A crise hídrica e a Economia
O tema ocupa espaço importante no noticiário diário há décadas. A metáfora apropriada para representá-la não poderia ser melhor que “uma maré que sobe lenta, quase sem ser notada”. O fato é que está subindo há muito tempo.
Apesar de tanta divulgação, o brasileiro comum não a compreende bem porque, indiretamente, está envolvida por muitos tentáculos-aspectos antes daquele realmente importante: o econômico. Contudo, deve-se levar em consideração que impérios já caíram em razão de crises climáticas.
A água é sagrada. E em muitos sentidos. Está na manutenção biológica dos seres vivos, pois, como se sabe, não há vida sem ela; na construção da religiosidade, uma vez que muitas religiões a usam em rituais diversos; na percepção da dignidade, posto que milhares e milhares de pessoas baseiam suas atividades laborais nela; na constituição das relações sociais, já que corpos asseados por meio dela são essenciais nesse quesito.
Muitos estrategistas em preservação da vida sob condições precárias garantem que o corpo humano prescinde de alimento por dias sem danos maiores, mas não sem água em pouco tempo. Vê-se, portanto, como a água participa da vida do cidadão.
Nesses cenários, o humano prático nem mesmo pensa no problema da falta de água. Ele, o ser humano prático, é aquele cuja maior preocupação é o dia a dia e seus percalços. Isto é, a grande maioria dos brasileiros. As notícias na mídia sobre crise hídrica passam ao largo de sua atenção. São menos atrativas que o namoro da sub-celebridade “X”. Mostram-se menos interessantes que a quantidade de votos no participante “Y” dos reality shows.
Os tentáculos da crise hídrica
Apesar disso, a crise hídrica engalfinha-se nesse mesmo dia a dia do humano prático. Alastra-se entre as situações como gosma nojenta, mas transparente e, por isso, não notada. Nem mesmo ideias absurdas do tipo “qual é o problema de a energia elétrica ficar mais cara?” parece alertar o humano prático. Nem mesmo tal ideia absurda ter sido proferida pelo Ministro da Economia, justamente da Economia, Paulo Guedes.
O nível baixo atual das águas nos reservatórios é o centro da crise. Por sua vez, esse nível é produto de fluxo mínimo de chuvas. Assim, há ligação entre esses dois fatores e, sendo o segundo de caráter natural, o humano prático tende a imaginar que “a coisa” não tem solução por estar nos domínios da natureza. Mesmo porque a questão da chuva sempre teve aspecto mitológico na cognição humana.
Tentáculos místicos da crise hídrica
A introjeção desse aspecto vem já desde a Grécia Antiga. Zeus, por morar nas alturas e das alturas vir a chuva, era considerado também o “Senhor das Chuvas” - portanto, nada se podia fazer em época de escassez. O titã Prometeu recomendava aos humanos que prestassem atenção à chegada da chuva apenas para reconhecer o humor de Zeus.
Os antigos nórdicos tinham Thor como deus da chuva, posto que seu reinado incluía poderes sobre trovões e relâmpagos. E o deus Tlaloc, na civilização asteca, se incumbia de controlar a chuva e seus elementos, como raios e trovões. Ainda nos dias atuais, muitos bolsões populacionais pelo Planeta, como o nordeste brasileiro, associam a quantidade de chuvas em suas regiões a deuses e outras unidades místicas.
Nesse horizonte, é fácil perceber que o humano prático tende a distanciar o problema da crise hídrica das ações humanas. E das autoridades.
Tentáculos comportamentais da crise hídrica
O humano prático tem em si que água é substância de abundância infinita. Essa percepção compõe costumes coletivos e tem se construído ao longo das décadas. Está no mesmo degrau de “Brasil, país do futuro”, “Brasil, celeiro do mundo”, “Deus é brasileiro” etc. Como se vê, trata-se de conceito sem fundamento comprovável.
Entre muitos outros artigos, o intitulado A água no Brasil: da abundância à escassez, publicado no site da Agência Brasil em 2018, já vislumbrava o cenário que se confirmaria posteriormente com base em ideias semelhantes às acima: “Culturalmente tratado [sic] como um bem infinito, a água é um dos recursos naturais que mais tem dado sinais de que não subsistirá por muito tempo às intervenções humanas no meio ambiente e às mudanças do clima. [...] As gerações mais antigas foram criadas com o mito do país riquíssimo em água, que água seria um problema crônico, histórico, só no Nordeste, no semiárido”.
Ocorre que, há décadas, estudiosos e pesquisadores têm alertado autoridades sobre a finitude dos mananciais de água. Muitos deles lembram diversos períodos de estiagem severa, alguns deles com poder para derrocar impérios:
Pouco mais de seis séculos antes da era atual, o rei assírio Asurbanipal viu seu reino ruir depois de seca agressiva por mais ou menos 60 anos
Há vários indícios de que problemas climáticos tenham colaborado muito para a queda do Império Maia
Muitas outras grandes comunidades tiveram o mesmo destino: Império Khmer, no – Camboja; Anasazi, nos Estados Unidos; Norse Vikings, na Groenlândia; Harappan, no Paquistão
Tentáculo mais problemático: economia
Recentemente, o Banco Santander divulgou estudos referentes aos impactos da crise hídrica na economia dos países, em especial em sistemas econômicos semelhantes ao do Brasil. O documento levanta cinco dos maiores problemas que travam a economia, elencados pelo Fórum Econômico Mundial nos últimos 10 anos. Dentre eles, estão exatamente as dificuldades no abastecimento de água tanto domiciliar quanto industrial em geral.
