Deepfake: democracia e liberdade em jogo
Se as fake news, notícias falsas divulgadas com o único intuito de prejudicar uma pessoa ou grupo já são suficientemente danosas, imagine isso feito com requintes de tecnologia, crueldade, interesses escusos e principalmente nenhum escrúpulo.
Essa é uma descrição modesta das deepfakes, falsificações envolvendo imagens e sons, por vezes tão caprichadas que mesmo parentes do indivíduo atacado têm dificuldade em reconhecer. Eventualmente, nem mesmo a própria vítima.
Desde as últimas eleições para governos estaduais e federal, em 2018, o termo começou a se popularizar por aqui.
Um vídeo envolvendo o ex-prefeito, ex-governador e atualmente ex-presidenciável João Dória Júnior, em situações muito íntimas alheias a seu relacionamento conjugal, explodiu nos grupos de “zap”. Até hoje, não se provou se era mesmo uma deepfake; no entanto, custou um bom número de simpatizantes do candidato, um bom percentual de votos, e por pouco não mudou os rumos da eleição.
Seria muita inocência presumir que quatro anos depois, num país completamente polarizado, com humores instáveis e ódios destilados à flor da pele, as deepfakes não retornassem com força total.
Só não se imaginava que emergiram com tamanha vontade, insolência e certeza de impunidade, incensadas pelos piores motivos possíveis.
Proposta de trabalho
No final da semana passada, surgiu uma postagem no site 1500chan, principal imageboard brasileiro. Nela, alguém convocava outros usuários a criar conteúdo eleitoral favorável ao atual presidente da República, prometendo um bom pagamento em criptomoedas. Detalhe: os criadores não precisam necessariamente acreditar no que iriam publicar.
O usuário fez postagens bastante diretas, dizendo que precisava fazer “a esquerda sangrar”. Discutia estratégias para combater jornalistas, de como colocar a culpa da crise econômica no isolamento social (e nos prefeitos e governadores que apoiaram o procedimento).
Disse ser necessário ampliar um sentimento de ódio em relação ao candidato de oposição; Sem o menor pudor, afirmou ser possível “moldar a população” com a propaganda online. Mais descaradamente ainda, diz que é necessário transmitir a sensação que o atual ocupante do Planalto está “certo em alguma coisa”. O que é, no mínimo, irônico.
Tudo, é claro, emoldurado por um belo retrato de Joseph Goebbels, gênio (no pior sentido possível) da propaganda da Alemanha Nazista. Indiretamente responsável pela queda do secretário de Cultura Roberto Alvim, em 2020, seu fã inconteste.
Ameaças nada veladas
Tem muito mais coisa nesse balaio do fórum. Até aqui, já configura crime. Mas tudo isso só veio a público por causa da reportagem investigativa do jornalista Lucas Neiva, antigo repórter do Jornal de Brasília, atualmente dando expediente no site Congresso em Foco.
Lucas publicou o conteúdo, logo replicado por outros veículos. Do mesmo jeito que essa notícia chegou até eu e você, também foi parar no usuário anônimo do fórum, que oferecia aquela irrecusável (e antiética) proposta de trabalho.
Como se esperava, o cidadão não-identificado não ficou nada feliz com a reportagem. E aqui começa para valer nossa história.
Exatamente às 10h30m02s da manhã de sábado, 4 de junho, surgiu a seguinte mensagem naquele fórum:
“Parece que alguém vai amanhecer morto”.
Vinte e dois segundos depois, outra postagem:
“Eu ri do jornalista esfaqueado em Brasília e queria que acontecesse mais”.
Às 10h37m:
“Acabamos com a vida dele ou ignoramos isso, o meio termo só vai prejudicar o chan”.
O comentário é seguido por um link. Ali, uma enquete decide sobre o destino da vida do repórter. Um tribunal da deep web, sem advogado ou juiz.
Dados pessoais de Lucas Neiva, e também da editora do Congresso em Foco, Vanessa Lippelt, foram publicados no fórum. Com instruções para criar uma campanha de desmoralização e difamação dos profissionais.
Alguns já vêm com estratégias de ação completas. Por exemplo essa pérola aqui:
“Sabem o que deveríamos fazer? Associar a imagem do jornalista com nazismo, como criando páginas dizendo que ele é um representante neonazista da cidade dele. Sabem como são os esquerdistas, eles atacam primeiro e fazem perguntas depois: assim conseguiremos sujar a imagem dele em um nível que ele nunca vai conseguir arranjar emprego nesse meio, especialmente se toda pesquisa feita no nome dele cair para isso”.
