A crise na democracia brasileira: De seu início em 2013 a sua consolidação em 2018
INTRODUÇÃO
Desde o fim da Guerra Fria, com a queda do muro de Berlim, o número de Estados democráticos vinha crescendo pelo mundo. Isso parecia ser uma tendência para uma era marcada pela liberdade e empoderamento do povo, indo muito além das liberdades liberais e, aparentemente, do fim da luta de classes que, porém, como não houve o fim das estratificações sociais, muito pelo contrário, as disputas entre classes aumentaram. Mesmo assim, tudo apontava e aparentava correr bem de maneira progressista para uma gradual maior autonomia política, uma maior representatividade - através do voto – e conquistas sociais e poder aquisitivo na sociedade como um todo.
Porém, quando a questão econômica é abalada, tudo pode ser colocado a perder. Dessa maneira, quando em 2008 instalou-se uma crise financeira no sistema capitalista e, que abalou as instituições do Estado ao redor do mundo, assim como mais tardiamente o Brasil, é que vivenciamos uma quebra desse avanço socio-democrático. Diante disso, em efeito global, passou a emergir uma onda conservadora por parte de uma classe que, por sentir ameaçados deus privilégios, adotaram e passaram a pregar ideias conservadoras e autoritárias sustentada por uma narrativa histórica distorcida e saudosista do passado, como a volta dos militares, os inimigos invisíveis e ideológicos do comunismo que ameaçam o país e, até mesmo, o minoritário grupo anacrónico que compõem os monarquistas.
No Brasil, a ascensão desses grupos conservadores tem um cunho de extrema direita, bem como autoritário, chegou ao poder - não por um golpe de Estado – porém pelas vias democráticas e se consolidou com a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018. É a partir disso que, no Brasil, se consolida a crise na democracia, que já vinha em curso desde 2013, quando as arbitrariedades da Operação Lava-jato e as interferências do capital privado iniciaram um período de instabilidade política e institucional que nos remete até hoje.
Tudo isso, acredito ter contribuído para um certo desinteresse do eleitor brasileirona política, sobretudo daqueles que não possuem tempo para buscar entender a política, e na confiança do Estado democrático, pois como se viu nas eleições de 2018 cerca de 30 milhões de eleitores se abstiveram do voto e, que somados aos números de votos brancos ou nulos, somam 42,1 milhões de eleitores que não ofertaram seu voto a nenhum dos candidatos à presidência, uma diferença de 15,3 milhões de votos que foram conferidos a Jair Bolsonaro com 57,7 milhões de votos e aos mais de 47 milhões de votos de Fernando Haddad, em segundo lugar.
Dessa maneira, esse trabalho busca traçar uma análise da atual democracia e sua crise que, para isso, buscará conceitos que tratam da democracia através de intelectuais como Eric Hobsbawm e René Rémond, relacionados com o conceito de autoritarismo proposto por Hannah Arendt, além de contar com outros referenciais teóricos expostos ao longo do texto.
DEMOCRACIA
A democracia em sua origem, no século XIX, surge como uma oposição ao Antigo Regime e, também, como a superação do liberalismo. Contudo, sua consolidação se apresenta como o mais puro produto do liberalismo e, desse modo, é na ideologia liberal que se encontram as raízes do sistema democrático, tal como a liberdade pública, sendo então um prolongamento da ideia liberal tomada ainda, como um caráter mais amplo (RÉMOND, René. Introdução à História do Nosso Tempo. 3a parte. Lisboa: Gradiva, 2003, p. 163).
Dessa maneira, a democracia é caracterizada em três aspectos fundamentais. O primeiro deles é a igualdade que recusa distinções ou discriminações, ao menos em teoria ou na lei, independentemente de qualquer natureza. O segundo é a liberdade que pode ser usufruída por todos, nos termos da lei. E, por último, a soberania, em que o povo, soberano, é quem possui o poder de tomar as decisões do país por intermédio de seus representantes eleitos.
Assim, as repúblicas democráticas, correspondem pela primeira vez na história como uma forma de Estado dominante nas sociedades humanas através de seus ideais de constitucionalismo e representatividade.
(...) o termo "democracia" tem como significado esse modelo-padrão de Estado; e isso significa um Estado constitucional, que oferece a garantia do império da lei e de vários direitos e liberdades civis e políticas e é governado por autoridades, que devem necessariamente incluir assembléias representativas, eleitas por sufrágio universal e por maiorias numéricas entre todos os cidadãos, em eleições realizadas a intervalos regulares entre candidatos e/ou organizações que competem entre si. (HOBSBAWM, 2007, p.98).
