Das pequenas intromissões nas conversas de Sêneca e Lucílio
A morte de Seneca, 1773 (The Death of Seneca, 1773) Jacques Louis David.
O exercício constante e equilibrado da leitura e da escrita me trouxeram até aqui. Se escrevo estas cartas a você, caro Lucílio, é porque preciso dizer como me sinto ao experimentar as páginas que Sêneca lhe dedicou. Vou de uma a outra sem cessar porque, caso contrário, cessam os argumentos e não pretendo encher a folha de lacunas. Preciso que chegue até você um pouco do que construí nesse processo de estudos e pesquisas ao longo de minha jornada na atividade da escrita.
Leio Sêneca e percebo quão grande é a decadência discursiva do que se lê em páginas soltas pela vida. Pergunto-me, às vezes, a respeito de tantos esforços para salvaguardar o direito da palavra de permanecer sendo o que é. A palavra se transforma, mas entre distorção e transformação, me parece que há uma considerável diferença.
Sêneca diz que os alimentos que absorvemos são um peso no estômago antes de transformar-se e nos dar força. As palavras absorvidas por meio da leitura parecem também ter seu peso.
A palavra é transformada por meio da releitura e da pesquisa sistemática que nos leva a produzir mais e mais. Que a palavra que chega até nós possa se transformar em outra quando as degustamos por meio de um espírito livre.
Se cair nas mãos de um mal entendedor, busque a palavra o seu direito de legítima defesa, assim como eu busco o direito de ser eu mesma. Toda palavra bem construída deverá conquistar o mundo, mas, se adormecida, ficará enterrada nos escombros. Poderia haver alguma justificativa para isso? Penso que não.
Inspire-se em algum autor que admira e siga teu próprio destino a partir disso. Não queira copiá-lo, pois isso não convém. Seja o mais original possível. Assim também o farei. Examinarei a raiz dos termos que me cativam e plantarei meu próprio discurso.
O combate ao mesquinho é sempre bem-vindo e o mesmo acontecerá na escolha das palavras que sustentarão teu próprio edifício. Não se esqueças disso se a palavra cheia de sovinices te procurar. Frente a essa realidade, caro Lucílio, deve lutar como nunca.
Se houve o surgimento da matéria e da energia, a formação do planeta Terra, o início da biologia, algo em comum entre humanos e chimpanzés e a evolução do gênero Homo na África, sempre haverá também uma linha do tempo que permita pensar a importância dessa partícula chamada palavra. O que existe não existe por acaso e assim é com a palavra. Falou-te Sêneca por cartas, falo-te do mesmo modo.
Se há trinta mil anos houve a extinção dos neandertais, e depois das megafaunas australiana e americana, não haverá a extinção da palavra. Então, faça dela o uso que lhe convém, desde que sejas um homem livre de qualquer tipo de servidão, para não anular o efeito de tua própria voz.
Dos amigos de jornada
Eu não imaginava que o meu excesso de orações pudesse ser visto como uma forma de dependência absoluta em relação aos deuses. Se assim é, juro que não sabia e peço perdão à minha consciência por isto. Se me coloco constantemente em oração, ainda não reivindiquei meu direito sobre mim mesma, como aconselhou Sêneca? Mas e se eu orar apenas para pedir a necessária proteção contra os vermes perturbadores, onde estaria eu errando?
Dei-me conta da superficialidade do desejo de miséria que teriam me rogado e declaro isso agora. Tal desejo parece o resultado das orações mal intencionadas de alguns de meus familiares? Se foi, declaro o efeito pouco nefasto das palavras balbuciadas por eles às três da manhã quando eu, em estado de alerta, ouvia suas calúnias nunca declaradas em voz alta.
Na morte das pequenas coisas cotidianas, reencontrei a vida e os amigos e o estado definitivo de paz não tardou. Cuspo de meu íntimo toda e qualquer forma de servidão e, se finjo aceitá-la, é para melhor ludibriar os escarnecedores de toda ordem, questão de sobrevivência. Penso com cuidado no assunto e me coloco em lugares vazios para melhor fazê-lo.
Cultivo as amizades. Melhor do que ser só é ter amigos. Boa é a convivência com aqueles a quem admiramos e compartilham conosco bons momentos e pensamentos. A comunhão é de corpo e espírito e, assim, economizo meu tempo ao invés de perdê-lo com quem se opõe ao estudo das qualidades do homem e da mulher de bem.
Cercada de meus objetos, aos quais não me entrego, medito a respeito das amizades e penso em quantos homens e mulheres perdem tempo na vida tentando agradar aos outros e, por isso, juntam estatísticas ao invés de amigos sinceros. Os que aparecem nas fotografias não são os mesmos que enxugam teus sofrimentos.
