Copa do Mundo: loucas aventuras na África
Imagem: Taryn Elliott/Pexels
Eliminatórias rolando, Copa do Catar se aproximando, relembrei uma aventura vivida há doze anos, do outro lado do Atlântico. Bem, amigas e amigos da Prensa, estes são os melhores momentos da minha cobertura da Copa do Mundo Fifa 2010, direto da África do Sul. Um tempo em que o mundo era um pouquinho mais inocente e, sem dúvida, mais divertido.
Num dia de abril como outro qualquer, trabalhando na editoria de variedades do jornal, não me lembro se escrevia sobre um show de bossa nova ou piscicultura alternativa, mas a nossa chefe de reportagem me chamou de canto: “você tem passaporte?”. “Não”, respondi com a maior ingenuidade.
Confesso: até ali, o máximo de viagem internacional que eu havia feito era para comprar coisas no Paraguai. Sacoleira tour, juro. A editora prosseguiu: "Então, tira. Pode ser que você vá pra Copa”.
Arregalei os olhos. Eu? Nunca cobri o esporte, não fazia sentido. Explicou que a direção queria uma abordagem do evento por um lado inusitado, uma opinião de turista, de entretenimento. Claro que topei. Na manhã seguinte meu ex-marido nem me viu sair e fui pra Polícia Federal, com carta de recomendação do jornal e tudo. Passaporte ficaria pronto em dez dias.
Devorei tudo o que achava sobre a África do Sul. Naquela altura, me envergonho em dizer, o máximo que conhecia era a música tema da Shakira, Waka Waka. Em alguns dias, já sabia o básico para sobreviver num país com onze idiomas oficiais.
“And so, it begins…”
No início de junho, peguei um voo para São Paulo, e de lá, outro direto para Joanesburgo, centro nervoso da Copa do Mundo. Cruzei o oceano num belo avião da SAA, onde até carré de cordeiro era servido. E isso na classe executiva.
No voo estavam equipes da TV Bandeirantes, da ESPN, uma turma barulhenta da Telefe argentina, alguns colegas da TV Globo, outros do Estadão, enfim, parecia uma conferência de imprensa voadora. Me lembro do saudoso Ricardo Boechat que saiu de seu assento na primeira classe e se misturou com a nossa “turma do fundão” para contar piadas.
Lembro de levar um livro para me distrair nas sete horas previstas de viagem, mas umas vinte páginas depois, adormeci profundamente. Acordei cerca de uma hora antes do pouso no aeroporto O. R. Tambo, vendo pelas janelas do avião um raiar do sol que classifico entre os mais espetaculares da minha vida. Sabe a abertura de O Rei Leão? Faltou só a música.
Uma das primeiras imagens que chamaram minha atenção no continente africano foi a cor do chão, muito mais laranja do que nossa ter mais vermelha. Impressionante. Não é exagero hollywoodiano não, é lindo mesmo.
Joanesburgo respirava a Copa do Mundo. Mal retiramos as bagagens, fomos dirigidos a um centro de cadastramento, onde um pessoal bem simpático nos recebia, preenchia fichas e já nos entregava nossos crachás “padrão Fifa”, que magicamente nos concedia acesso (ou não) aos locais do evento.
Cara, crachá, cara, crachá
Meu primeiro mico já aconteceu ali. Meu nome já não é muito fácil para ser pronunciado aos falantes de língua inglesa… mas e quando os falantes de língua inglesa tem o sotaque misturado ao interessantíssimo idioma zulu? Ou xhosa? Esperei bons minutos até entender que o pobre coitado que implorava pela presença de alguém com o nome Clartçá referia-se a mim.
Feito isto, fui transferida a um pequeno hotel no belo bairro de Sandton (aos paulistas, pensem numa versão de Alphaville), bem distante do centro e mais distante ainda do Centro de Imprensa (IBC) e mesmo do imponente estádio Soccer City.
No pequeno hotel, além de alguns jornalistas independentes (meu caso), estava a equipe da ESPN Brasil e parte da equipe da TV Bandeirantes, sobretudo os jornalistas. Como falo pelos cotovelos, comecei a fazer amizade com uns e outros, e lá fui eu com parte da turma almoçar num minúsculo shopping do outro lado da bela avenida Rivonia Road.
Cabe lembrar que na África do Sul, devido aos anos de domínio britânico, as ruas seguem a mão inglesa, ou seja, a direção dos automóveis fica no lugar do passageiro, e os carros vão pelo lado esquerdo e voltam pelo lado direito, ao contrário da maioria dos países. Percebemos logo na primeira travessia que corríamos o risco (sério) de ser vítimas de um atropelamento. Ou coisa pior.
