as empresas buscam registrar, compartilhar e disseminar seus conhecimentos [...] é garantia para que haja atendimento dos resultados organizacionais”, diz.
Departamento educacional
A educação acadêmica - e, por conseguinte, a científica - está lado a lado com a corporatividade nas questões da criação, registro e disseminação do conhecimento. Por isso, é também atividade que assume todas as vantagens oferecidas pela sociedade do conhecimento.
Assim, alunos e professores têm se habituado a pesquisar temas importantes por vias virtuais. Dessa maneira, absorvem, acumulam, usam e fazem alastrar conhecimento de maneira segura e efetiva.
Questão ao leitor ou leitora
O conflito de consciência que conhecimento e internet propõem é notado nos milhares de discussões mundo virtual afora. Em boa parte, essas discussões terminam associadas à perna inócua da produção de informações. Por outro lado, há momentos em que esses embates retóricos ganham ares de inconsciência social.
Assim, ficam duas questões às leitoras e leitores: na sua visão, a consciência da sociedade brasileira está fortalecendo qual perna do tripé? Sobre qual das três pernas a plataforma-sociedade está sustentada agora?
Este artigo foi escrito por Serg Smigg e publicado originalmente em Prensa.li.