De líquido só o chá
Registro do encontro seguinte ao texto. (Natal de 2019: o último chá antes de interromper a tradição por conta da pandemia de COVID-19). Acervo pessoal.
Ah, a sociedade líquida.
A contemporaneidade vem passando por tantas transformações que ganhou um aspecto de permanente inconstância. É o que defende a teoria da Modernidade Líquida, do sociólogo Zygmunt Bauman. Para o autor, a modernidade de hoje é diferente daquela do início do século XX.
Bauman afirma que a chegada da modernidade trouxe liberdade e capacidade de fluir entre situações de conforto. No entanto, a princípio – antes da Revolução Tecnológica – essa liberdade servia para encontrar novas situações de conforto.
Era a ‘modernidade sólida’. A sociedade procurava coisas nas quais pudesse se firmar, ou seja, as pessoas buscavam planejar a longo prazo e transformar costumes em hábitos – criar tradições. As pessoas buscavam certezas.
O século XXI, com suas novidades, coloca a sociedade em uma situação de incessante fluxo e provoca crescentes dúvidas. Uma nova noção de individualismo faz com que as pessoas se contentem em planejar a curto prazo e percebam as relações como algo transitório. Essa é a ‘modernidade líquida’. Nela, tudo é maleável.
Se “água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”, teria uma modernidade quebrado a outra? Superficialmente, não é difícil pensar que essa transição do sólido para o fluido pode ter mudado completamente as relações humanas.
Mas aquelas amizades que foram conquistadas no passado estariam fadadas a se acabar? Se essa solidez tiver a necessidade de ser entendida como impossível de ser passada adiante, daria para dizer que de um século para o outro se acabaram as tradições?
Olha, eu posso dizer com confiança que não é bem assim.
O Portão da modernidade sólida
Essa história começa no início do século passado – lá na ‘modernidade sólida’ –, no Portão, em uma Curitiba bastante diferente da que conhecemos hoje. O bairro, que surgiu com o nome de Campo Grande, mais tarde iria se dividir em Portão, Capão Raso e Novo Mundo.
Narciza Landal Jacomassi – a Ziza – nasceu em 25 de abril de 1925 e cresceu na região que hoje é Capão Raso. “Tudo se resumia na Rua República Argentina, ainda sem calçamento, era só macadame. A rua não tinha luminança, a escuridão era completa”. Para chegar ao Centro, o único meio de transporte eram os bondes que iam do Portão até a Praça Tiradentes.
Para além da República Argentina, que era o local mais movimentado e acomodava o comércio, havia propriedades – principalmente chácaras – de famílias numerosas. E era impensável não conhecer toda a vizinhança.
Ziza estudou na única escola pública que existia ali na época. A escola, que hoje ficaria no Novo Mundo, atendia do primeiro ao terceiro ano e funcionava em uma sala alugada. “Nossa turma tinha vinte alunos das três séries e a professora era dona Angela Gracioto”. O quarto ano, todos faziam no Grupo Presidente Pedrosa (agora Portão).
Em uma comunidade tão pequena, os lugares de convivência eram sempre os mesmos, como relata Ziza. “A igreja era uma só: Senhor Bom Jesus, no Portão. A sociedade era o Clube Literário”.
E onde agora está o shopping Palladium, bem entre o Portão e o Novo Mundo, a República Argentina era cortada por uma linha de trem. “Existia uma estação de parada. Neste local funcionava a madeireira Bettega e numa casinha de madeira o Cine Radium, que aos sábados e domingos tinha sessões de filmes em preto e branco”.
Exatamente nesses ambientes, Ziza encontrava seu grupo de amigas. Grupo de vinte e duas amigas. Eram muito unidas, afinal desde pequenas frequentavam aquela mesma igreja e aquele mesmo clube – pequenas certezas da tal modernidade sólida.
“Esse grupo foi crescendo e formando cada vez mais laços, uma vez que as famílias já eram amigas. Nos bailes do Clube Literário, éramos acompanhadas por algumas mães que se responsabilizavam pela turma”.