A concepção de povo é fundamental para a democracia, pois ele é a base comum de todos os governos democráticos, e até mesmo dos não democráticos, cuja o governo tem o propósito de representar os interesses de seus cidadãos e, assim, defender o seu bem estar. Isso significa dizer que a relação entre governo e povo é inalienável, uma vez que, sem o consentimento do povo, não há governo. Dessa maneira, entende-se que
Esse era um terreno comum a democratas liberais, comunistas, fascistas e nacionalistas de todos os tipos, ainda que suas idéias diferissem quanto à maneira de formular, expressar e influenciar a "vontade do povo". É a herança comum que o século XX, o século das guerras totais e das economias coordenadas, deixou para o século XXI. (HOBSBAWM, 2007, p. 102).
Outrossim, sendo o povo a base para qualquer governo, existe sempre uma tensão entre governantes e cidadãos que deve ser equilibrada, pois sem povo não a Estado e disso sabem todos os governantes e, sobretudo, as figuras autoritárias que através da legitimação de um volumoso grupo que, não necessariamente é majoritário, chega ao poder por vias legais ou não. Como propôs Maquiavel, o Estado é- fundamentalmente- construído por uma relação de formas que se originam da dicotomia entre o desejo de dominação e opressão, por parte dos poderosos e do desejo de liberdade, por parte do povo (MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Porto Alegre: L&M, 2019, p. 7.).
Diante disso, não podemos deixar de falar de um dos pilares democráticos. A tripartição dos poderes traz uma concepção de combate aos excessos e monopólio do poder nas mãos do chefe de Estado. Dessa maneira, fica o poder legislativo responsável pela criação dos códigos de lei, o poder executivo por executar as leis e judiciário por defender as leis. Claro, essa é uma visão muito simplificada das atribuições dos poderes, porém para nosso fim, se faz suficiente.
DEMOCRACIA EM CRISE
Comumente os agentes que tramam contra a democracia chegam ao poder pelos próprios mecanismos democráticos. A história contemporânea está repleta de exemplos - tanto no presidencialismo, como no parlamentarismo – Mussolini na Itália, Hitler na Alemanha e Vargas no Brasil são demonstrações pertinentes. Tudo isso ocorre, inclusive, com o aval dos grandes estadistas veteranos guardiões da democracia, como se referem Levitsky e Ziblatt (2018) - que buscam união com esses agentes autoritários e populistas uma maior visibilidade e ampliar sua influência dentro das massas que circundam esses agentes, porém que logo são traídos por eles (LEVITSKY, Steven; ZILBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018, p.26.).
Acerca das massas, elas nada mais são do que o povo, responsáveis por sustentar todo o sistema político de um Estado. Assim, é por uma parcela do povo que figuras carismáticas e questionadoras da política, sobretudo em momentos de crise, chegam ao poder. Embora sejam essas massas que legitimam o alcance do poder desses agentes, elas são inteiramente culpadas pelas ações daqueles que tramam contra a democracia, sendo usadas, assim como os veteranos estadistas. Mas quem são as massas? Sãos as pessoas desacreditadas com a política vigente,
(...) pessoas aparentemente indiferentes, que todos os outros partidos haviam abandonado por lhes parecerem demasiado apáticas ou estúpidas para lhes carecerem atenção. A maioria dos seus membros, portanto, consistia em elementos que nunca haviam participado da política (ARENDT, 2012, p. 439).
Tendo conhecimentos da relação das massas e dos grandes estadistas com os agentes que tramam contra a democracia, vamos então iniciar uma discussão mais próxima de nossa realidade política. Assim, quando entre 2007 e 2008 o mundo financeiro embarcou em uma das maiores crises econômicas da história contemporânea globalizada, devido a explosão da bolha imobiliária norte-americana, não demorou para que eclodisse no mundo uma crise não somente financeira, como política e, a partir disso, foi dado o alerta para a transparente corrupção do mercado que abarcou o Estado que, notoriamente, não corrompe por inteiro a instituição administrativa pública, como também não pode – o mesmo – ser atribuído ao mercado (PINHEIRO-MACHADO, Rosana. Amanhã vai ser maior: o que aconteceu com o Brasil e as possíveis rotas de fuga para a crise atual. São Paulo: Planeta Brasil, 2019, p. 17-8).