O mesmo relatório destaca aumento considerável do risco no Brasil desde 2015. Os longos períodos de seca fazem surtir efeitos em setores importantes de produção e consumo, de forma expressiva. Tais efeitos são ainda mais visíveis no Centro-sul, onde geração de atividades econômicas é bem mais intensa.
O resultado de toda essa cadeia de problemas certamente há de ser travamento do crescimento econômico. Assim, os dados inflacionários hão de se mostrar mais alarmantes do que a pressão internacional já deixa notável. Você pode compreender melhor essa relação nos textos Índice de Saúde Financeira: o furo no bolso brasileiro, de Luana Brigo, e A inflação do Brasil e a inflação dos brasileiros aqui mesmo, no site Prensa.
Cadeia de problemas
Dentre os tentáculos do monstro crise hídrica, aquele que representa a economia ainda detém um braço que origina uma sequência de fatores nocivos. Por seu turno, essa sequência nasce na produção e consumo de energia elétrica. Como se sabe, países minimamente desenvolvidos precisam de eletricidade para crescer. Toda a produtividade industrial, comercial e de serviços depende desse elemento.
O mesmo relatório do Santander indica que o preço da energia elétrica pode aumentar em 50% em meio a essa sequência de problemas. E esse não é o maior dos males. Segundo dados da EOS Organização e Sistemas, empresa especializada em desenvolvimento de software de gestão no segmento de saneamento básico e meio ambiente:
72% da vazão das águas são consumidos pela agricultura
11% destinam-se a consumo animal
9% são para abastecimento urbano
7% para uso industrial
1% para abastecimento humano rural
Esses números dão dimensão clara do problema da crise hídrica. Qualquer nível de deficiência no abastecimento vai atingir a produção de alimentos em primeira instância. Afinal, a agricultura e produção de carne são os dois primeiros setores a sofrer; o terceiro é justamente o consumo de água por maior contingência humana: a área urbana.
Produção por hidrelétrica
Quase 70% da energia elétrica no Brasil vem das águas. Apenas esse fator já define o grau de importância que as autoridades deveriam assumir em relação à crise hídrica prevista por estudiosos. O órgão responsável por levantar informações desse setor, o Operador Nacional do Sistema Elétrico - ONS, divulgou, no início de junho passado, preocupação com a média de energia armazenada vinda das hidrelétricas. Em abril, o nível estava mais baixo desde 2014, quando houve racionamento de água, e próximo ao estado do ano do apagão, 2001.
A situação levou o Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico - CMSE a gerar um alerta de emergência no início do ano. É o primeiro em mais de um século de existência de serviços meteorológicos no país. Trata-se de manifestação de grande preocupação com as condições hídricas para o período de junho a setembro para os estados de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso do Sul, São Paulo e Paraná.
A sequência alarmante de problemas nasce justamente aí: concentração da produção de energia elétrica por meio das águas. Ao faltar chuva em tempos de estiagem alongados, gera-se uma verdadeira cadeia de problemas sérios:
Cadeia de problemas nascida na crise hídrica (Gráfico: o autor)
Essa cadeia desemboca no consumidor final - aquele aqui tratado como “humano prático”. Ele é atacado em duas frentes: na conta de consumo e nos preços dos produtos majorados pelas empresas. E todos os produtos, não apenas os básicos, já que toda a cadeia produtiva precisa de energia elétrica. Isso significa aumento considerável na inflação.
Mais elos da cadeia
A cadeia se amplia: com inflação alta, o consumidor se distancia do mercado de ofertas. Seguindo a tendência, as empresas se ressentem e produzem menos a fim de salvaguardar sua saúde financeira. Dessa maneira, o fluxo de abastecimento de produtos e serviços diminui. Há menos produto nas prateleiras de todos os comércios, o que incentiva a conhecida lei de mercado da oferta e procura.
Os preços se elevam ainda mais, o que minora o poder de compra. Com menor poder aquisitivo do consumidor, a intenção de produção das empresas também diminui. Por sua vez, isso leva a demissões pontuais da força de trabalho que, somadas, aumentam o contingente do exército de mão de obra inativa.
Tudo se configura como terrível teia de aranha devoradora de oportunidades. Com isso, a manutenção da dignidade humana se complica, o que possibilita aumento da violência social e conflitos familiares.
A inter-relação de fatos incentiva desvios nas relações políticas e sociais. Não à toa, as redes de postagens virtuais estão plenas de debates acalorados que, muitas vezes, beiram a insanidade. A conjuntura do ambiente mental do país tem se tornado tão desastrosa e abrangente que acaba ocultando o nascedouro dos problemas.
É certo que muitos outros fatores se envolvem nessa cadeia toda. O provocador sumário não é apenas a crise hídrica. Contudo, é certo também que tal crise inicia e agrava essa cadeia.
O leitor da Prensa pode compreender melhor esse complexo sistema de relações de fatores acompanhando centenas de textos analíticos, dissertativos e expositivos que compõem o site.
Esteja conosco.
Imagem e Capa - A antes abundância agora se mostra escassez. - Arquivo - Fabio Rodrigues Pozzebom - Agência Brasil
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Este artigo foi escrito por Serg Smigg e publicado originalmente em Prensa.li.