Os primeiros talvez lhe dirijam nocivas sugestões e, sem que você perceba, te levam a um vício a mais. Os segundos devolvem a tranquilidade furtada, sem atirar-lhe pedras. Por isso, eu prezo as boas companhias. Estas eu conto nos dedos e alguns dedos ainda ficam a sobrar.
Boas companhias são difíceis de encontrar, por isso, quando souberes de alguém que compartilha dos mesmos ideais que você e seja dono de si mesmo, não demores em trazer para junto de ti. Penso que assim, quando chegar a hora de deixar aqui a matéria, o fará com um sentimento de alegria. Terás aprendido a viver, Lucílio. Eu também.
Conversa com Lucílio a respeito do canto das sereias
Confesso que algumas vezes, durante a vida, fui visitada pelo canto das sereias. A voz é agradável e o canto é persuasivo se a pessoa não tem confiança em si mesma. A voz está em todas as geografias e, por onde quer que eu vá, é provável que a escute. Se mergulhada em vícios, talvez me convencesse a adotar mais um, mas escolho um a menos se tenho firmeza de espírito.
Digo-te, caro Lucílio, que não é simples escolher entre a virtude e o vício, ou entre o bem e o mal. Tenho a impressão de que me perseguem de igual maneira e desvio-me do segundo sempre que posso. Já recebi a visita do mal e fui revisitada por ele algumas vezes. Recusei-me a aceitá-lo para meu próprio deleite e dos que comigo convivem.
Às vezes penso o quão valioso seria se os vícios se convertessem em virtudes e as perturbações de todas ordem não mais existissem. O céu seria o limite. Aprender a viver requer esforços para não se deixar enganar pelo canto das sereias, presentes em todos os lugares por onde estejam espíritos fortes e enfraquecidos.
Acredite no autocuidado a ponto de não precisar recorrer aos deuses o tempo todo ou sempre que o mal visite a tua casa ou tua alma. Se o espírito está seguro, não há o que temer. Se o oposto tiver peso maior, redobre tuas conversas com os deuses. Ninguém mais do que eles lhe dará o conselho certo.
Hoje eu leio Sêneca e revejo as normas de convivência e ensinamentos de família nas páginas breves e densas do filósofo latino. Muito do que leio tiro proveito e uso os cinco sentidos na aprendizagem. Confio cegamente que os meus sentidos não me enganam. Eles me permitem fazer escolhas e os vícios e virtudes não escapam desse processo.
Quero dizer-te, caro Lucílio: é libertador saber que a escolha é possível. Quanto há de arbitrário em ser quem sou e pensar na construção de um caminho livre de amarras e convenções cem por cento esmagadoras, onde não precisei deixar de lado “o leão que sempre cavalguei”.
Analiso a vida que eu tinha há um certo tempo e a que tenho hoje e te digo: confio em mim e tenho coragem o suficiente para fazer as escolhas certas. Não que eu tivesse o espírito cheio de vícios, mas faltava-me coragem para reconhecer a autoconfiança. Assim, a tendência em ouvir o canto das sereias é pouco provável.
Passe bem!
Carta para alguém distante
Preciso buscar o meio-termo entre os conflitos do mundo e os conflitos internos. Ambos me incomodam de alguma forma. Vinte e nove de março de dois mil e vinte e dois. Meu território descansa em paz, mas não o de meus semelhantes, espalhados pelos quatro cantos de um abismo cuja durabilidade é de longa data.
Fome e marcas de explosivos na pele me fazem questionar onde começou o desequilíbrio dos que promovem a ausência de paz e que há muito se distanciaram das virtudes necessárias a todo homem de bem. Aqui só balbucios de crianças na rua e a torneira da cozinha, mas, simultaneamente a essa calmaria, nada de cessar-fogo na geografia alheia.
Sêneca me faz pensar que falta sabedoria aos que escolhem tirar a vida do outro. A meu ver, tirar o tempo de alguém constitui uma falta grave, mas nada se compara a agir de modo a causar efeitos devastadores na vida do próximo para a satisfação de interesses particulares ou de um grupo.
Corrigidas as causas que os levam a agir de modo nefasto e todas as antivirtudes se extinguem da face de nossas próprias geografias. Adoto essa máxima para mim e a divulgo na intenção de ajudar-te, Lucílio. Quando nos corrigimos, aprendemos a viver.
Superar um vício por dia é o prazo que temos no decorrer da vida para aproveitá-la melhor. Se meus dias se multiplicam, comemoro o aprendizado sobremaneira, na companhia de uma boa taça de vinho. Precisarei, então, de um dia a mais para deixar de consumir esse aperitivo. Continuarei a ler Sêneca.
