Consumismo, Moralidade e Excessos da Sociedade Digitalizada
Nas últimas semanas, repetindo o fenômeno registrado nos últimos anos eleitorais, muitos casos de racismo e LGBTfobia foram reportados nas redes. Em uma parcela significativa da sociedade, a chamada liberdade da crítica confunde-se com a tática antissocial de esvaziamento de debates e do progresso social, onde a suposta moralidade é dada como “justificativa”, mas nada mais é do que um tipo de tática muito explorada.
Um destes exemplos de esvaziamentos de debates, a partir da tentativa de manutenção do poder, do status quo, se dá através do uso de artifícios legais para a deslegitimação de um membro ou de um movimento inteiro.
Um exemplo é o caso do vereador de Curitiba, Renato Freitas (PT), que por buscar levantar sua voz pela justiça sobre um acontecimento bárbaro (a morte de Moïse Kagambe), está sendo ameaçado de cassação por aqueles que deveriam ser seus colegas de parlamento, na construção de leis para o benefício da população como um todo - e não o contrário.
Outro exemplo vem das redes sociais, durante os comentários sobre o reality show BBB - Big Brother Brasil - onde supostos fãs de alguns participantes fizeram ataques racistas sobre outros participantes presentes no reality, pelo princípio de "fortalecer" os seus participantes preferidos.
Logo, as eliminações com percentuais altos foram utilizadas como táticas "antijogo", também como parte da tática de esvaziamento de debates e de alternativas, num país onde grande parte da população é negra, mas pouco se vê pelas plataformas tradicionais de comunicação e entretenimento.
A partir deste e de outros exemplos vindos das redes sociais, vêm perguntas sobre:
Como isso acontece de uma maneira frequente e chocante perante os usuários que pedem o respeito, a responsabilidade daqueles que cometem os crimes, e a pluralidade dos pensamentos?
Quais mecanismos são utilizados na construção desta tática considerada até como intimidadora?
O que as redes e a sociedade podem fazer para seu combate?
São perguntas de uma pesquisa e reflexão sobre o uso, a manipulação, e a comodidade extrema que, de maneira conjunta, são os ingredientes de um caos social digitalizado.
Começamos pela popularização dos movimentos sociais, especialmente a partir dos anos 70, em alternativa aos movimentos considerados conservadores, tradicionais, como um contraponto ao modelo que é estimulado por outras frentes - em especial, pela frente religiosa.
Esses movimentos buscam enfrentá-los, considerando como forças "anti patrióticas", "divisionárias", "identitárias", por não refletirem sobre as demandas desses movimentos que passam a ganhar corpo, popularizar e fazer frente a ela.
Os movimentos conservadores foram fortemente beneficiados até pela propaganda, durante os anos militaristas, e a comodidade - aliada ao consumo de informações vindos da propaganda (orientadas aos princípios da "moralidade" e do "patriotismo") -, somada a "não estranheza" e a "não alteridade", as fizeram obter a sensação de viverem com um fenômeno chamado de excesso de positividade naqueles tempos.
Com o passar das décadas, os movimentos sociais ganham espaços nas políticas afirmativas dos governos da nova era democrática, porém também se formou uma espécie de política reacionária por parte dos movimentos conservadores, que passa a articular processos de manutenção de seus status, tais como a "criminalização da política" e nos desmontes das estruturas para estas políticas.
Entre estas políticas afirmativas, hoje fortalecidas e respaldadas tanto pelos movimentos como pela jurisdição, estão desde as leis de combate à discriminação social como também o combate à violência até os mecanismos de inclusão social nos institutos de ensino e instituições públicas e privadas de todos os setores.
A Sociedade do Cansaço e dos Excessos (de informação e propaganda)
Na página Sociotramas, Marcelo Vieira Graglia menciona Lipovetsky ao abordar o comportamento da sociedade - que remete-se à busca incansável da felicidade, cada vez mais distante, cujo ideal se apresenta no conforto.
Paralelamente, essa sociedade, dependente dos progressos das leis e das condições de existência nesta vida e neste mundo, não aceita o sofrimento passivo para este alcance.
Graglia explica que a moralidade é tradicionalmente atropelada pelos estímulos e pelo ethos de uma sociedade, que busca a vontade de melhorar de vida, através de dois fatores: "O consumo, perpetuum mobile do capitalismo, é o moto-contínuo que debocha das leis da termodinâmica e mantém a roda girando, com seus dentes afiados que arrancam nacos do planeta, degradando-o, e da sociedade, gerando apartados e excluídos"; enquanto que o espetáculo é a combinação do sensacionalismo, da fofoca e das trivialidades quais são interferentes como o "elemento dinâmico nas transformações do imaginário, na sensibilidade e nos mecanismos de percepção da realidade das populações das metrópoles modernas".
Embora os mecanismos de comunicação tenham evoluído, a ponto de novas técnicas para a realização dos serviços de informação e de propaganda sejam elaboradas e implementadas, a sofisticação das táticas de tais propagandas configuradas com o intuito da "pós verdade", do "sensacionalismo", da "espetacularização", aliadas ao fenômeno das Fake News contemporâneas, desafiam as leis dos regimes democráticos, ao passo que a sociedade está fadada a assimilar estas de maneira acrítica e extremamente assertiva - e esse perigo já é alertado em diversas obras, mais especialmente a que destaco no parágrafo a seguir.
