De como um golpe salvou a democracia
"Não pode ser candidato. Se for,não pode ser eleito. Se eleito, não pode tomar posse.Se tomar posse, não pode governar". Não, não , você não perdeu nada. Ninguém fez essa ameaça numa live de quinta-feira, ou num bate-papo num certo cercadinho a caminho do Planalto, e até onde sei, nenhum ministro da Suprema Corte foi deposto numa ação comandada por um cabo e um soldado.
Não é necessário espanto, pois a frase em questão, ficou em algum lugar de um passado de triste memória e proferida pelo então jornalista Carlos Lacerda, inconformado com a iminente volta de Getúlio Vargas ao poder, democraticamente nas eleições presidenciais de 1950. E demonstra não somente o quanto o golpismo é peça muito presente na política brasileira, como seu enredo segue assustadoramente cheio de clichês repetitivos e previsíveis de um filme ruim da Sessão da Tarde.
Seguindo esta analogia cinematográfica, poderíamos dizer que, Carlos Lacerda teria repetido o mesmo papel de protagonista nessa "franquia'' por quatro vezes: a primeira em 1954 e a última exatamente dez anos depois, em 1964. Não deixar Getúlio governar foi uma parte bem-sucedida narrativa de Lacerda, na qual tentava atrelar ao homem, que havia chegado ao poder pela primeira vez ( também através de um golpe de estado ), a pecha de um corrupto que “mergulhava o país num mar de lama”.
De ex-membro do antigo Partidão a um liberal extremamente reacionário ligado à UDN, Lacerda causava rebuliço na República com seus discursos radiofônicos ferozes contra Getúlio, dono de uma boa oratória, ele tinha um carisma tão grande que conseguiu arregimentar até uma fiel Fanbase igualmente conservadora e reacionária, que mais tarde passou a ser conhecida como lacerdinhas. Os lacerdinhas entravam em êxtase com os discursos do jornalista e saiam por aí repetindo sua retórica. Dizem as (más) línguas que o apelido não era somente alusivo ao sobrenome do jornalista, mas também a um insetinho ignóbil e inofensivo, mas que em grande quantidade, causam estrago em culturas de plantio. Basta dizer que os “lacerdoMinions” compunham a base da gritaria civil que culminou no golpe militar de 1964.
Mas voltelmos ao Prequel deste roteiro, mais propriamente para 1955, quando o Brasil ia à urnas para eleger o substituto de Vargas, após seu suicídio. Com o Set montado, Lacerda, agora deputado federal, voltou às suas narrativas. No seu jornal Tribuna da Imprensa, ele delirava e mentia descaradamente, criando pânico em setores da classe média antes da eleição. Segundo ele, Jango, com a ajuda do argentino Juan Domingo Perón, do PCB e do dinheiro “espúrio” de JK.
Sim, houve um tempo em que a Argentina era a Venezuela dos reacionários dos anos 1950. A gritaria foi grande e quase deu resultado: Juscelino venceu o candidato de Lacerda, o militar Juarez Távora da coligação UDN/PDC/PSB/PL, por uma margem apertadíssima de 36% contra 30%. Venceu por "um nariz de distância" num pleito tumultuado, com candidatos do "quilate" de Adhemar de Barros e Plínio Salgado, e dentro de um ambiente polarizado e deflagrado politicamente, eleições com margens pequenas de vantagem costumam ser um pretexto conhecido para golpes clássicos.
A UDN, então decidiu sair das ameaças e foi às vias de fato, costurando um conluio com setores conservadores e parte das Forças Armadas para impedir Juscelino e o seu vice, João Goulart de tomarem posse. Quase um mês após a vitória da chapa JK/Jango, nada estava resolvido. Havia incerteza total se Juscelino seria mesmo empossado, apesar de ter vencido democraticamente as eleições, porque a parte da Forças Armadas alinhada ao conluio conservador decidiu reivindicar seu “direito” de “Poder Moderador”.
Onde ouvi isso antes mesmo? O coronel Jurandir Bizarria Mamede, ligado à Escola Superior de Guerra, usou o funeral do general Canrobert Pereira da Costa (chefe do Estado-Maior das Forças Armadas e então presidente do Clube Militar e que havia liderado um movimento contra Vargas) para defender uma “ação” contra a posse dos eleitos, que se realizaria no início do ano seguinte. Mamede discursou contra “a corrupção e a fraude dos oportunistas e totalitários que se arrogam no direito de oprimir a Nação nessa mentira democrática”, a fraude, no caso, era o resultado apertado que deu a Vitória à Juscelino.
