Conjuração CulturariE
A quem possa interessar, apresento este Cinzel e este Lápis: o CulturáriE.
Percebe-se, cada vez mais, que, aqueles operáriEs das culturas artísticas e de seus bastidores são os integrantes que mais se reinventam na sua função oficial. Acima de tudo, é fundamental ressaltar que nenhum ser humano é por si só uma pessoa de apenas uma habilidade. Deve-se produzir um conceito que atenda a necessidade de sujeito de aprendizados, que desenvolva seus saberes e seu saber-fazer no decorrer de sua caminhada. Evidentemente este aspecto pessoal de ser um ente em construção é que movimenta toda a cadeia de culturas em que os humanos, enquanto seres individuais e coletivizados, estão imersos.
Quem escreve aqui é Leo Dovalho, livre pensador mineiro e propositor de ações que reduzam os impactos da flutuação do comércio das artes e de suas manifestações, pois é das culturas artísticas (elas possibilitadoras das manifestações de expressão do apreciável, reflexivo, fruitivo e construtor, focadas na discussão de humanidades e suas condições, ou seja, dos fazeres que congreguem o estético e as emoções) que se valem economicamente para (re)existir de forma digna o artífice das maneiras e sentimentos – Artista em qualquer de suas expressões.
Todas estas questões devidamente ponderadas, levantam dúvidas sobre haver qualidade na manifestação sem um suporte Técnico&Lógico oferecido por outros agentes que auxiliem na construção da expressão de forma anterior, concomitante e posterior a concretização da mesma. Neste sentido, coexistem duas tendências de modo heterogêneo, revelando que a expressão artística está intimamente ligada a um campo de possibilidades erguido sobre Técnicas&Lógicas de seus oficiantes nos bastidores. Assim, é incoerente chamar de artista o Técnico, e de técnico o Artista.
O Artista é aquele que se assume artista e o técnico, aquele que tem como ofício principal o saber das maneiras de operação para além de um objeto específico – ou seja, é aquele que sim, se assume Técnico. O que temos que ter sempre em mente é que esta visão aristotélica e extremamente orquestrada, ordenada e por si só simplória, não é a completude nem muito menos o real do assunto, afinal, Artistas sabem suas técnicas, e os Técnicos sabem muito de sua arte. Gostaria de enfatizar que há cinzel sem lápis e o contrário também, mas que de forma a operarem juntos, na função de burilar e conduzir, de criar e resistir, do metal e da madeira, ambos são ferramentas de construção de uma sociedade não só produtiva mas também completada pela sensação de participar e de expressar algo muito além do que se é possível ordenar, da experiência primordial que nos iguala a qualquer outra experimentação de (ou com) uma divindade.
Temos um período definido de vida, mas a cada segundo, podemos criar e expressar nossa criação. É através desta experiência, deste sentimento e experienciação que manifestamos o que há de mais sagrado no trilhar do dia a dia, do comum, do normatizado. Vejam que não estou aqui confrontando a existência de nenhuma divindade, eu só estou expondo aqui que o que nos é sacrário e nos permite comungar de uma sociedade contente consigo mesma é a capacidade de expressar-se livremente através de um bastidor, de um garantidor anterior a expressão que se manifesta de forma única a cada novo observador.
Cinzel, lápis, artista, técnico, bastidor e expressão: Dependência? Linguagens distintas? Objetivos divergentes? Complementos? Poderia ser sugerido, entretanto, que, a existência de um é independente de outro, e o é... mas também, a existência de ambos juntos é muito mais do que uma obra fantástica, é um legado, um matrimônio e patrimônio do Real além de suas verdades e fragmentos. No desenho em madeira, de forma robotizada, sabe-se que uma mesa é uma mesa, mas é através do escultor, do marceneiro, dos oficiantes, que o veio e a estética da direção das fibras da madeira complementam a experiência sensorial ligada à emoção. E se uma mesa se reinventa para que sua expressão se destaque, o seu escultor e o seu marceneiro, cada qual, guardião de vários saberes e de seu saber-fazer, complementam-se na mudança, adaptam-se ao Real, ao intangível, ao não imersível, a aquilo que só pode ser fruído pela observação, pela complementação apenas na experiência pública.
Não devemos trazer mais uma carga a estes CulturáriEs, o de ser mecenas de sua própria manifestação, nem muito menos a importunação de precisarem construir um produto de venda para rápido consumo e espetacularização. A coisificação das expressões culturais só importam a aqueles que deixam, baumanianamente, os significados escoarem através de si sem serem engrandecidos ou tocados por estas sensações. Ora, aquilo que como um rio, simplesmente flui com o único propósito de mudar de lugar, não pode proporcionar que o ser se torne diferente na próxima vez que entrar nele, em seu fluxo sistólico e diastólico de diferenças heraclitianas. Uma obra estática, fixa, insolúvel, com apenas um sentido, imutável, já possui alí seu propósito e independente de sua alteração no mundo, está falida, significada, determinada por isso, com seu sentido atingido, não se manifesta emocionalmente. Há expressão, há bastidor, há cultura que sirva para algo? Não há serviço para a expressão, há ofícios: o que cria, o que proporciona e o que troca.
Subcinctus mutationis.
Pensando mais a longo prazo, é na continuação, progressão, evolução, mudança, ou seja, em tudo que não “está” mas sim, naquilo que se “é” onde se encontra o saber e o saber fazer CulturariE.
Deixem que mudem, que se recriem, que se cubram e redescubram, que fluam e que ressignifiquem aqueles que a partir de hoje se chamam CulturáriEs.
Foto-colagem por Leo Dovalho
Este artigo foi escrito por Leo Dovalho e publicado originalmente em Prensa.li.