“Contrata-se Operador de Pirâmide Financeira”: a regulação da tecnologia blockchain - Parte I
Marcos Oliveira/Agência Senado
Atraso e Pressa
Sempre que uma tecnologia disruptiva é disponibilizada ao público geral é comum que seus formuladores sejam inquiridos pelas autoridades e sejam formuladas leis para evitar que o abuso de tal tecnologia cause danos ao tecido social.
No caso da tecnologia blockchain, no entanto, isso está sendo feito com atraso e de forma mais ou menos apressada em todo o mundo.
Tal pressa diz respeito à urgência que os legisladores mundo afora tem para evitar a apropriação de tal tecnologia por criminosos.
No entanto, se o atraso é justificado pelo fato do uso da tecnologia ter crescido em nichos específicos, a pressa se justifica pelo fato da instabilidade global do câmbio ter consolidado uma tendência de transferência de valores para o interior da tecnologia blockchain.
Ninguém esperava que o Bitcoin passasse de R$ 3.247,75 no final de 2016 para R$ 373.484,83 no dia 07 deste mês de Novembro, nem que o Ethereum, no mesmo período, de R$25,93 para R$ 26.670,69.
Como tem sido mundo afora?
Entre as tentativas de regulação que existem atualmente alguns modelos principais se destacam.
O modelo europeu varia desde os países mais “crypto friendly” como Portugal até casos como a Suécia que tem maiores restrições em relação aos ativos. No geral, a propriedade de criptoativos é legal e empresas podem atuar com certa tranquilidade.
No Canadá o uso financeiro da tecnologia blockchain é tratada, tanto a nível tributário quanto regulatório, como outras commodities e serviços financeiros.
Na Coreia do Sul, criptos não são reconhecidos como ativos financeiros e nem possuem poder liberatório (que diz respeito à obrigação de aceite por parte de agentes econômicos no país). No entanto, toda atividade é supervisionada pelo Serviço Nacional de Supervisão de Finanças.
El Salvador, em Setembro deste ano, se tornou o primeiro país a reconhecer o Bitcoin como moeda legal. O que implica que as empresas que atuam no país devem aceitar o Bitcoin assim como aceitam a outra moeda corrente, o dólar americano.
Já a China baniu as corretoras e os mineradores de Bitcoin de atuarem no país e mantém uma tendência de criação de leis que restringem cada vez mais a propriedade, posse e desenvolvimento de aplicações que interagem com a tecnologia blockchain e os criptoativos.
A Índia, seguindo uma linha parecida, porém um tanto mais confusa, não concede poder liberatório aos criptoativos e nem os reconhece como moeda, no entanto, tributam lucros advindos de operações envolvendo criptoativos.
O caso dos EUA merece destaque, porque, além de ocupar o lugar de principal potência econômica global junto com a China, tem em sua moeda o lastro de várias dos principais criptoativos negociados mundo fora.
Nos EUA, não há uma regulamentação explícita e definitiva, cada agência federal tem sua própria forma de lidar com o tema algumas até conflitantes entre si.
Um exemplo desse conflito é o caso entre a (SEC) e a (CTFC) onde a primeira considera o Bitcoin como um título e a segunda considera uma commodity. Diferente de ambas, o Tesouro Federal considera o Bitcoin como uma moeda.
No entanto, tudo isso pode mudar nas próximas semanas uma vez que, enquanto você lê esse texto, estão ocorrendo audiências no Congresso onde estão reunidos especialistas, empresários e políticos.
No que diz respeito à relação com o usuário final, as questões levantadas dizem respeito às empresas que centralizam a custódia dos ativos, não cedendo as chaves de acesso aos seus usuários finais.
Já no que diz respeito à estabilidade financeira a nível nacional e global, a preocupação diz sobre a centralização da reserva total de Bitcoin disponíveis hoje no mundo, e, sobre o impacto dos criptoativos nas moedas fiduciárias.
O destaque coube à fala do CEO da BitFury, Brian Brooks:
“No futuro, com a ascensão da China e outras grandes economias, o dólar americano não pode considerar a sua supremacia como garantida. Nós precisamos começar a pensar em competir em utilidade, em qualidade, não apenas com base em um sistema monetário pós-Segunda Guerra que nós podíamos ter por certo pelas últimas duas gerações.”
Além de quem observa a tecnologia blockchain e criptoatvos como uma forma de proteger o câmbio global, há quem observe o uso financeiro de tais tecnologias como uma ameaça ao sistema tradicional. Como é o caso do diretor da SEC, Gary Gensler.
Felizmente para aqueles envolvidos na inovação no ambiente das DeFi, a posição de Gensler sobre o Bitcoin não se estende às DeFi, as quais considera como algo promissor.
Por fim, os termos da discussão no Congresso dos EUA foram sobre como garantir a segurança e estabilidade financeira sem reprimir a inovação e competitividade da indústria estadunidense.
E o Brasil?
Atualmente no Brasil, criptoativos e usos financeiros da tecnologia blockchain não são regulados por lei específica. Originalmente haviam seis projetos de lei com pretensão de regular aspectos específicos deste novo ambiente econômico.
PL 3.825(2019) - Senador Flávio Arns (Rede)
Definição de conceitos, diretrizes e sistema de licenciamento de corretoras.
PL 4.207(2020) - Senadora Soraya Thronincke (PSL)
Estabelecimento de normas para emissão de criptomoedas e estabelecimento de condições e obrigações para utilização de tais moedas no comércio.
PL 2.303(2015) - Deputado Aureo Ribeiro (Solidariedade)
Inclusão de criptomoedas no rol de pagamentos controlados pelo BC, criminalização da emissão sem autorização da CVM (Pena de 1 a seis meses).
PL 3949(2019) - Senador Styvenson Valentim (Podemos)
Estabelece condições para funcionamento de corretoras, não inclui o Banco Central entre as autoridades competentes para baixar normas para disciplinar operações com criptoativos.
PL 2140(2011) - Deputado Alexandre Frota (PSDB)
Determina prazo de 180 dias para que o Banco Central apresenta uma proposta de regulamentação.
PL 2234(2021) - Deputado Vitor Hugo (PSL)
Aumenta a pena do crime de lavagem de dinheiro por meio da utilização de criptomoedas.
Todas propostas seguem a combinação de pressa e atraso que comentamos inicialmente. Mas por que dizer isso?
As aplicações financeiras referentes a sistemas de pagamentos e reserva de valor são uma parte importante do que tem sido feito com a tecnologia blockchain, no entanto, nem de longe tais aspectos definem a tecnologia como um todo.
O atraso de que falamos diz respeito ao fato de começarem a discussão a partir do seu aspecto financeiro, esquecendo que que existe antes da “crépetomoeda”, antes do “bitcão”.
E o que existe antes desses avanços são o experimentalismo e a rebeldia típica do que Mangabeira Unger chamou de Economia do Conhecimento.
A combinação de atraso e pressa está fazendo com os legisladores ignorem o papel do Estado enquanto catalizador do desenvolvimento e focando no policiamento do desenvolvimento.
O que torna essa discussão urgente é o fato de que ontem a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, sem ampla discussão, aprovou o texto do PL2303, após modificações.
Na parte 2 deste texto faremos uma análise do PL aprovado.
Este artigo foi escrito por Dr. Marcelo A. Silva e publicado originalmente em Prensa.li.