Crise existencial na academia
"Você já fez cross?". Foi assim que descobri estar no lugar errado. Um estrangeiro no meu próprio bairro. Já não me sentia a vontade, mas essa pergunta codificada abriu-me os olhos. Até aquele momento havia sido capaz de ignorar os LEDs piscantes, o incensário eletrônico e os odores do local. Tive uma epifania com cheiro de suor.
A verdade é que a gente se engana. A maioria de nós sofre com uma auto-miopia ignorada. Os fãs do esporte bretão cansam de dizer "se fulano jogasse tanto quanto pensa que joga, seria o melhor do mundo". Pois bem, vamos aos fatos. Nem o Neymar é tudo isso e nem eu e você estamos no top 100.000 das nossas respectivas profissões.
O fato é que chegou a hora de encarar nossas limitações, antes que seja tarde demais. Eu preciso voltar à atividades físicas mais ortodoxas e nós todos de mais honestidade. Mas não paremos por aí, em percepções genéricas, à la #Gratiluz. Cortemos na própria carne: Nenhum de nós é especial; nossas ideias não são tão geniais; não somos tão bonitos; não transamos tanto e nem tão bem assim; e a última viagem também não foi essa maravilha toda como o meu Instagram indica. Eu me perdi, minha mulher vomitou e paguei caro demais em um genérico suéter de lhamas.
Por sinal, várias das críticas que faço à colegas e amigos são fruto de uma inveja escondida atrás de camadas de argumentos mambembes, porém convincentes. Não rejeito a exposição X, a atriz Y porque afrontam valores pessoais. A sinceridade me faz assumir que tenho dificuldade em compreender qualquer coisa que exija mais conhecimento do que séries, filmes com explosões ou meus gurus são capaz de transmitir.
Viva a autoconsciência! Uma salva de palmas para a honestidade! Um ode à transparência! Já posso marchar rumo à recepção para cancelar o plano anual e postar as fotos da enorme fila em Macchu Picchu. Já em pé, com a garrafinha de água na mão e a sinceridade nos lábios, pensei: "Saberão que sou uma fraude".
Resignado voltei a ouvir a conversa. "Sim, fiz um ano de Cross fit, mas mudei de cidade". Tarde demais. Mais alguns minutos estava fazendo polichinelos e a ouvir "hoje é dia de amrap com sequencia de burpees e roscas russas". Certamente sentirei as dores amanhã.
Ou será por toda uma vida?
Imagem de capa - Além dos músculos, dói a existência - Photo by John Fornander on Unsplash
Este artigo foi escrito por Daniel Manzano e publicado originalmente em Prensa.li.