Sabores realmente inesquecíveis
Mal refeitos do susto, sentamo-nos à mesa de um restaurante movimentado, onde atenciosos garçons nos trouxeram um simpático couvert, com pão ciabatta (ou bem parecido) e um patezinho de berinjela que parecia delicioso. Eu amo berinjela e logo enchi a faca com aquela iguaria, passei no pão e obviamente engoli.
Neste momento conheci a primeira das regras da culinária sul-africana, que declino agora: 1) provavelmente tudo tem pimenta; 2) se não tem pimenta, tem batata; 3) se não tem pimenta, nem batata, deve ser doce; 4) se não tem pimenta, nem batata, nem é doce, é porque tudo está misturado.
Vi com meus olhos marejados um colega, homem feito, ter um acesso de tosse, vermelhidão, coriza, e princípio de choro. Engoli rapidamente um pedaço daquele pãozinho, sem nada, e praticamente enfiei a cabeça num copo de coca light gelada que estava na minha frente. Talvez fosse meu.
Aquilo não era berinjela. Suponho ser um creme ardiloso (e ardido) de jalapeño temperado com o mais puro molho de bhut jolokia, cultivado por algum mal ancestral das profundezas do sétimo círculo do inferno. Dizem que em certas pimentas, assim como nos bons vinhos, você encontra tons frutados e doces. Ali não. Era tudo dor, agonia e sofrimento.
Depois dessa entrada lancinante, descobrimos que a culinária local é realmente espetacular. Desculpem os argentinos e uruguaios, mas a carne mais macia que já provei foi na África do Sul. Eles são muito bons também em frutos do mar. Mas uma tremenda negação em pizza, coisa que tentei provar horas depois.
No dia seguinte, montei no meu quarto meu home office precursor. Notebook, câmera digital com cartão de memória e um celular pré-pago, alugado desde o aeroporto, que estava muito longe de ser um smartphone.
Junto e muito misturado
A primeira pauta que inventei foi mostrar como as pessoas de várias nacionalidades estavam convivendo naquele ambiente. Peguei uma carona para o IBC (International Broadcast Centre), que ficava ao lado do estádio Soccer City, e me pus a (tentar) entrevistar.
A primeira coisa que percebi à bordo daquelas vans movidas à diesel, é que a cidade estava lotada e era realmente uma metrópole, com seus bairros chiques, bairros pobres, bairros industriais e avenidas recém-construídas que não acabavam mais.
A segunda coisa que percebi é que as placas de trânsito, em sua maioria, estavam em inglês, africâner e zulu; A terceira é que os motoristas falavam um inglês que eu conseguia compreender porcamente, mas não era fácil. O sotaque local é sempre carregado com algum outro dos onze idiomas oficiais ou dialetos específicos. Mas consegui me virar.
O IBC era uma torre de babel da imprensa. Dali pensei em me deslocar por um caminho interno, para o estádio, a fim de entrevistar o público. Era a abertura da Copa, África do Sul versus México. Aliás, outro país expert em pimenta. Mas senti que bater papo com o pessoal das emissoras de TV e rádio poderia já dar uma bela reportagem.
Comecei a andar pelos corredores, encontrei boa parte dos colegas de voo… todos dentro de contêineres transformados em emissoras portáteis de rádio e televisão, abrigando de dez a quinze pessoas em cada módulo. O pessoal da Band, por exemplo, ocupava dois módulos com exatas 30 pessoas por turno. Vi o ex-jogador Valderrama, atuando como comentarista de uma emissora colombiana, batendo uma bolinha nos corredores.
Mas nada havia me preparado para algumas cenas… o pessoal da principal emissora da Coreia do Sul, a SBS, havia alugado um único contêiner para o trabalho. O problema é que a equipe deles deveria ter sessenta a setenta pessoas, todas uniformizadas com jaquetas cor-de-abóbora. Todos enfiados dentro daquela caixa de aço.
Vi o pessoal da Al Jazeera parando o trabalho em um determinado horário do dia, tirando os sapatos, ajoelhando e orando em direção à Meca, cidade sagrada dos muçulmanos. Assim como vi uma ex-modelo mexicana, que fazia entrevistas para a TV, vestindo roupas sumárias. Cada vez que passava pelos corredores do IBC, arrastava uma multidão.
Coleguinhas de aventura
Fiquei parça de uma jovem voluntária russa, Alya, estudante, que viu ali a oportunidade de conhecer novas culturas. Recebendo cerca de 100 rands por dia (na época, coisa de uns 25 reais), passou por poucas e boas também, sobretudo no quesito alimentação. Ela pagou pela viagem, pela hospedagem e bem, praticamente pagou para trabalhar. Mas conheceu gente de todo mundo. Apiedei-me dela e em alguns momentos cheguei a convidar a garota, na época com 21 anos recém-completos, para almoçar. Minha verba era mais generosa.