Nem tudo é só felicidade
Eu mato um leão por dia e isso tornou-se um hábito. A vida é feita de milhões de coisas, caro Lucílio, e não estou livre de nenhuma delas. O lado bom do amargo é que aprendo a viver. Nem só de felicidade alimenta-se o ser humano, porque, se assim o fosse, que graça teria sentir-me valente ao matar um leão a cada dia nesta longa jornada?
Toda prática repetitiva parece facilitar a organização de estratégias para que a caçada tenha êxito. É isso o que faço para não escorrer pelas mãos das superficialidades que frequentam o território onde tenho pisado.
Encontro bestas-feras todos os dias e, para cada uma delas, tenho um truque para sair viva. Um deles é esquecer a possibilidade de qualquer tipo de reclamação ou críticas às situações que me são apresentadas. Como escreveu Sêneca, das tuas reclamações provém todo o mal, então, deixa esse hábito e vê a tua trajetória ser um infinito de alegrias. Faz o contrário e tudo acontecerá de mal a pior.
E não é que Sêneca tem razão? Irritava-me ter de misturar minha fala a discursos contrários, então, dei um chá de sumiço com diplomacia nos adversários e eis que nenhum deles reconhece mais a minha existência. Sei que minha presença não os agrada, e, para fazer a felicidade deles e também a minha, passo pelo campo minado sem estilhaços da ignorância que os acompanha.
Digo-te que é simples. Desvio-me por caminhos alternativos. Nada como a possibilidade de escolhas para obter tudo o que necessito. Se escolhi ser livre, terei uma postura diferenciada com meus adversários e ao ganhar ou perder algo. A felicidade merecerá seu momento de comemoração e a perda será um aprendizado.
Quem sabe, neste ciclo ininterrupto do viver, a perda não se converta em sorte? É o mínimo que pode acontecer após colocar-me como um soldado diante das adversidades. Que eu tenha as merecidas honras. Desejo o mesmo a você.
Das incertezas de um futuro incerto
Por vezes, me vejo em ações inúteis de planejar o futuro. Se este é incerto, a sensação de perder tempo nestas ações toma conta de mim e sinto que quase tudo se perde se não dou conta de viver o presente de modo satisfatório. A única coisa que tenho certeza é que devo viver da melhor forma possível e isso, é claro, após aprender a ser livre de todo tipo de servidão.
O primeiro passo foi dado: reivindiquei o meu direito de ser eu mesma. Todo o restante assombra os meus adversários, pois esse direito me permite conquistar o que eles até agora pleiteiam ao destino, sem êxito. Ler Sêneca torna-se um imperativo a quem se pretende imperador.
O que Sêneca quer dizer com tudo o que li até agora é que a única certeza da vida é o seu oposto. Então, estejamos preparados para isso. A morte nos aguarda no futuro que não avisa quando chegará. Pode ser daqui a meia hora, meio dia, um ano. Caro Lucílio, vou passar adiante as ideias por mim colhidas nas cartas escritas por Sêneca.
Peço desculpas se me intrometi algumas vezes nas conversas de vocês. Foi por uma boa causa. Consigo agora analisar o que fiz ao longo de minha vida e sinto-me em paz com minha consciência. Entre vícios e virtudes, escolhi a liberdade de ser eu mesma.
Quando me dirigi a você para retomar os conselhos de Sêneca, era para aprender tudo o que ele te disse. Se estou preparada para colocar tudo em prática? Não sei. Apenas estou certa de uma coisa: desta vida, levarei apenas as virtudes que são frutos de recusas tentadoras do mundo à minha volta.
Talvez minhas palavras não causem nenhuma revolução quando souberem das incertezas de um futuro incerto. De que adianta colecionar virtudes se o corpo deixará esta morada um dia? Ora, dedicamos nossos esforços para receber as honrarias que merecemos, ainda que seja ao final da linha.
Esta e outras inquietações nos assombram, eu bem sei, mas sigamos em frente, na certeza de que conquistamos nossas moedas não apenas para acumular fortuna, mas também como forma de satisfação pessoal, na certeza de que recebemos a recompensa pelos esforços empreendidos rumo ao progresso.
Sejamos virtuosos o suficiente para não deixar que moedas, amigos e familiares nos dominem. E tudo bem se ainda temos mais vícios do que virtudes. Se o maior defeito da vida é o inacabamento, ainda há tempo para transformações. Disso, tenho toda incerteza. “Portanto, meu caro Lucílio, trata de viver cada dia como se fosse uma vida inteira”, conforme Sêneca te recomendou.
Indicações de leitura:
HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da humanidade. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
SÊNECA. Aprendendo a viver. Porto Alegre, RS: L&PM, 2020.
Este artigo foi escrito por Rosa Acassia Luizari e publicado originalmente em Prensa.li.