É, o roteirinho é fraco mesmo, mas vocês não perdem por esperar pelo grande Plot Twist. Vamos adicionar um efeito de Flashback Whoosh neste filminho de quinta categoria e voltar para aquela cena onde em agosto de 1954, o vice-presidente Café Filho havia assumido o cargo no lugar de Vargas e nomeia o general Henrique Teixeira Lott como Ministro da Guerra. Fim do Flashback.
Presente no enterro do tal general golpista e bastante contrariado com a fala golpista de Mamede, Lott fêz o que pôde para puní-lo, mas não foi atendido pelo presidente. Havia dois meses até à posse de JK e a instabilidade se agravou. Café Filho se afasta do cargo por conta de um suposto ataque cardíaco ( dizem que foi fingimento para tirar o corpo fora da encrenca que estava por vir ) e quem assume é o presidente da Câmara, Carlos Luz, do PSD e próximo dos conservadores e isto não era mero protocolo regular da política.
Tudo era parte da tal “ação” contra a “fraude” já que havia clara intenção de Luz, de não passar a faixa presidencial à Juscelino. Na primeira reunião para tratar da queixa disciplinar de Lott contra Mamede, Luz se nega a punir o coronel falastrão e contrariadíssimo, Teixeira Lott se demite. A notícia cai como uma bomba entre os militares legalistas que se unem a Lott numa contra-ofensiva preventiva contra o golpe urdido pela UDN e Forças Armadas. Estima-se que Lott colocou cerca de 25 mil homens sob seu comando que, em poucas horas, tomaram os pontos estratégicos do Rio, então Distrito Federal.
Lott divulgou uma nota direcionada aos comandantes militares exigindo “o retorno da situação aos quadros normais de regime constitucional vigente”. No dia 11 de novembro, o Congresso votou o impedimento de Carlos Luz e um dia depois, foi empossado na Presidência da República o primeiro vice-presidente do Senado, Nereu Ramos.
Os golpistas ainda tentaram estabelecer uma espécie de governo paralelo em São Paulo com o apoio do governador Jânio Quadros, mas o plano fracassou. Morrendo de medo, Lacerda tentou fugir do país. Bateu na embaixada de Cuba ( olha a ironia ), que lhe deu asilo político. Antes do embarque para Cuba, que nem sonhava com Fidel e a Revolução e era comandada por Fulgencio Batista, o deputado escondeu-se durante três dias em uma caixa-d’água seca.
Este episódio ficou conhecido como um contragolpe preventivo ao que poderia ter sido a antecipação da ditadura militar em dez anos. Juscelino não teria se tornado o bom presidente que foi e vai se saber em qual nível de desenvolvimento o país estaria hoje. O General Lott agiu de acordo com a legalidade, tornando decisivo o prosseguimento da frágil democracia brasileira. Muito frágil, já que os udenistas continuaram com seu golpismo barato mesmo depois de Juscelino empossado até conseguirem o que desejavam em 1964. Mas aí é outra história, é Spin-Off.
Aí está a História, se repetindo como farsa ou tragédia. Talvez as duas coisas. Entre ameaças, blefes, ações concretas com sua fake news, pedidos de recontagem de voto, insinuações sobre a lisura do sistema de urnas eletrônicas, tweets ameaçadores, discursos golpistas à luz do dia, invasões ao prédio do Capitólio. E de tanto assistir ao mesmo filme reprisado, a isenção de ânimo do cidadão médio diante de tais absurdos vai do “nem-te-ligo” ao “nem-tô-aí”.
Afinal, parece que é um pouco difícil tecer elucubrações sobre a democracia…com a barriga vazia. Só resta torcer para que o estúdio não resolva fazer um Remake ou Reboot deste filminho sobre o pleito de 1955 que terminou com três presidentes da República em exercício não se repita este ano. Há rumores de que os roteiristas acharam a ideia de um militar dando um contra-golpe democratico meio forçada e pouco verossímil.
P.S. Cena pós-crédito que eu esqueci de narrar. O "impoluto", Lacerda é eleito governador da Guanabara, onde se envolve num escândalo de corrupção com banqueiros do jogo do bicho. É perseguido pelos militares depois de ter sido um bravo colaborador do golpe de 1964. Tem seus direitos políticos cassados durante o AI-5. Tela preta e em vez de “The End” surge a frase “This is Beginning".
Este artigo foi escrito por Marcelo Pereira e publicado originalmente em Prensa.li.