E foi através dela que soube de um passeio que muitos turistas procuravam. Minha primeira ideia era mostrar o pessoal nas praias sul-africanas, frias e em alguns pontos, habitadas até mesmo por pinguins! Desanimei ao saber que o litoral mais próximo estava a 600 quilômetros de distância. Foi então que a tovarishch Alya me falou de conhecer alguns animais selvagens, de perto.
Corri até uma agência de turismo e perguntei quanto ficava para ir até algum destes safaris fotográficos. Sempre fui louca por esses documentários de bicho da BBC, National Geographic, e sim, O Rei Leão é minha animação preferida.
Empolgada, comprei logo dois bilhetes para a manhã seguinte. Um para mim, e outra para minha amiguinha Alya, que só entraria no trabalho à tarde. Afinal, se eu fosse passar vergonha como turista, não passaria sozinha.
“The circle of life…”
Na manhã seguinte, saímos cedo para o Rhino & Lion Park, um tipo de reserva natural turística onde o destaque são obviamente rinocerontes e leões. Minha intenção era observá-los, mas também observar as reações da minha amiguinha, fazendo um tipo de unboxing de emoções humanas que certamente renderia uma reportagem.
Distante uns 50 quilômetros de Joanesburgo, o parque não se limita aos bichos do título. Na verdade, o primeiro animal que vimos foi um imenso elefante. Que descobrimos segundos depois ser uma estátua, o que deixou a jovem russa um tanto desanimada.
A van da agência de turismo avançou por estradinhas de areia laranja até que vimos no topo de uma subida da savana um atlético casal de guepardos em busca de seu desjejum matinal. Como os felinos se tocaram que os observamos, mudaram de ideia e deixaram o café para mais tarde.
Um pouco mais à frente, encontramos em uma área isolada uma família de facoceros. Para quem não sabe, aquela espécie de porco selvagem da qual faz parte o Pumba, de O Rei Leão. Senti uma vontade incontrolável de cantar Hakuna Matata, e quando percebi já estava soltando em bom português “... os seus problemas, você deve esquecer…”, o que causou espanto e gargalhadas dos colegas da van.
“Não na frente das crianças, Pumba!” | Imagem: Wolfgang Hasselmann, em Unsplash
Achei interessante os suínos ficarem numa área protegida, caso contrário seriam a porção de bacon necessária para o casal de guepardos que vimos antes.
Vimos zebras, antílopes, gnus, cachorros do mato, hienas, um tigre estranhamente fora de contexto, e claro, leões (que já haviam feito suas refeições) e rinocerontes. Uma fêmea com filhote encarou por longos minutos (para mim, uma eternidade) nossa van, com cara de quem iria nos destroçar caso déssemos um passo em falso na direção de sua cria. Foi tenso, admito.
Dali, a van nos levou a um outro setor do parque, chamado nursery. Berçário, em nosso idioma, onde isolam alguns animais de seus pais por alguns motivos. Vocês já viram um filhote de rinoceronte? Juro que pensei em trazê-lo para casa, mas sabia que não teria a aprovação de meu ex-marido.
Com um certo sacrifício idiomático, nosso guia informou que havia a experiência de toque, caso quiséssemos, com alguns jovens leões, filhotes um pouquinho mais crescidos.
Já dizia minha avó que prudência é uma virtude. Mas quando você está cara a cara com leões albinos, provavelmente na única oportunidade do tipo na sua vida, você esquece disso. Principalmente ao olhar a reação de Alya, com os olhos brilhando. Custava 20 rands a mais para cada uma, mas vamos lá. Se estamos no fogo, é para nos molhar, não é mesmo?
Minha avó estava certa. Os jovens príncipes da savana queriam brincar. Não sei se meu cheiro do medo estava desagradável demais, mas fui a única a sair ilesa. Alya tomou um belo arranhão em seu casaco, e uma mordiscada em uma determinada parte do corpo do qual não atrevo a contar. Todos os visitantes que estavam conosco receberam algum carinho dos gatinhos mega crescidos.
Aproveitei e marquei com a agência uma visita a um outro ponto turístico no dia seguinte, o fascinante Berço da Humanidade. Minha amiga russa declinou do convite. Acho que os leões a estressaram demais.
Mas como você percebeu, esse artigo é longo demais. Vou parando por aqui, e muito em breve trago uma segunda parte. Que vai ter futebol, baladas, bafana bafana, sushi, livros, amarula e uma triste desclassificação brasileira.
Eu volto!
Ou se preferir, Ngizobuya!
Este artigo foi escrito por Clarissa Blümen Dias e publicado originalmente em Prensa.li.