Considerações sobre o ressentimento e suas imagens em Nietzsche.
1. Definição do Ressentimento - O que é, como se dá, seu agir subjetivo
Se pudermos resumir o que é o ressentimento, diríamos que se trata de um pathos, um ‘’acontecimento’,’ que surge da passividade frente a ação, de uma má digestão psíquica de um afeto (tal como um alimento mal digerido pelo estômago) da negação da ação primeira, da submissão à ação segunda, da busca pela vingança imaginária para retratar o que lhe foi negado ‘’por direito’’, do eterno lembrar, relembrar e remoer dos afetos ruins que não puderam ser respondidos de uma vez, como se desejava. O afeto do ressentimento age no homem ressentido como um narcótico, um veneno, que faz com que o homem não possa se impor como gostaria frente às adversidades, faz com que fique paralisado.
Nietzsche busca tipificar o homem do ressentimento como aquele que, sendo fraco e malogrado, busca nos valores do homem forte uma negação para poder se afirmar, enquanto o homem forte busca dentro de si o seu valor do que é bom. Assim, o que o homem forte entende por bom, o homem do ressentimento, fraco, entende por ruim. Seus valores, o do homem do ressentimento, são uma espécie de vingança imaginária a esses valores que o homem forte tem como Bom. No que tange ao lembrar e ao esquecer, o homem do ressentimento é a figura que nunca esquece, se lembra de tudo, enquanto o homem forte tem uma ‘’força remodeladora, plástica’’ capaz de esquecer. O exercício de poder e domínio do forte é tornado em uma coisa vil e cruel na boca do homem ressentido.
O Homem fraco faz de sua própria fraqueza um ‘mérito’. Assim, a noção de livre-arbítrio é determinante para justificar a ação ressentida do homem do ressentimento. É como se houvesse escolha para o homem forte não exercer o seu domínio, sua resistência, seus triunfos. Assim, o homem passivo, servo, submisso se entende como merecedor por sê-lo. O Homem fraco declara guerra contra o que entende por ‘’injustiça’’: é sempre o outro, o não-eu, que deve ser punido por seus feitos sórdidos. O homem fraco espera ansioso o ‘juízo final’ para que o homem forte possa responder por seus atos vis contra ele mesmo, possa exercer sua vingança que tanto aguarda.
> 2. Ações do Ressentimento, seu agir social.
Há uma reviravolta na forma de como concebem-se valores no pensamento ocidental e Europeu que Nietzsche se situa. O filósofo chamará essa inversão de ‘’rebelião escrava da moral’’. Nobre e Escravo são adjetivos empregados aqui para clarificar o tipo de moral que Nietzsche descreve e faz sua crítica. Trata-se de dois conceitos que o filósofo emprega e engloba em sua tipologia. As categorias aqui tratam-se de uma aristocracia de pensamento, e não necessariamente de uma aristocracia de castas sociais. O ressentimento torna-se criador de valores, um instrumento de cultura e de domínio dos fracos (escravos) para amansar e dominar os fortes (nobres). A vida para o filósofo é a vontade de poder, uma luta constante que busca sempre a elevação de poder. Entender a vida como se o tipo de vontade de todos fosse equivalente é para o filósofo uma das categorias que determinam como o ressentimento criou valores e os petrificou. Ao estabelecer a crítica contra Eugen Düring, que para Nietzsche entende a justiça como um decorrer do sentimento de ‘’estar-ferido’’, O filósofo descreve uma forma de justiça afirmativa. O homem justo não se assalta a injúria pessoal e a calúnia; e sempre envolve uma forma de valoração que nunca é uma resposta vingativa a algo, mas sim uma afirmação primeira, como uma luta contra os contra os afetos reativos. Nietzsche também destaca o caráter objetivo e impessoal da justiça, quando transfere o olhar pessoal para o impessoal, atribuindo a Lei como medida. Dessa forma entende-se que, o ressentimento pode ser empregado somente por aqueles que se veem sem poder, e apostam em uma ‘justiça’ que vá vingá-los, como dito antes. O homem forte, ao contrário, não aguarda nada, ele toma o poder para si.
No que toca ao sistema político, Nietzsche faz considerações interessantes sobre o papel e origem do estado: O estado de direito, é na verdade um estado de exceção. As restrições parciais (ou, a depender da configuração do estado no tempo, totais) da liberdade e da vontade, aparece aqui como objetivo de criar mais células e unidades de poder, e de estabelecer uma ordem comum e soberana, contra toda a luta, ‘’em nome da paz’’. Dessa forma, Nietzsche rejeita a visão dos contratualistas de que o estado seria um contrato firmado com o soberano, e considera o mesmo como uma ruptura, uma ação coercitiva, tirânica. Em última palavra: O estado surge da dominação de um povo sobre outro.
