Corpo Vazio: sobre Natália Timerman, relações, tecnologia e depressão
Empty Suits, de Nadja Jovanovic
Copo Vazio (Todavia, 2021), a estreia da psiquiatra Natália Timerman na literatura, tematiza o sofrimento nos relacionamentos amorosos contemporâneos. Para a autora, eles são diferentes do que os vividos há algumas décadas, principalmente por conta da banalidade do abandono. Em um contexto de profusão de narcisismo e depressão, vivemos relações nocivas sem a presença do outro.
No romance, Mirella se envolve intensamente por três meses com Pedro, um jovem mineiro que vive em São Paulo em função da pós-graduação. Pedro de repente desaparece e deixa de responder mensagens, sem maiores satisfações - um ghosting, um “perdido”. Isso afeta Mirella, que passa a sofrer e esboçar comportamentos obsessivos sobre sua relação (ou não-relação) com Pedro.
Em entrevista ao podcast Quarta Capa, da editora Todavia, Timerman diz que não era sua intenção associar o romance ao fenômeno do ghosting. E de fato há mais do que um mero sumiço na história. Há o ritmo urbano de São Paulo, questões de gênero, como a autora destaca, e questões técnicas como o desenvolvimento de uma personagem fragmentada, o caso de Mirella, e experimentações saramaguianas que misturam diálogos e narração.
Mas sobressai a temática do relacionamento contemporâneo, envolta às redes sociais e ao que Timerman chama de “fragmentação do nosso tempo”. Mirella e Pedro se conhecem por um aplicativo de paquera. Enquanto ela deixa-se iludir pelas promessas dele, o jovem jamais se compromete com as suas palavras. Por isso sua facilidade de deixá-las a torturar a imaginação de Mirella.
Timerman diz que criou Pedro como um fantasma. Quando Mirella o encontra na abertura do romance, a tensão da cena pode nos levar a crer que se tratava de alguém morto. Logo saberemos que foi alguém não enlutado. O sumiço de Pedro deixa Mirella em uma relação sem o outro. A consequência é o descontrole, “[...] é o que sobra de uma ligação quando o outro age como se ela nunca tivesse existido”.
A relação sem o outro é o tema principal de Timerman e que melhor reflete o cenário dos relacionamentos atuais. Em torno disso, agrupam-se a tecnologia digital, o consumismo e o individualismo e, como consequência, o quadro depressivo. Todos esses componentes estão presentes no drama de Mirella e são parte do cotidiano da maioria de nós.
Recentemente conheci uma mulher que sabia de mim apenas pelas redes sociais. Para ela, eu era um “pesquisador”. Não importa se eu me via ou não assim, eu era um personagem de uma tela. De certa forma, não era eu quem ela conhecia, mas uma série de expectativas criadas em cima de uma figura virtual (alimentada, obviamente, por meus perfis e como eu os utilizo, além dos algoritmos). Percebi que ela jamais quis me conhecer, desejava apenas a si mesmo.
Em A Agonia de Eros (Vozes, 2017), o filósofo coreano Byung-Chul Han descreve o excesso de expectativas como uma positivação do outro que impede sua alteridade radical. Diante de um excesso de projeções, o outro não pode se expressar. No meu exemplo, a conversa foi mediada por uma imagem que ou a levaria à frustração, ou à total excitação.
Em ambos os casos, a relação estabelecida é de consumo - de si consigo mesma. Han diz que o consumo se expandiu na sociedade neoliberal e intermedia todos os nossos relacionamentos amorosos, principalmente o sexo. O sexo tornou-se performance, um consumo de experiência. A pornografia é uma das principais responsáveis por isso. Ao fim, “fodemos” com nós mesmos.
As redes sociais são lugares de produção de si. Não por outra razão, algumas pessoas, que não ganham um centavo com seus perfis, “gerem” suas contas como marqueteiras. Se antes a questão era como iniciar uma conversa com um estranho, hoje nos preocupamos como “aparecemos” para ele. Vivemos como se fossemos produtos audiovisuais.
