“Contrata-se Operador de Pirâmide Financeira”: a regulação da tecnologia blockchain no Brasil - Parte II
Waldemir Barreto/Agência Senado
O que diz o texto aprovado?
O texto define criptoativos como unidades de valor, virtuais ou tokens, criptografadas com combinação de chaves públicas e privadas, que podem representar bens, serviços ou direitos, e conferem ao titular acesso ao sistema de registro que originou o token.
Em termos simples: 99% dos experimentos atuais relativos aos usos financeiros da tecnologia blockchain podem ser reconhecidos como criptoativos.
No entanto, é interessante notar que o texto exclui de tal reconhecimento aquelas unidades de valor, virtuais ou tokens que sejam ou representem moeda de curso legal no Brasil ou em qualquer outro país.
Embora na maioria dos casos isso não vá ser um problema, isso pode gerar algumas complicações relativas às chamadas stable coins, isso porque grande parte de tais criptos hoje são lastreadas em alguma moeda nacional.
Outro problema mais agudo seria relativo a casos onde um país reconhece alguma cripto como moeda nacional, como é o caso de El Salvador e Myanmar.
Se essa tendência se confirmar, o legislativo vai ter trabalho dobrado lá na frente. No entanto, este é um problema de ordem técnica, e tenho certeza que nossos consultores jurídicos do legislativo conseguirão oferecer uma resposta adequada.
Os problemas do PL aprovado que considero graves são relativos a três aspectos, sendo o primeiro concernente à ausência de uma distinção entre um token financeiro e um token de utilidade.
Inclusive, até mesmo tokens que não se enquadram no conceito de valor mobiliário serão considerados criptoativos segundo o texto. Qual é o problema disso? A criação de um token nem sempre tem um objetivo financeiro ou mesmo de reserva de valor.
Imagine, por exemplo, uma academia que resolva premiar seus clientes mais assíduos com um token que lhes conceda acesso à prioridade no agendamento do uso da piscina. Tal token não implica em nenhum tipo de movimentação de valores.
No entanto, para o legislador, este token está dentro da mesma categoria que qualquer criptoativo como Bitcoin, e isso significa que o policiamento e a tributação serão semelhantes tanto para quem emitiu quanto para quem recebe.
O segundo problema diz respeito à concessão à CVM de autoridade para dispensar a necessidade de registro de atividades regulamentadas por esta lei. Uma das funções da CVM diz respeito a expandir o mercado de ações, que é a forma tradicional da economia que todos conhecemos ou ouvimos falar.
Devemos lembrar que um dos mais emblemáticos aspectos dos usos da tecnologia blockchain diz respeito à formas e sentidos institucionais, regimes de propriedade, arranjos produtivos, etc que não cabem no mercado em sua forma atual.
Ao oferecer à CVM tal autoridade, o legislador está definindo como diretriz que serão premiados os empreendimentos relativos à reafirmação das intuições que já são hegemônicas no mercado, daquilo que agrada às intuições que governam a economia tradicional.
Acerca deste risco, um caso interessante a ser destacado diz respeito ao momento no passado recente quando grandes instituições financeiras empreendiam esforços para mitigar a adoção do uso financeiro da tecnologia blockchain.
Alguns chegavam a fechar contas de clientes que estivessem envolvidos em transações P2P. Hoje as mesmas instituições compram criptoativos. Ou seja, nem sempre as maiores instituições têm as melhores ideias e por isso que a liberdade produtiva deve ser garantida.
O terceiro tipo de problema surge nas sanções penais para aqueles que incorrerem em crimes relativos às pirâmides financeiras. A atualização do Código Penal insere o art. 292-A, onde são descritas as atividades relativas às pirâmides financeiras e a punição a quem nelas incorrer:
“Pena: Detenção de um a seis meses, ou multa.”
Caso a ação criminosa cause, ou vise causar, dano à economia popular, a pena se assevera:
“Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa.”
Prever detenção máxima de seis meses para quem incorrer em crimes relativos às pirâmides financeiras, ou de cinco anos caso o alvo seja a economia popular chega a ser irônico. Ao invés de uma medida preventiva, soa mais com uma política de fomento ao ilícito.
Devemos lembrar que para o crime de roubo a pena é de quatro a dez anos de reclusão, no entanto, caso o criminoso vá lesar não um punhado (como o faz o assaltante comum) mas milhões de pessoas, a pena máxima é de apenas quatro anos.
Por fim, um quarto problema, de ordem mais analítica do que prática, diz sobre o evento da aprovação deste PL. Como é sabido as leis precisam de patrocinadores políticos, pessoas ou grupos que dão sua bênção para que determinado projeto avance.
É muito comum que tais patrocinadores sejam públicos, por exemplo, quando um PL visa melhorar o ambiente de negócios em determinado setor os representantes de tal setor irão procurar representantes públicos com influência suficiente para fazer o projeto andar.
Não estamos falando de corrupção, mas de articulação política saudável em uma democracia.
No entanto, outros PLs avançam com patrocínio anônimo, e se a pessoa ou grupo que está fomentando determinado projeto de lei não quer ser reconhecida por seu envolvimento já há motivos para suspeita.
Este PL é um desses casos, onde um texto de 2015 foi aprovado em uma das mais importantes e ocupadas comissões do Congresso, no meio de uma crise, em tempo ágil, com pouca discussão e, principalmente, no apagar das luzes do ano fiscal.
Tudo o que sabemos sobre o autor do projeto, o Dep. Aureo, é que o mesmo é um deputado da Bancada Evangélica (aquela descrita na mídia como ausente do plenário mas sempre presente nos escândalos de corrupção).
De onde veio ou até onde vai seu conhecimento sobre a tecnologia blockchain, criptoativos, etc, isso não é possível descobrir.
Uma busca rápida no site do próprio deputado (10/12/2021) oferece apenas quatro resultados para o termo “criptoativos” sendo todos referentes ao mesmo projeto de lei, já quando buscamos “blockchain” não há nenhum resultado.
Por fim, finalizo este texto com o que acredito ser uma citação feliz do PL, que embora utilizada na fundamentação, não foi totalmente incorporada ao instrumento normativo que ali está proposto.
“O aspecto “sem fronteiras” é intrínseco às trocas de Criptomoedas e Tokens Virtuais, pelo que as regulações nacionais que incidem sobre tais operações não podem ser restritivas e congelar tal potencialidade ao tentar adequá-las aos moldes de investimentos e ativos financeiros tradicionais.”
Este artigo foi escrito por Dr. Marcelo A. Silva e publicado originalmente em Prensa.li.