Esses ‘’artistas inconscientes’’ diz Nietzsche, porque o filósofo entende a própria vida como criação, também criaram uma estrutura de domínio, que foi se desenvolvendo ao longo dos tempos e hoje em dia carece de um sentido primeiro. A má consciência, que para Nietzsche é fruto de um desenvolvimento das forças reativas que preponderam sobre as forças ativas, propiciada por um ressentimento ímpar[1], não poderia ter surgido se ‘’a fortes golpes de martelo’’ um ‘’enorme quantum de liberdade tivesse sido retirada do mundo’’[2]. O instinto de liberdade e vontade do homem, com o advento do estado, se torna acuado, reprimido, e só pode, portanto, escoar-se em si próprio. O que acontece quando não se pode mais exprimir sua vontade como lhe surge, mas antes lhe é acometido por um pathos (acontecimento ou paixão) da inércia e da inação, contaminados pela forma de valoração da moral do fraco? A má-consciência tem a sua origem. Assim, para evitar equívocos, o homem ressentido não necessariamente escolhe o ser. Há uma questão temporal e histórica em sua ação ética e moral. A questão nietzschiana final é: como transvalorar esses afetos tão impregnados na cultura.
>3. Imagem do Homem do ressentimento e seus ‘tipos’ ou ‘imagens’
Dita a relação entre ressentimento e subjetividade, e, ressentimento e configuração social, agora vamos aos ‘tipos’ ou imagens do ressentimento estabelecidos por Nietzsche,. Primeiro, Nietzsche fala sobre Aves de Rapina e de Ovelhas: ‘’As ovelhas dizem entre si: ‘’As aves de rapinas são más; e quem for o menos possível ave de rapina, e sim o seu oposto, ovelha - e este não deveria ser o bom?’’[3], Enquanto as aves de rapina dizem: ‘’nós nada temos contra essas boas ovelhas, pelo contrário, nós a amamos: nada mais delicioso que uma tenra ovelhinha’’[4].
Nietzsche opõe também a valoração aristocrática Romana contra a valoração Judia. Onde os valores do segundo seriam uma resposta aos valores nobres do primeiro, assim como o Apocalipse de João seria a ‘’A mais selvagem das investidas que a vingança tem na consciência’’[5]. A Renascença seria para Nietzsche uma redescoberta do modo nobre de valoração das coisas, sendo respondida com o advento plebeu da Reforma Protestante. Em decorrência disto, a Revolução Francesa foi uma vitória plebeia contra os instintos políticos nobres da França do século XVII e XVIII.[6] Quem responderia contra essa investida, seria justamente Napoleão Bonaparte, que Nietzsche diz se tratar de uma síntese de inumano e supra-humano[7].
O sacerdote ascético: O médico que usa o ressentimento como ‘’cura’’
O ideal ascético produzido pelo sacerdote ascético, pressupõe uma existência exterior à própria existência, colocando a vida como uma ponte para tal existência à ser atingida, por meio de práticas, condutas, ações. Tanto na sua forma de valorar o mundo como na vida, condenam a existência mesma como um erro a ser redimido. Tal forma de vida é uma contradição, diz Nietzsche, porque além de ser niilista, pois nega a própria vida, é estabelecido uma vontade de poder que deseja dominar não algo, mas a própria vida, buscando usar da força para estancar a própria fonte da força[1]. O ideal ascético olha com ódio e rancor o florescimento fisiológico da vida, contra sua expressão de beleza e alegria, buscando satisfação na feiura, tristeza, na negação de si mesmo como ser humano, no autoflagelo e no auto sacrifício.[2] Quanto mais doente fisiologicamente se torna o homem dos ideais ascéticos, assim como quer o sacerdote, mais vencedores e triunfantes se tornam seus ideias.
Tal condição doentia do homem, embora seja a ‘’normalidade’’, faz Nietzsche pensar na necessidade de uma separação entre sãos e doentes. Os fracos e doentes, que têm ânsia pela vingança contra os fortes, e contra toda expressão de vida e vitalidade, obtém triunfo em introduzir na consciência dos fortes a sua miséria e infelicidade, quando o homem do ressentimento perpetua a condenação da felicidade por si só, quando introduzem culpa em todas as ações livres do ser humano. A boa companhia, para Nietzsche, é fundamental para que os afetos do ressentimento não introduzam na consciência seu veneno.