De certa forma, foi aqui que eu entrei nessa história. Bom, foi aqui que a minha avó entrou na história. Uma das amigas era Clementina Stenzowski – a Vó Tima. Sua cunhada e algumas de suas irmãs também faziam parte do grupo: Francisca, Anízia (tia Nícia), Arlete e Escolástica (tia Nena).
A Vó Tima é minha avó por parte de pai. Ela nasceu no dia 14 de novembro de 1915. Mesmo tendo dez anos a mais que a Ziza, também estudou com a dona Angela Gracioto naquela sala alugada no Novo Mundo.
Mais tarde, todas elas se casaram, mas a amizade de adolescência não acabou ali, como Ziza comprova. “Algumas foram morar fora de Curitiba. Mas com o passar do tempo, todas voltaram e em 1966 resolvemos promover um encontro do grupo”.
Foi a partir de um esbarrão no ônibus que retomaram o contato e ficaram de marcar um chá com todas. Embora não tenha sido possível a participação das vinte e duas, essa reunião foi tão boa que deixou como fruto uma tradição – coisa sólida. “Deste encontro resultou um compromisso de nos encontrarmos uma vez por mês, cada vez em uma casa”.
E assim se vem fazendo desde então – é o ‘Chá das Amigas do Portão’, como Ziza nomeia. Toda primeira quarta-feira do mês, a partir das 15 horas, é realizado um encontro, que a cada vez é responsabilidade de alguma das integrantes.
A primeira formação, além de Ziza, Vó Tima, tia Nena, tia Francisca e tia Nícia, envolvia: Zélia Petersen; as irmãs Flora e Olga Tashibana; Josefa Pavelski; Genoveva Warombi; Ema Marcom; Lizete Negrelo e Orfelina Tiegel Landal. “Muitas já faleceram, mas a reunião continua mensalmente, agora com a presença das filhas, nova geração de boas amizades”.
O chá na nova modernidade – tudo é líquido?
A Vó Tima morreu em 1988, porém hoje minhas tias participam do chá: Ângela Maria Stenzowski Lucas Turra (tia Ângela), e Rosa Stenzowski Lucas (tia Rosinha). Além disso, algumas primas também integram o grupo (filhas das tias que fizeram parte) – solidez que se passou adiante, pois sim. E é por isso que desde pequena acompanho essa história.
Como eu nasci em 2000 e não conheci minha avó, as lembranças que tenho dela na verdade não são minhas – são as lembranças das minhas tias e do meu pai. E de acordo com a tia Rosinha, a Vó Tima era uma senhora muito simpática. “Era muito sociável, compreensiva, cheia de dons e muito família. Nos chás, ela interagia, gostava bastante de participar das reuniões e procurava ser útil para as amigas. Empolgava-se para recebê-las”.
A tia Rosinha demorou um pouco a entrar para o grupo – “Primeiro a gente só levava a mãe para os encontros. Mas lembro que a gente fez chá lá em casa também”. Só começou a participar vários anos depois de a minha avó falecer. “Mas não perdi o contato. Sabia que acontecia, porque minhas tias faziam nas casas delas.
Chamavam minha irmã, eu, minhas primas, mas como convidadas. Mais tarde que me tornei participante. Eu fiquei faceira, alegre, porque é uma honra poder participar de uma coisa que a minha mãe, minhas tias e as amigas tiveram a delicadeza de fundar”.
Do Chá das Amigas, obviamente, só as amigas participam. Mas tanta gente testemunhou a história, que as lembranças não pertencem apenas a essas mulheres. Uma testemunha, por exemplo, é José Marcos Lucas – meu pai. “Nunca participei, mas lembro da mãe, que participava, lembro das minhas irmãs e tias. E quando voltavam para casa, voltavam sorrindo, por terem visto as amigas”.
“Lembro que a minha madrinha (Orfelina) também participava. Depois a mãe contava que ela tinha perguntado de mim e transmitia os abraços. Muitas vezes eu levei a mãe e a Rosinha. Às vezes até o chá e outras até o terminal, para elas irem de ônibus”.
No início, as amigas levavam até crochê e tricô para fazer enquanto ficavam conversando. Por muito tempo, essas reuniões de fato aconteceram de casa em casa. Aquela que estava recebendo fazia algo especial para o chá, o que rendeu muitas receitas compartilhadas ao longo dos anos. Agora que a maioria está com a idade bastante avançada, são realizados encontros em confeitarias também – mudanças pertencem apenas àquilo que é fluido?