No Brasil, por sua vez, por não ter havido grandes turbulências econômicas durante o segundo governo Lula (2007-2011), o ciclo de insatisfação política só ocorreu no ano de 2013 com as pautas da deterioração do transporte público ou a revolta dos 20 centavos, o fantasma da corrupção e todos os “gastos” com a copa do mundo, em 2014, alavancando movimentos nas principais cidades do país. Desse modo, a extrema-direita brasileira, que já vinha se organizando desde os anos 2000, passou a ganhar espaço e a surfar nas ondas de insatisfação das massas, que se iniciaram em 2013, os organizou e os redirecionou para o lado do autoritarismo e do conservadorismo. Isso foi possível graças ao aparato financeiro da extrema direita brasileira que, por sua vez, souberam muito bem fazer o uso da propaganda e tecnologia das novas mídias sociais, assim como, da máquina de fake news criada pela Cambridge Analytica (PINHEIRO-MACHADO, Rosana. Amanhã vai ser maior: o que aconteceu com o Brasil e as possíveis rotas de fuga para a crise atual. São Paulo: Planeta Brasil, 2019, p. 24).
No meio desse turbilhão de acontecimentos, tanto na política como na economia, surge a figura de Jair Bolsonaro do fundo obscuro da Câmara dos Deputados Federais (1991-2018) com dois projetos aprovados. Um senhor pálido de pouca retórica e argumento, o homem da bravata que emergiu ao primeiro escalão da mídia política brasileira e se lançou como candidato à presidência da República por conta própria, mesmo que não estivesse sido oficializado pelo PSC, legenda a qual pertencia nesse momento e deixou para se filiar ao PSL que oficializou a candidatura bolsonarista para o ano de 2018 e que no ano seguinte à eleição ficou sem partido.
Outrossim, para alavancar a candidatura, Bolsonaro usou de todas as estratégias políticas e de propagandas que havia ao seu alcance. Se por um lado ele possuía pouco tempo na televisão, por outro, nos impulsionamentos de propaganda em mídias digitais parecia não ter fim. Foi assim que o ex-militar se apresentou às massas, como uma renovação política, embora estivesse desde 1989 ocupando cargos legislativos, propagando um discurso de defensor da moral, dos bons costumes e da família, além de salvador da pátria pois, seria ele, que acabaria com o comunismo no Brasil. Ademais, os discursos de ódio e ataques aos grupos de minorias são recorrentes nesses discursos. Dessa maneira, Bolsonaro adota uma postura, como já mencionada anteriormente, daqueles que usam a democracia para seus interesses próprios e, assim, atentem contra ela do mesmo modo que fizeram Hitler na Alemanha, Mussolini na Itália, Vargas no Brasil e Perón na Argentina, entre outros.
A CONSOLIDAÇÃO DA AMEAÇA A DEMOCRACIA BRASILEIRA
Uma vez que já vimos o que é a democracia liberal e seus conceitos pragmáticos, já conceituamos o que quer dizer massa, quais as características dos agentes que tentam contra a democracia e como eles chegam ao poder pelos próprios mecanismos democráticos, iremos tratar da consolidação da crise democrática no Brasil.
De início, vimos como Bolsonaro e o bolsonarismo chegam ao poder em meio ao início da crise democrática brasileira. Quero deixar claro que, antes da eleição de 2018, a crise ainda não havia sido consolidada, porém caminha para isso, como ocorreu em 2020 a partir do que será exposto adiante.
Em agosto de 2020, a jornalista Monica Gugliano publicou uma matéria na Revista Piauí relatando que o presidente da República Jair Messias Bolsonaro quis intervir militarmente no Supremo Tribunal Federal, no dia 22 de maio de 2020. Isso deu-se a partir do envio de três notícias crimes enviadas, pelo ministro Celso de Melo, a Procuradoria Geral da República e apresentadas por partidos e parlamentares pedindo uma investigação sobre uma suposta interferência de Bolsonaro no comando da Polícia Federal, após denúncia feita por Sérgio Moro ao deixar o cargo de ministro da Justiça e Segurança Pública.
Porém, embora importantes, não foram as três notícias crimes o gatilho para ação quase imediata de intervenção militar no Supremo. O real motivo foi o pedido de apreensão do celular do presidente Bolsonaro, expedido pelo ministro Celso de Melo.