O sacerdote ascético necessita de médicos e enfermeiros doentes, para medicar os doentes da vida a seu gosto e necessidade. ‘’A dominação dos que sofrem é seu reino’’, Diz Nietzsche. Porém, a doença do sacerdote não pode ser a mesma da doença do enfermo que pretende ‘’curar’’, e sim ser uma representação de força, de ave de rapina. O médico do ressentimento, precisa primeiro ferir o seu paciente, e ao cuidar do ferimento, envenená-lo, a fim de infectar tudo com sua forma de valoração doente, fraca e mansa. Assim, esses supostos médicos são na verdade domadores. O ressentimento é um afeto explosivo que é direcionado ao bel prazer do sacerdote. Quem sofre, busca constantemente a causa de seu sofrimento, um agente responsável por sua dor, a fim de que possa descarregar o afeto ‘’entalado’’ em sua consciência, a fim de obter um entorpecimento e alívio. ‘’É o desejo de entorpecimento da dor através do afeto, um contragolpe defensivo’’[3]. O que o sacerdote faz, é redirecionar esse afeto não para fora, ou para alguém, mas para o próprio sofredor. ‘’Sim, alguém é culpado por seu sofrimento, e esse alguém é você’’[4], fomentando toda a estrutura doente de sua valoração moral.
Esse tal ‘’instinto-curandeiro da vida’’ ou ‘’melhorador da vida’’, usou da culpa, do pecado, da corrupção do homem, para mantê-los numa posição doente e incurável, portanto, carentes da salvação. Além desse objetivo do sacerdote de ferir e oferecer a cura para a própria ferida, Nietzsche diz que por meio do ascetismo rigoroso, o sacerdote buscou manter seu ‘’rebanho’’ disciplinado e controlado, por meio da autodisciplina e auto vigilância de si próprio. A igreja é, para o filósofo, o lugar de concentração e organização desse rebanho doente, onde se estabelece a distância entre os sãos. Nietzsche também diz que a natureza pecaminosa se trata de uma interpretação vinda de uma ‘’má-disposição fisiológica’’. Quando alguém se sente culpado, não quer dizer necessariamente que a pessoa de fato é culpada e está sofrendo por consciência de seu ato pecaminoso. É possível encontrar culpa onde não há, tal como as bruxas que acreditavam ser culpadas por seu inquérito, mesmo não havendo culpa alguma.[5] A própria dor da alma, é uma interpretação de um fato que não pode ser obtido com exatidão, e no lugar de um ‘’seco ponto de interrogação’’ se colocou uma ‘’palavra obesa’’ como solução.
‘’Um homem forte e bem logrado, digere suas vivências (feitos e malfeitos incluídos) como suas refeições, mesmo quando tem de engolir duros bocados. Se não ‘’dá conta’’ de uma vivência, esta espécie de indigestão é tão fisiológica quanto a outra – e muitas vezes, na verdade, apenas uma consequência da outra’’[6]
[1] GM,III,11
[2] GM,III,11
[3] GM,III, 15
[4] Ibid.
[5] GM,III,16
[6] Ibid.
> 4. Possíveis Soluções para o ressentimento.
‘’Amor-Fati’’.
‘’Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas: - assim me tornarei um daqueles que fazem belas as coisas. Amor-fati [amor ao destino]: seja este, doravante, o meu amor![...] Quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim’’ [gaia ciência]
A vida tornou-se-me leve, a mais leve, quando exigiu de mim o mais pesado[...] Minha fórmula para a grandeza no homem é o amor fati: nada querer diferente, seja para trás, seja para a frente, seja em toda a eternidade. Não apenas suportar o necessário, menos ainda ocultá-lo – todo idealismo é mendacidade ante o necessário – mas amá-lo (Nietzsche, Ecce Homo ‘’Porque sou tão inteligente’’ #10)
Por Sim, com S maiúsculo, Nietzsche entende a afirmação do forte, que contrapõe o Não e a negação do fraco. Mesmo quando o forte diz Não, ele está dizendo um grande Sim, pois até a sua negação diante de algo parte de uma afirmação como valor.
Na Segunda Consideração Extemporânea, Nietzsche ainda estabelece duas reflexões que seriam fundamentais para o conceito do amor-fati. Primeiramente, fomenta a importância do esquecimento, em uma bela passagem que usa Heráclito para exprimir o pensamento do espírito que afirma a vida, onde diz que ‘’Todo agir requer esquecimento: assim como a vida de tudo o que é orgânico requer não somente luz, mas também escuro [...] Portanto: é possível viver quase sem lembrança, e mesmo viver feliz, como mostra o animal; mas é inteiramente impossível, sem esquecimento, simplesmente viver’’ (Nietzsche, 1874) O homem sem o poder do esquecimento, está condenado a infelicidade, a ver um eterno vir-a-ser, a não acreditar mais em si mesmo. O segundo conceito é uma alteração do lema memento mori (lembra-te que hás de morrer) para o conceito memento vivere (lembra-te que hás de viver):
‘’Outrora esse memento mori, clamado à humanidade assim como ao indivíduo, era um aguilhão sempre torturante e como que o ápice do saber e da consciência medievais. A palavra do tempo moderno, clamada em oposição a ele: memento vivere, soa, para falar abertamente, ainda bastante intimidade, não vem a plenos pulmões e tem, quase, algo de desonesto. Pois a humanidade ainda está firmemente assentada sobre o memento mori e denuncia isso pela sua universal necessidade histórica: o saber, a despeito de seu mais poderoso bater de asas, ainda não pôde arrancar para o ar livre, restou um profundo sentimento de desesperança, que assumiu aquela coloração histórica de que agora estão soturnamente envoltas toda a educação e cultura superiores’’ (Nietzsche, 1874)
A contraposição entre memento vivere e memento mori que Nietzsche faz em sua juventude, não foi esquecida. Enquanto um pressupõe o lembrar da morte, como se a vida fosse somente uma passagem a outra esfera como prega certo tipo de cristianismo, memento vivere é a justificativa para se agarrar na vida, a vida imanente.