Seja onde for, assim que se encontram, a festa está pronta. Elas contam causos do passado, mas também fofocas da semana anterior. Mostram as fotos dos netos, contam piadas e dão muita risada. Antes de começarem a comer, é tradição que a anfitriã leia uma mensagem com um ensinamento, como uma forma de agradecer a presença de todas.
O último chá, de novembro de 2019, foi em uma confeitaria. Ele foi especial, porque ‘oficializou’ uma integrante nova: Maria Fátima Ferreira Lucas – minha mãe. Oficializou, pois foi a primeira reunião que ela organizou. “Meu chá foi uma tarde muito agradável. Eu estava feliz e deu para ver que elas também. Demos muitas risadas, tiramos fotos e programamos o próximo encontro”.
“Eu fiquei muito feliz, porque agora me senti mesmo participante. Parece que antes eu só levava minha cunhada. Apesar disso, elas sempre me trataram muito bem e eu me sentia muito acolhida”.
Na realidade, minha mãe começou a participar bem depois de mim. Quando comecei a estudar de manhã, e isso foi em 2011 – eu ainda tinha dez anos, portanto –, passei a acompanhar a tia Rosinha nas tardes das reuniões. Na maioria das vezes, a mãe nos levava até o terminal e nós íamos de ônibus. Se o chá fosse perto da casa da tia Ângela, descíamos no tubo que fica próximo ao prédio dela e íamos todas juntas de carro.
No entanto, não demorou muito para que eu deixasse de ser a ‘participante’ mais nova. Minhas primas, netas da tia Ângela, também estiveram em vários encontros. – Essa mistura de idades e gerações é bem cativante. Acho que todas nós aprendemos muito com isso.
E é interessante pensar que eu e minhas priminhas (elas mais do que eu) nascemos já inseridas na sociedade líquida. Desde sempre estivemos habituadas às constantes mudanças e, ao mesmo tempo, a essa simples certeza: de que amigas podem se encontrar todos os meses. – A Maitê nasceu em 2012 e a Malu em 2014. A tia Ângela as levava no carrinho desde que eram bem pequenas.
Minha mãe, em contrapartida, ia apenas nos buscar ao fim das reuniões. “O primeiro chá que eu lembro mesmo foi um que a Rosinha fez lá em casa, em 2011. Mas eu cheguei só no final, não participei”. Foi ali que a mãe conheceu o grupo todo, até então ela só sabia das tias. “Senti uma energia muito boa.
Descobri que uma das participantes (Marília Petersen), que já faz parte da segunda geração (é sobrinha da Zélia), foi minha professora de Português no tempo do Ginásio. Além de ser uma matéria que eu gostava, eu também amava a professora, que me marcou muito”. Em 2018, quando se aposentou, minha mãe começou a frequentar os encontros. Em 2019, esteve presente em todos.
A próxima reunião – de dezembro – será um pouco diferente. Foi programado um almoço de domingo, para que as amigas possam levar seus familiares. Entretanto, mesmo quando segue a regra de ser feito na quarta-feira, o último chá do ano sempre é especial. É o mais legal de todos.
Fazemos um chá festivo por conta do Natal. A anfitriã capricha na decoração e organizamos um amigo secreto. Em 2015, quando estava terminando o primeiro ano do Ensino Médio, levei uma amiga da escola – Djenyfer Fernandes de Souza – para participar da reunião.
Mesmo sem estar no amigo secreto, ela se admirou com a quantidade de presentinhos que levou para casa. É que já virou hábito das amigas preparar lembrancinhas e cartões para fechar o ano.
O encontro de Natal de 2016 foi ainda mais especial, porque comemoramos os cinquenta anos do Chá das Amigas. Além dos costumes de todo Natal, teve bolinho, parabéns e tudo o que um aniversário tem direito.
Alguns dias antes de cada chá – em todos os meses – as anfitriãs têm o costume de ligar para as amigas e reforçar o convite. Agora, existe também um grupo no WhatsApp: ‘Geração de Amizade’ – nesse caso, é algo líquido com potencial de manter o sólido.
