Depois do intervalo
Não por acaso, dei um salto no tempo. Trinta e um de julho do mesmo ano. Penso em meu nome, nunca discutido na minha frente. Origem italiana. Posso dizer que o diminutivo do prenome era apelido e assim sou chamada até hoje por quem me quer bem.
[Há os apelidos que desconheço, é claro, mas não me ocuparei deles].
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Nenhum motivo para alterações. Gosto da composição, triplamente qualificada. Meu nome faz-me sentir diferente. Nunca conheci quem carregasse o mesmo, não nesta ordem: Rosa Acassia. Parece soar forte a quem ouve. Alguém me disse isso ao longo da linha do tempo. Acredito nisto.
Hoje meu nome traz uma trajetória de possibilidades que deram certo. Descartei os passos contrários. Lembrar para quê?
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Dezesseis e quarenta e quatro, coração onusto e lá fora o frio ousado. Importa que hoje o fardo foi leve e tenho o mundo nas mãos. Meus leitores não imaginam como é poderoso dizer isso. Ter o mundo nas mãos pode significar muito e não tem receita.
Observo as cores, as texturas, as formas. A percepção da casa já não é a mesma. Objetos realocados. Novas histórias serão contadas. Objetos estão cheios de memórias. São pequenos acontecimentos acumulados e vivos nos espelhos, celulares, álbuns de foto. Caso as memórias sejam angustiantes, melhor deixá-las em repouso. Se alegres, é minha obrigação trazê-las à tona porque isto me faz viver bem duas vezes.
[Quero que vocês saibam como é bom viver bem].
Alguns pensarão: “por que mexer no que está em silêncio”? Eu respondo: por que deixar guardado o que merece vir à tona? Ali naqueles objetos têm palavras. Que eu tenha discernimento para usar a sofisticação na medida certa e respeitar o que cada uma delas tem a dizer. Que aproveitem meu bom humor para deixá-las falar por si só. Minha intervenção nas palavras provocará mudanças quase imperceptíveis aos leitores. Palavras têm vida própria.
[Vida longa a cada uma delas].
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O texto, a meu ver, é uma das instituições mais democráticas que existem. A serviço de todos, abraça a narrativa, o poema nela contido e traços ensaísticos. Nele, fala-se de objetos diversos sob as mais diferentes perspectivas. No texto, os objetos e as sensações que eles me provocam são questionáveis. Dessa forma, não preciso sofrer até o final da vida pensando em não incomodar os objetos que me cercam e que foram colocados no ensaio de mais de quinhentas páginas para denunciar que tudo o que eu disse um dia era mentira.
No texto, os objetos têm vontade própria e podem me fazer de gato e sapato. Por falar em sapatos, não são poucos os que tenho. Com eles, faço a experimentação do mundo. Tudo o que os meus sentidos recusam, experimento com os pés. Ontem, tive oportunidade de discorrer a respeito das mãos e posso afirmar que ir de um extremo a outro em menos de uma semana é muita generosidade da linguagem com a minha pessoa.
Neste exercício de escrita, acredito que meus argumentos ficam melhor acomodados dentro de um ensaio. Isso justifica minha predileção pelo gênero narrativo. Ao poema, uma casa sempre acolhedora, peço desculpas nesse momento, mas um ensaio abriga toda a sofisticação e amplitude de que necessito para explicar aos leitores minha predileção por sapatos a qualquer outro objeto. Apesar de ser o objeto preferido das mulheres, basta uma primeira deformidade para que a substituição aconteça de forma calculista e a moda em muito contribui para isso: um número trinta e cinco desgastado e a movimentação na sapateira -ou na sapataria- logo é percebida.
Às mulheres, sempre é bom ter um zero quilômetro entre os muitos sapatos existentes no quarto. Se aparecer alguma ocasião especial, eles já estão ali, prontos para combinar com uma roupa também nova onde vai nos levar. Nem sempre pensamos em comprar sapatos para uso imediato. Aliás, nem sempre pensamos. Apenas compramos e a concorrência no abrigo onde vivem só aumenta.
Muito há que se pensar a respeito dos sapatos. Número, cor, modelo e há quem se ocupe disso nas muitas horas do dia. Há quem os coloque nos pés e vai, sem pensar em nada. Há quem os coloque em um dicionário e os define como um objeto que cobre apenas o pé ou parte dele. Há também aqueles que sabem onde o sapato aperta e pensam duas vezes antes de comprar um novo par. Seja como for, definitivamente, não vivemos sem eles.
Rosa Acassia Luizari
Este artigo foi escrito por Rosa Acassia Luizari e publicado originalmente em Prensa.li.