DeFi: para além das finanças, a economia
Tobias Mayr - Mercado de São Paulo
Embora a tecnologia blockchain e as DeFi não sejam um assunto de amplo domínio, alguns de seus usos têm abrangido uma audiência cada vez maior.
Numericamente, o principal destes usos diz respeito à especulação financeira e a tentativa de se esquivar do controle da autoridade monetária.
No entanto, ambos usos estão longe de representar o que as DeFi tem de mais disruptivo e inovador em sua natureza.
O hiato entre o uso e o caráter mais inovador surge de uma velha disputa sobre o objetivo da ciência econômica.
Enquanto alguns economistas imaginam formas de combater problemas pontuais como inflação e estabilidade do câmbio, outros se ocupam em oferecer alternativas em relação ao próprio sistema de produção.
Não se trata de uma hierarquia das contribuições, afinal de contas, alguém tem que estar envolvido na solução dos problemas pontuais para que outro possa se dedicar aos desafios de longuíssimo prazo.
Como diz o ditado chinês: “é necessário plantar arroz e flores, arroz para viver e flores pra ter pelo que viver.”
Tanto a economia como ciência técnica (mais próxima da matemática) quanto como atividade especulativa (mais próxima das outras humanidades e da filosofia) são igualmente necessárias para o processo evolutivo da nossa civilização.
Desta forma, é importante que nossas percepções sobre eventos e objetos da economia não sejam restritos a uma abordagem exclusivamente técnica ou especulativa.
Ao observar as definições que grandes veículos de mídia dão ao tema das DeFi podemos concluir que o aspecto disruptivo na perspectiva econômica é ofuscado pela perspectiva exclusivamente financeira.
Vejamos alguns exemplos:
Segundo a revista Forbes, “DeFi aims to democratize finance by replacing legacy, centralized institutions with peer-to-peer relationships that can provide a full spectrum of financial services, from everyday banking, loans and mortgages, to complicated contractual relationships and asset trading.”
Já a Coinbase, “DeFi é a abreviatura de finanças descentralizadas, um termo abrangente que diz respeito aos serviços financeiros peer-to-peer em blockchains públicos, principalmente Ethereum”.
Para o Estadão “[…] DeFi é a aplicação dos contratos inteligentes da rede Ethereum. Apesar de ter a palavra “contrato” no nome, ninguém assina nada em lugar nenhum. Os smart contracts, como também são conhecidos, são contratos eletrônicos cuja execução é autônoma, ou seja, independente de qualquer parte.” [1]
O problema não é que estes veículos tenham optado por definir as DeFi a partir do seu aspecto financeiro, mas que seja raro encontrar uma definição que priorize a possibilidade de disruptura no sentido econômico.
Para encontrar este tipo de definição temos que discernir o tipo de ruptura que as DeFi potencializam no campo das finanças com o tipo de ruptura que potencializam no campo dos arranjos produtivos.
Trata-se de uma operação delicada, pois as finanças são uma parte central da economia.
No aspecto financeiro as DeFi são capazes de aprofundar transações do tipo p2p reduzindo o alcance de entidades públicas e privadas que hoje concentram o poder intermediário.
O potencial financeiro das DeFi permite aos indivíduos se esquivar dos atravessadores tradicionais do mercado financeiro e do Estado, pavimentando o caminho para uma utopia libertária hayekiana.
Por outro lado, as DeFi permitem reimaginar os arranjos produtivos e a própria relação entre o valor de uso, o valor financeiro e o valor abstrato de cada produto.
Isso se dá à medida que a possibilidade de tokenização de um item pode tornar opcional a submissão deste item aos critérios financeiros de valor.
Para exemplificar esta possibilidade vamos abordar um produto típico da economia financeira e com isso facilitar a experiência de imaginar a mesma logística do valor sendo aplicada à produtos da economia industrial.
O valor do crédito na economia tradicional é definido pelo seu custo financeiro, tal custo é definido mediante cálculos que envolvem risco e custo de manutenção da estrutura bancária.
Assim, cedo ou tarde (cedo no caso do crédito tradicional e mais tarde no caso do microcrédito) o valor do crédito será expresso em termos financeiros.
No entanto, as DeFi nos permitem “desfinanceirizar” o crédito ao propiciar a oportunidade de utilizar unidades de valor cuja existência é definida por regras que não se submetem aos critérios de valor do sistema financeiro tradicional.
Um dos exemplos dessa oportunidade é a possibilidade de estabelecer regras que limitem ou mesmo eliminem a possibilidade de acumulação do valor intermediário, o que por si já reduz a atividade de atravessadores.
Outro exemplo é a possibilidade de estabelecer regras que definam o valor de utilidade com peso sempre superior ao valor de troca de determinados itens.
É importante pontuar que todas estas possibilidades são frutos de experiências da imaginação econômica prévia ao surgimento das DeFi no contexto da tecnologia blockchain.
Um exemplo prático de iniciativas DeFi alheias à tecnologia blockchain pode ser encontrado no caso da possibilidade de trocar óleo de cozinha queimado por itens da cesta básica em algumas cidades do Espírito Santo.
Iniciativas como estas ainda demandam a atuação do Estado como intermediador e catalisador, provendo a estrutura necessária para a logística do valor e oferecendo incentivos para que comerciantes e produtores aceitem aderir à proposta.
O que as DeFi, potencializadas pela tecnologia blockchain, nos permitem fazer é reduzir o custo da estrutura de forma radical e criar sistemas de incentivos a partir de acordos orgânicos entre as partes envolvidas.
A organicidade destes acordos deverá fortalecer o tecido social, empoderando a sociedade e seus contratos, sem ameaçar o poder do Estado e sem intervir de forma veemente nas instituições tradicionais da economia financeira.
Por esse potencial, podemos dizer que as DeFi nos dão a oportunidade de retomar proposições da economia enquanto tentativa de organizar e dar sentido à complexidade das relações sociais.
Muitas destas proposições (advindas de socialistas, libertários ou anarquistas) eram até então consideradas inviáveis, seja pelo custo da estrutura de consenso ou pela escalabilidade da demanda, hoje são possíveis graças à tecnologia blockchain.
O experimentalismo em relação às DeFi não deve ficar restrito à criação de versões mais sofisticadas de estruturas já existentes na economia financeira tradicional e os exemplos que elencamos devem servir apenas para expandir e não limitar o horizonte de possibilidades.
Se observarmos as DeFi a partir do seu aspecto econômico temos a chance de reinterpretar alguns dos principais problemas econômicos de forma a conseguir superar as dicotomias tradicionais.
Tal superação não virá por um centrismo ingênuo e conveniente, mas por uma ampliação do leque de possibilidades para direções ainda não imaginadas.
Como disse o sábio (e bruxo), Ronaldinho Gaúcho: “Tão deixando a gente sonhar!”
[1] A amostragem de definições pode ser pequena, mas caso o leitor pesquisar em outros portais vai encontrar definições parecidas com estas.
Este artigo foi escrito por Dr. Marcelo A. Silva e publicado originalmente em Prensa.li.