Bolsonaro queria mandar tropas para o Supremo porque os magistrados, na sua opinião, estavam passando dos limites em suas decisões e achincalhando sua autoridade. Na sua cabeça, ao chegar no STF, os militares destituiriam os atuais onze ministros. Os substitutos, militares ou civis, seriam então nomeados por ele e ficariam no cargo “até que aquilo esteja em ordem”, segundo as palavras do presidente. No tumulto da reunião, não ficou claro como as tropas seriam empregadas, nem se, nos planos de Bolsonaro, os ministros destituídos do STF voltariam a seus cargos quando “aquilo” estivesse “em ordem”. A essa altura, ele já tinha decidido também que não entregaria seu celular sob hipótese alguma, mesmo que tivesse que descumprir uma ordem judicial. “Só se eu fosse um rato para entregar meu celular para ele”, disse, fazendo uma comparação que voltaria a usar, em público, no transcorrer do dia. (GUGLIANO, 2020).
Assim, os ânimos do presidente foram acalmados pela figura do general Augusto Heleno, que disse “não é hora para isso”, uma fala problemática que abre precedente para uma possível futura possibilidade de intervenção.
Apesar da extrema gravidade do anúncio, o general Luiz Eduardo Ramos, amigo de Bolsonaro há mais de quatro décadas, recebeu bem a intenção do presidente de partir para um confronto de desfecho catastrófico. Achava que intervir no Supremo era, de fato, a única forma de restabelecer a autoridade do presidente, que vinha sendo abertamente vilipendiada pelo tribunal. No seu raciocínio, a decisão do ministro Alexandre de Moraes, do STF, que proibira a posse de Alexandre Ramagem como diretor-geral da Polícia Federal, já tinha sido um abuso inaceitável. Braga Netto e Augusto Heleno concordavam que Moraes fora longe demais. Também achavam que a decisão do ministro fora uma interferência inadmissível em ato soberano do presidente, mas tinham dúvidas sobre a forma e as consequências de uma intervenção. (GUGLIANO, 2020).
Dessa maneira, concluímos que Bolsonaro é um agente nocivo à saúde política brasileira. Embora eleito democraticamente, ele atenta contra as instituições democráticas. Isso foi possível graças a todas as características já mencionadas anteriormente e, que fazem da figura autoritária de Bolsonaro, um agente que adoece e enfraquece a democracia brasileira, sendo sua chegada ao poder, em 2018, o marco consolidador da crise democrática no Brasil.
REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. Totalitarismo. In: . Origens do totalitarismo: antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 415-639.
ESTEVES, Rodrigo; GRANDIN, Felipe; OLIVEIRA, Leandro. Percentual de votos nulo é o maior desde 1989; soma de abstenções, nulos e brancos passam de 30%. G1, 2018. Disponível em: < https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/eleicao-em-numeros/noticia/2018/10/28/percentual-de-voto-nulo-e-o-maior-desde-1989-soma-de-abstencoes-nulos-e-brancos-passa-de-30.ghtml> 22 de nov. 2020.
HOBSBAWM, Eric. Globalização, democracia e terrorismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
GUGLIANO, Monica. Vou intervir! O dia em que Bolsonaro decidiu mandar tropas para o Supremo. Revista Piauí. Disponível em: < https://piaui.folha.uol.com.br/materia/vou-intervir/> acesso em 25 de out. 2020.
JAIR Bolsonaro. Câmara dos Deputados. Disponível em: < https://www.camara.leg.br/deputados/74847/biografia> acesso em 25 de nov. 2020.
LEVITSKY, Steven; ZILBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Porto Alegre: L&M, 2019.
PAIXÃO, André. Abstenção atinge 20,3 %, maior percentual desde 1998. G1, 2018. Disponível em: < https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/eleicao-em-numeros/noticia/2018/10/08/abstencao-atinge-203-maior-percentual-desde-1998.ghtml> acesso em 22 de nov. 2020.
PINHEIRO-MACHADO, Rosana. Amanhã vai ser maior: o que aconteceu com o Brasil e as possíveis rotas de fuga para a crise atual. São Paulo: Planeta Brasil, 2019.
RÉMOND, René. Introdução à história do nosso tempo. 3a parte. Lisboa: Gradiva, 2003.
Este artigo foi escrito por Adriel Pacheco e publicado originalmente em Prensa.li.