A relação de consumo jamais é uma relação de diferença. Esse excesso de si mesmo causou o quadro endêmico de depressão atual. A depressão é narcísica, diz Han, é um “está cheio de si mesmo”. O narcisismo é alimentado pela produção da auto-imagem e de expectativas criadas em um mundo impactado pela grande quantidade de informação.
Sabemos demais sobre o outro - conhecemos o outro antes mesmo de chegarmos ao encontro marcado. Ao invés de nos defendermos das frustrações, as intensificamos por conta de um controle tão doentio quanto irrealizável (Han, 2017, p. 7).
Para Han, o depressivo não pode curar a si mesmo: apenas Eros, o amor, se contrapõe ao depressivo-narcísico como alteridade radical, um outro negativo, improvável e indiferente. O outro precisa da relação para aparecer como essa improbabilidade. E esse é um dado importante da nossa época: a desatenção com a relação. Não se trata de um descuido com o outro e sim de sua fixação.
Na minha vida de solteiro, me deparei com situações em que eu importava ao outro apenas como um produto. Alguém para experimentar a companhia, o beijo ou o sexo, sempre uma mercadoria. No entanto, para que o outro fosse Outro, era preciso haver fragilidade. O depressivo não pode ser frágil, pois teme o amor mais do que qualquer coisa. O amor é fragilidade, e por isso requer cuidado.
Estamos em um ciclo de individualismo depressivo-narcisista intensificado por usos nocivos das redes sociais. Para Byung-Chul Han, apenas o amor é capaz de quebrar esses vícios. Sobretudo, o amor retoma o corpo, algo que Han e Timerman não tematizam, mas que para mim tem sido muito importante.
Experimentar o próprio corpo é como eu lido com meu quadro ansioso. Em Matéria e Memória (Martins Fontes, 1999 [1939]), o filósofo Henri Bergson define o corpo como o pivô de afecções e percepções. Por conta disso, o corpo como conhecemos é, antes de tudo, uma imagem. Entendemos nosso corpo através das nossas relações com os outros e com as coisas no mundo.
O corpo é o que sustenta a relação. Por isso, eu diria que é sobretudo o corpo que se esvazia em uma relação sem o outro, quando não obtemos de volta uma imagem sobre nós mesmos. Não por outro motivo, uma das consequências comuns na depressão-narcísica é o não-reconhecimento da própria imagem. Não posso construir minha imagem se não decido ou não posso encontrar o outro.
Para Han, se trataria da diferença do amor próprio com o narcisismo. Enquanto o narciso perde-se no outro, enxerga sempre e somente a si, o amor próprio estabelece uma negação entre si e o outro. Dessa negação, complemento, fortalece-se o próprio corpo como fundamento de outras relações que não sejam aquelas consigo mesmo. O corpo não é independente, mas garante nossa autonomia.
Toda relação importa. O que fazemos com nossas relações, mesmo as casuais, resulta em consequências para nós mesmos. É a conclusão que Mirella chega no romance de Timerman quando começa a se questionar se Pedro soube “ficar”, ou permanecer. Sem arcar com a responsabilidade de suas relações, Pedro jamais deixou de ser um fantasma na vida dos outros.
Timerman termina o romance com uma longa reflexão de Mirella sobre a responsabilidade de Pedro: “todos têm o direito de desistir a qualquer hora, todos podem retirar suas promessas. Mas isso é diferente de fingir que não foram feitas”. O chamado à responsabilidade pode ser completado com a atenção ao diálogo, à escuta e ao cuidado.
Copo Vazio me fez pensar sobre minhas próprias relações e em quantas vezes faltei com essa responsabilidade. Quantas vezes estive na vida de alguém como “Pedro”. Também, quantas vezes me perdi na vida de outra pessoa, como “Mirella”. Aprendi que minha recuperação é a retomada do meu corpo. E que a cura de uma relação sem o outro é o fortalecimento de relações com o outro. Ou seja, amor.
Mas amor é uma palavra forte demais para ficar apenas com os namorados. Precisamos do amor como o cuidado nas relações. Essa dignidade que damos ao outro quando desejamos lhe conhecer, escutar e compreender, é, ao fim, um cuidado que damos a nós mesmos.
Este artigo foi escrito por Gabriel Gonzaga e publicado originalmente em Prensa.li.