Crise argentina se agrava e preocupa Brasil
A TV aberta exibiu até 2019 um programa chamado É Tudo Improviso. Nele, o Jogo do Troca obrigava os atores a mudar a última fala conforme ordenava o apresentador. Isso bastava para mudar o rumo da cena que geralmente terminava de forma bizarra. Assim vem acontecendo com a Argentina: troca moeda, troca política fiscal, troca ministro, troca governo... O resultado de tanto improviso é uma crise mais grave que começa a preocupar o Brasil.
O ritmo de elevação de preços naquele país superou até mesmo o da Venezuela. A inflação apurada do mês passado (7,4%) é o maior índice mensal em 20 anos. Acumulada em 71% em 12 meses, é o maior patamar em 30 anos. Os economistas dividem-se entre os otimistas que apostam em uma inflação acumulada de 85% até o fim do ano, outros mais realistas falam de uma taxa entre 90 e 95% e os pessimistas acreditam que supere os 110%.
Nem o melhor dos cenários é menos ruim para os argentinos. No ano, o país aproxima-se do teto compromissado com o FMI na última renegociação da dívida – 48% de inflação em 2022. Em seis meses, a desvalorização do peso chega a 46%.
Uma renegociação de US$ 45 bilhões foi fechada em março. Hoje a dívida argentina é a maior do planeta com o Fundo.
A Argentina está em crise há décadas, como apontam os pesquisadores Gerchunoff e Heyman: “meio século entre tempestades econômicas”. Nove vezes entrou em default (calote) por não pagar juros milionários em seu vencimento. A pobreza só aumenta e atinge quase 40% da população. A economia consolidou-se como bimonetária, tendo como referências o peso desvalorizado e o dólar que tem 14 cotações. Caos é uma palavra limitada para descrever a situação.
Se a inflação atingiu 7,4% em julho, os salários foram corrigidos por menos da metade (3,5%). A diferença entre um e outro demonstra o aprofundamento da recessão e um grande passo na direção da temida estagflação: alta inflacionária combinada com recessão.
Até o último mês, a rotina recessiva pouco chamava a atenção da vizinhança. O agravamento da crise acendeu uma luz amarela...no Brasil. Como se já não estivéssemos bem envolvidos com os nossos próprios problemas, qual é ou pode ser o impacto por aqui?
Fora dos limites geográficos
A atual fase da crise tem tudo a ver com os últimos anos em que tivemos pandemia, recessão mundial e ainda a guerra na Ucrânia. Combalida, a economia entrou em espiral descendente. Apesar da bagunça, é o segundo maior país do continente e o segundo maior PIB também – só perde para o Brasil.
É natural que, comercialmente falando, a Argentina seja um parceiro estratégico. A Balança Comercial entre os dois países movimentou US$ 22 bilhões em 2021. A Secretaria de Comércio Exterior (Secex) estimou um crescimento de 34% nas exportações nos primeiros seis meses de 2022 em comparação com o mesmo período do ano passado. Grãos, automóveis e peças automotivas e outras commodities minerais e agrícolas são os principais produtos.
Então a notícia do agravamento da crise assusta justamente o setor exportador brasileiro, que observa a brutal escassez de dólares no país vizinho. Assim, os importadores não conseguem manter suas compras porque não obtém dólares. A perspectiva é de uma redução significativa nas exportações brasileiras. Faltam dólares e sobram pesos.
As importações são feitas com base no câmbio oficial e é o Banco Central argentino que indica a cota de moeda forte disponível para cada empresa conforme as compras faturadas em anos anteriores.
Como as reservas cambiais do governo estão em nível crítico, em torno de US$ 37 bi, há escassez de dólar no mercado e o Banco Central retém o que pode para não deixar de cumprir os compromissos com o FMI, o que poderia elevar ainda mais o altíssimo risco-país e provocar o êxodo ainda maior de investidores que já preferem os títulos da dívida americana, por exemplo.
Pode Piorar
Os economistas Alejo Costa e Sophia Ordonez do BTG Pactual assinaram um relatório prevendo o início da agitação social entre o fim de agosto e início de setembro motivada pela inflação, escassez e falta de reajustes salariais que recomponham as perdas mensais. Manifestações, tumultos e pilhagens são prováveis na visão desses analistas.
O mesmo relatório considera insuficientes as medidas tomadas até o momento e considera que falta à atual administração credibilidade para atitudes mais efetivas, como as que são preconizadas pelo Consenso de Washington. Aliás, acusam o governo de dogmatismo por rejeitar tais medidas.
De forma que temos uma crise política, econômica e social. Não está muito diferente do que ocorre no momento no Brasil, porém o dinamismo da economia brasileira e as reservas cambiais acima de US$ 300 bi afastam a possibilidade de acontecer algo parecido nestas paragens. Ao menos, no momento. Analistas acreditam que o país está menos suscetível ao contágio dos problemas argentinos do que estava no início do século.
Portanto, os desdobramentos na economia brasileira devem ser limitados e setorizados. O que não deixam de ser importantes para os setores afetados e na economia como um todo, tendo em vista que a Argentina é nossa terceira maior parceira comercial, ficando atrás somente dos EUA e China.
O turismo também tende a ser afetado tanto de um lado como de outro. Se para o cidadão argentino ficou mais caro viajar, o mesmo não acontece com o brasileiro que pode gastar mais com a valorização do real perante o peso. Não há vantagem sólida, já que o que o setor ganha alguma coisa do outro lado da fronteira, mas perde deste lado. Se é que isso vai mesmo ocorrer com a possibilidade muito concreta de agitação social por lá.
Pesadelo Sem Fim
Não há perspectiva de solução no curto prazo para a crise. O economista Otto Nogami, do Insper, ressalta que o caminho são os rearranjos do setor produtivo e logística, justamente para recuperar um setor privado fragilizado. Segundo ele, a Argentina flertou com o desastre a partir do início dos anos 2000, embora existam registros de dificuldades bem antes.
Em 2001, o país anunciou a moratória de sua dívida externa. Não foi o primeiro default, mas é considerado o maior por suspender o pagamento de US$ 95 bi em títulos da dívida pública. Obviamente os impactos foram imensos, começando pela fuga de capitais em meio a uma brutal recessão.
Exportar auxiliaria o país a sair da crise, trazendo dólares. Contudo isso não é fácil por basicamente duas razões:
A Argentina nunca foi uma potência industrial;
O endividamento reduz o acesso do país a mercados externos
Falta à economia local robustez para estes tempos difíceis. A escassez revela que a indústria não consegue atender nem ao mercado interno. Menos produtos, preço maior. Com as restrições à importação de matéria prima, a indústria tem cada vez menos força para enfrentar o desafio.
Resta aos setores exportadores brasileiros buscar a reorganização de seus negócios, seja estreitando a relação comercial com parceiros tradicionais ou buscando novos mercados. E a inovação é sempre uma saída em tempos difíceis.
Porque o vale de sombras por onde a economia dos Hermanos entrou não permite ver até onde pode chegar e, principalmente, até quando.
Nos versos de um clássico da música – Don’t Cry For Me Argentina – sobre os “loucos dias de minha louca existência”, num contexto diferente, dá bem a dimensão do sofrimento do povo argentino. Resta esperar por dias melhores, que podem vir com a estabilização econômica mundial, por eles e por nós.
Este artigo foi escrito por Renato Assef e publicado originalmente em Prensa.li.