Ecce homo: coisas menores
Seguindo a trilha árdua e cheia de armadilhas do ‘’dizer-sim’’ a vida, Nietzsche diz no Ecce Homo para se atentar nas pequenas coisas mais do que nas grandes coisas. Por pequenas coisas ele se refere à alimentação, lugar, clima, distração e toda a casuística do egoísmo. Tais coisas são infinitamente mais importantes do que tudo que foi tomado como ‘’coisas grandes’’ até agora, tal como ‘’Deus’’, ‘’alma’’ , ‘’virtude’’, ‘’além’’, ‘’verdade’’, ‘’vida eterna’’, que segundo Ele, são ‘’Mentiras oriundas dos instintos ruins de naturezas doentes, nocivas no sentido mais profundo’’(Nietzsche, Ecce Homo ‘’Porque sou tão inteligente’’ #10). E é exatamente essas coisas que teremos que reaprender. Nietzsche ainda vai além e diz que ‘’todas as questões da política, da ordenação social, da educação foram por eles falseados até a medula, por haver-se tomado os homens mais nocivos por grandes – por ter-se ensinado a desprezar as ‘’coisas pequenas’’, ou sejam, os assuntos fundamentais da vida mesma..’’ (Nietzsche, Ibid, Grifo meu)
Neste mesmo livro, o Ecce Homo, Nietzsche ainda tratará um pouco mais da relação entre Dionísio e a afirmação absoluta da vida. ‘’A vontade da vida, alegrando-se da própria inesgotabilidade no sacrifício de seus mais elevados tipos’’, a isso ele chama de dionisíaco. ‘’Não para livrar-se do pavor e da compaixão, Não para purificar-se de um perigoso afeto mediante uma veemente descarga – assim o entendeu mal Aristóteles (Ele está se referindo ao livro da Poética, referente a Catarse) mas para, além do pavor e da compaixão, ser em si mesmo o eterno prazer do vir a ser – esse prazer que traz em si também o prazer no destruir’’ (Nietzsche, Ecce homo, ‘’O nascimento da tragédia’’, #3, grifo meu). Neste mesmo aforisma, Nietzsche estreita a sua relação com Heráclito:
‘’a afirmação do fluir e do destruir, o decisivo numa filosofia dionisíaca, o dizer Sim à oposição e à guerra, o vir a ser, com radical rejeição até mesmo da noção de ‘’Ser’’[...] A doutrina do eterno-retorno, ou seja, do ciclo absoluto e infinitamente repetido de todas as coisas – essa doutrina de Zaratustra poderia afinal ter sido ensinada também por Heráclito. Ao menos encontra-se traços dela no estoicismo, que herdou de Heráclito quase todas as suas ideias fundamentais’’ (Nietzsche, Ecce Homo, ‘’O Nascimento da tragédia’’ #3)
A relação do estoicismo no pensamento do amor-fati de Nietzsche, influenciada pelos mesmos. Mesmo durante uma dificuldade ou melhor uma catástrofe, durante o sofrimento, perpetuar o dizer Sim, a vida, infinitas vezes. Com isso Nietzsche não pretende tratá-la como uma ascese, e sim como um preceito dionisíaco, Criador, redimido de toda memória danosa, todo o espírito de vingança paralisante, todos os hábitos decadentes que levam ao humano um projeto de humano. Nietzsche no Zaratustra, diz que o humano está situado, como um equilibrista, em uma corda atada ao abismo: Atrás está o macaco, a frente está o Ubermensch, o além-do-homem, ou o suprahomem. O homem, portanto, é apenas uma passagem. O homem malogrado e fraco flerta com o macaco, o homem forte flerta com o além-do-homem.
Este artigo foi escrito por Felipe Cyrillo e publicado originalmente em Prensa.li.