Além de permitir esses lembretes, o grupo serve para avisar caso alguém precise mudar o dia do chá, convidar para comemorações de aniversário e, claro, mandar mensagens de bom dia para as amigas.
A foto do grupo é justamente do chá de Natal de 2016: a toalha decorada com flores vermelhas, o bolo com a vela de cinquenta anos e as três integrantes mais antigas – Zélia e Ziza, da primeira formação, e a tia Arlete, que entrou alguns anos mais tarde.
À parte do chá, também são grandes comemorações os aniversários das integrantes, principalmente quando completam setenta, oitenta ou noventa anos. Quando acontecem eventos assim, todas as amigas são convidadas.
Por outro lado, nos momentos difíceis, elas também estão dispostas a fazer o que for possível para ajudar e, se não podem estar presentes quando algo ruim acontece, contribuem com orações e pensamentos positivos.
No penúltimo chá, que foi na casa da Eliane, Ziza levou um álbum de fotos, e as amigas puderam ouvir as histórias das mais velhas e rememorar os momentos que viveram juntas na juventude.
Atualmente, além de Ziza, Zélia, tia Arlete, tia Ângela, tia Rosinha, Marília e minha mãe, participam: Eliane Jacomassi (filha da Ziza); Rosimari Stenzowski (filha da tia Francisca); Maria Inês Saad (filha da tia Nícia); Marilda Fabri e Shirley Zanikoski Túlio (filhas da tia Nena); Célia Regina Utrabo Merlin; Jurema Amorim (filha da Ema); Rosana Rigon (filha da Ana Elisabete – tia Bete –, que também foi integrante).
Na modernidade líquida, é possível ir além da conexão?
Por meio do conceito de modernidade líquida, Zygmunt Bauman classifica o momento atual como construído sobre a insegurança que decorre dos ideais de consumo.
A contemporaneidade, defende o autor, não só modificou as instituições sociais – alterou também a lógica com que as pessoas enxergam essas instituições. Bauman afirma ainda que até a forma como nos relacionamos com as noções de tempo e de espaço foram modificadas.
Sem os antigos referenciais de convivência, o que de fato rege a sociedade líquida é o senso de individualismo. Para descrever as relações pessoais frágeis da atualidade, o autor usa o termo ‘conexão’.
Por meio desta noção, o que destaca esse tipo de relação é o fato de que conectar/desconectar é um processo simples – pessoas podem ser vistas como mercadorias, e é perfeitamente aceitável descartar uma mercadoria.
O ‘Chá das Amigas do Portão’ é evidência de que nem sempre a água mole consegue furar a pedra dura. A amizade sólida do passado não só foi mantida, como fortificada e passada para as próximas gerações.
Não é como se essas senhoras não estivessem inseridas na sociedade líquida. Elas estão, e também estão sempre sendo moldadas pelas alterações que acontecem diariamente. Foram testemunhas de uma cidade que cresceu e de hábitos que se modificaram completamente.
Tiveram de se adaptar à realidade da Internet e dos smartphones. Aprenderam que não tem como evitar ficar presa na fila de carros, quando chega a hora de pegar os netos na escola. Ao mesmo tempo, hoje elas têm a oportunidade de tirar muitas fotos, com uma qualidade e uma facilidade que jamais imaginaram.
No entanto, elas sentiram a diferença entre a conexão de que trata Bauman e a relação de verdade. Perceberam que era possível manter a forma como se relacionavam no passado. Fizeram tudo o que puderam para dar certo, e deu.
Mais uma coisa sólida no meio da modernidade líquida: o exemplo. Ele é palpável e faz parte da minha vida e de todas as jovens que conheceram o grupo. Primas e amigas. A Djenyfer – que eu levei no chá de dezembro de 2015 – guarda até hoje o guardanapo daquele dia, e guardamos também a promessa de que no futuro vamos fazer igual àquelas senhoras.
Hoje é difícil, a vida é corrida, estamos sempre cansadas, dá para falar por WhatsApp. Pois é. Mas, para quem já participou, não fazer igual simplesmente não faz sentido.
Eu e Ziza, 2019.
Este artigo foi escrito por Giovana Lucas e publicado originalmente em Prensa.li.