Outros já partem direto para os finalmentes, instigando os amiguinhos:
“Vamos ligar a máquina de ódio e assassinar a reputação dele ou vamos ser cornos mansos?”
Outro usuário, bem mais prático, já disse o que iria fazer:
“Se é ele se forçando aqui, então ele se fodeu. Eu vou fazer meus ataques sem falar aqui então. Ele não vai saber porque o passaporte foi cancelado, porque as contas do banco serão bloqueadas. Não vai saber quando, não vai saber porque. Talvez ele nem se lembre desse matéria daqui uns meses, mas eu vou lembrar dele.”
Direto de Brasília
Logo nas primeiras horas de segunda-feira, o Senado Federal se pronunciou, através da Comissão de Direitos Humanos, contra as ameaças feitas aos jornalistas. Em nota, o presidente da CDH, senador Humberto Costa, declarou:
“esses criminosos não cercearão a imprensa brasileira; esses criminosos não rasgarão a Constituição Federal. A democracia não ficará à mercê de pessoas sem caráter que trabalham para espalhar o caos”.
Outro senador, Fabiano Contarato, que também teve problemas com simpatizantes do atual presidente, aproveitou para indicar seu projeto de lei que criminaliza com pena de detenção de um a seis meses para quem pratica hostilidades contra profissionais de Imprensa.
Em nota, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Brasília e a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), manifestaram-se: “Esperamos que a investigação policial sobre o caso seja rápida e precisa para que os responsáveis pelas ameaças e ataques possam ser identificados e devidamente processados nos termos legais”.
Jornalismo sob ataque
Lucas Neiva registrou Boletim de Ocorrência. É importante destacar que só em 2021, o Brasil registrou uma média de três ataques diretos a profissionais de Imprensa por semana, conforme levantamento da ABERT - Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão.
Segundo informações da Fenaj, divulgadas pelo jornal Correio Braziliense, em todo o ano passado foram registrados nada menos que 430 ataques a jornalistas. E não estávamos num ano eleitoral.
Isto posto, vamos a algumas considerações. Primeiro, em política ninguém é santo. Em ano de eleição, até demônios costumam se travestir de anjos. No atual momento, pode-se considerar que essas postagens amistosas num imageboard são apenas uma amostra singela do que virá.
Não é um brinquedo
Independente de qual lado parta a orquestração de ataques usando deepfakes, ou seja qual for o recurso tecnológico empregado, é evidente que é um processo condenável. Não dá pra se usar a máxima “no amor e na guerra tudo é válido”.
Não precisamos ir muito longe: vimos cenas inimagináveis nas últimas eleições presidenciais dos Estados Unidos, onde o candidato que perdeu, além de ter usado todos os recursos tecnológicos diversionistas, ainda questionou o inquestionável, tentando “melar” os resultados.
A estratégia terminou na deplorável invasão do Capitólio por seus correligionários, insuflados por suas palavras de ordem, de quem não tem o menor espírito esportivo, o que dirá democrático. O resultado foi, literalmente, uma tragédia.
E há quem já pense em fazer algo muito parecido por aqui, no caso de derrota.
Tolerância zero
Manipular a opinião pública é errado, e deve ser passível de punição. Um dia antes que este escândalo viesse à tona, o Supremo Tribunal Federal, através do Ministro Alexandre de Moraes, informou que a Corte cassará os mandatos de candidatos que divulguem notícias falsas.
Quase ao mesmo tempo, o Ministro Nunes Marques suspendeu a cassação do mandato do deputado paranaense Fernando Francischini (União Brasil). O parlamentar havia sido cassado depois de afirmar, logo após as eleições de 2018, que as urnas eletrônicas haviam sido adulteradas, com a finalidade de impedir a eleição do atual presidente. A notícia, sem base alguma, foi impulsionada e repetida milhares de vezes por apoiadores e até hoje causa problemas de credibilidade ao sistema eleitoral.
Outras mentiras causaram problemas no combate ao Covid-19. Quem não lembra do chá de alho, da água quente, do álcool em gel no cabelo (!), da vacina feita com células-tronco de abortados, que a máscara não serve pra nada ou mesmo das funestas hidroxicloroquina e ivermectina?
O assunto renderá ainda muito pano para a manga. Denúncias sobre tentativas de coerção, agressões, divulgação de notícias falsas e muito mais irão pipocar nos próximos meses.
A democracia e a liberdade – incluindo aqui a liberdade de Imprensa – estão sob ameaça. E esse tipo de coisa não é negociável. Nunca será.
Eu volto.
Este artigo foi escrito por Clarissa Blümen Dias e publicado originalmente em Prensa.li.