Paralelamente às táticas e os confrontos, vêm-se a leitura de Byung-Chul Han, em seu livro, a Sociedade do Cansaço, sobre os excessos de consumo e assimilação. Nela, Han aborda o excesso de positividade, pela não estranheza, e pela não alteridade, embora ressalta que “o paradigma imunológico não se coaduna com o processo de globalização. A alteridade, que provocaria uma imunorreação atuaria contrapondo-se ao processo de suspensão de barreiras. O mundo organizado imunologicamente possui uma topologia específica".
O alerta dado por Han é acerca do excesso de comodidade e da positividade acrítica. Isto é, onde as doenças neurais vão se instalando como a principal patologia do séc. XXI. O autor menciona a teoria de Baudrillard, na qual considera o totalitarismo como parte, devido aos tempos de carestia, onde a preocupação está voltada à absorção e assimilação.
Onde, em épocas de superabundância, o problema volta-se para a rejeição e expulsão, pois o igual não leva à formação de anticorpos, logo, cria-se a necessidade de distinção entre a rejeição imunológica e não imunológica.
Logo, a dialética da negatividade é o traço fundamental da imunidade, uma vez que a autoafirmação imunológica, onde o próprio indivíduo sucumbe, torna-se a negação da negação. Isto é, pratica-se uma auto violência para própria proteção, e desta faz-se o desaparecimento da alteridade e da negatividade. A violência já não é mais relacionada ao outro, mas sim também ao igual.
O DNA do Vírus Fake News e a vacina para seu combate
Em 2019, foi criada uma ferramenta de combate às notícias falsas chamada Grover, através de pesquisadores de Washington. Através da Inteligência artificial, a ferramenta é capaz de não apenas criar notícias falsas como também detectar quais conteúdos apresentam essas falsas veracidades.
Isto é, uma criação da proteção, da cibersegurança, tal qual um vírus biológico, quando identificado o seu genoma, dá-se origem a uma vacina que a combata. A conclusão da pesquisa feita e divulgada pela imprensa é que “a chave para a detecção do conteúdo falso não está na verificação da veracidade dos fatos - como normalmente fazem jornalistas para rebater fake news criadas por seres humanos -, mas na forma como os textos são construídos”.
No artigo "Fake News: Estética e Design", Graglia menciona o estudo de Lúcia Santaella sobre o mecanismo e design das fake news brasileiras, cujo destinatário é retratar a própria bolha de desejos e crenças a que pertencemos. Entre as imagens reportadas no estudo, grande parte das referências convergem para o nacionalismo, o conservadorismo, o militarismo e o fanatismo religioso.
Quando se olha para a estética dos conteúdos falsos estudados por Graglia, em construções cuidadosamente lapidadas, são observadas três coisas: o exagero, onde são usadas em tonalidades histriônicas, no uso de caixa alta nos textos, por meio dos títulos apocalípticos e dos testemunhos distorcidos de altas patentes e celebridades; a urgência, por meio das chamadas para a ação direta aos compartilhamentos; e o processo, logo, a infraestrutura que faz esses conteúdos facilmente serem destinados e espalhados rapidamente, tal como uma pós-verdade credível aos destinados, ou seja, os receptores do vírus fake news.
Logo, à medida que o vírus exista e seu DNA seja diagnosticado, restam as soluções claras e objetivas referentes ao combate desse e também de suas consequências - que não se limitam apenas ao campo tecnológico, mas também ao campo do progresso social, civil, e democrático.
Referências
CORREIA, Mariama. Renato Freitas: um vereador entre o racismo e o fundamentalismo religioso. Agência Pública, 19 de Mai. de 2022. Disponível em: <https://apublica.org/2022/05/renato-freitas-um-vereador-entre-o-racismo-e-o-fundamentalismo-religioso/>. Acesso em 23 de Mai. de 2022.
GRAGLIA, Marcelo Vieira. A moral nos tempos do digital. Sociotramas, 01 de jun. de 2021. Disponível em: <https://sociotramas.wordpress.com/2021/06/01/a-moral-nos-tempos-do-digital/>. Acesso em: 20 de mar. de 2022.
GRAGLIA, Marcelo Vieira. Fake News: Estética e Design. Sociotramas, 21 de jul. de 2020. Disponível em: <https://sociotramas.wordpress.com/2020/07/21/fake-news-estetica-e-design/>. Acesso em: 20 de mar. de 2022.
GROVER. A State-of-the-Art Defense against Neural Fake News, c2018. Página inicial. Disponível em: <https://grover.allenai.org/>. Acesso em: 20 de mar. de 2022.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Editora Vozes Limitada, 2015.
HERNANDES, Rafael. Inteligência artificial aprende a escrever notícias falsas para combatê-las. Zero Hora, Porto Alegre, 25 de ago. de 2019. Disponível em: <https://gauchazh.clicrbs.com.br/economia/noticia/2019/08/inteligencia-artificial-aprende-a-escrever-noticias-falsas-para-combate-las-cjzqvfoo000a601n7tjevys2y.html>. Acesso em: 20 de mar. de 2022.
LIPOVETSKY, Gilles. The post-moralistic society. The twilight of duty and the painless ethics of the new democratic times. São Paulo: Manole, 2009.
SANTAELLA, L. Breve Aceno à Pós-Verdade. São Paulo: Sociotramas; 2018 Out. Disponível em: <https://sociotramas.wordpress.com/2018/08/13/breve-aceno-a-pos-verdade/>;. Acesso em: 20 mai. 2022.
Este artigo foi escrito por Camila L. Oliveira e publicado originalmente em Prensa.li.