Descentralização como passo definitivo para o microcrédito
É comum que no caminho do aprendizado partamos de perguntas até chegarmos às respostas, no entanto, quando o objetivo é provocar uma discussão onde as perguntas são mais importantes do que as respostas, o caminho deve ser inverso. Desta forma, neste texto vamos partir de algumas informações e reflexões já disponíveis para chegar às perguntas que tornam tais informações e reflexões especialmente relevantes.
Quando o professor de economia Muhammad Yunus introduziu a ideia do microcrédito em Bangladesh, sua premissa era das mais simples: se os pobres obtivessem acesso a crédito em condições adequadas, poderiam melhorar sua condição de vida.
Tal premissa partiu da observação que o professor realizou da vida financeira de um grupo de pessoas na região onde lecionava. Segundo o relato de Yunus, uma vez que não tinham acesso a crédito formal, tais pessoas eram obrigadas a aceitar empréstimos de agiotas e outros criminosos para bancar sua atividade produtiva diária.
No final do dia, os agiotas ficavam com a maior parte dos frutos do trabalho daquelas pessoas. Ou seja, pela falta de acesso a crédito, tais pessoas se tornaram cativas dos esquemas de agiotagem. Este ciclo os mantinha na pobreza mesmo que diariamente produzissem valor suficiente para sair dela.
No Brasil, conforme estudo publicado na revista Época, até 2019 existiam cerca de 45 milhões de pessoas sem acesso a crédito, pessoas que movimentam mais de 800 bilhões de Reais por ano utilizando crédito de forma irregular como o recurso à agiotas, crédito em nome de terceiros, etc.[1]
Tais pessoas, rejeitadas pelo sistema financeiro tradicional, têm sua atividade produtiva reduzida à uma luta pela sobrevivência diária, e isso tem duas implicações graves: 1. A redução da vida ao instinto de sobrevivência; 2. O extravio de uma parcela do valor gerado no Brasil para entes privados e frequentemente associados a atividades criminosas.
Outra premissa de Yunnus era a de que a pobreza não diz respeito à capacidade das pessoas gerarem valor, mas ao conjunto de condições que determinam o destino desse valor. Se alterarmos essas condições, teremos a oportunidade de romper com algumas das principais condições de existência da pobreza.
O microcrédito, pode então ser interpretado como uma ferramenta produtiva que permite ao sujeito transcender suas capacidades materiais para explorar seu potencial em produzir e reter riqueza.
A partir desta perspectiva o acesso legal e seguro ao crédito assume o papel de uma ferramenta para expandir o horizonte de possibilidades da geração de valor para o indivíduo e para a sociedade como um todo.
Caso cumprido este papel, o microcrédito poderia ser um passo revolucionário na superação da pobreza nos países que optarem por sua adoção.
Controle, segurança e transparência: os desafios da expansão do microcrédito
O microcrédito foi introduzido ao mundo em 1976, e desde então desempenhou papel central na redução da pobreza no mundo e no Brasil. No entanto, conforme análise do próprio Yunnus e de alguns críticos do conceito, a expansão do microcrédito gerou uma confusão entre microcrédito, microfinanças e negócios sociais.
No caso brasileiro, o microcrédito é regido pelo seu marco regulatório em 2001 e pela Lei Complementar 167 de 2019 que regulamentou as Empresas Simples de Crédito.
Entre as características que distinguem tais regulamentações constam duas que nos interessam especialmente: a restrição ao recebimento de depósitos por parte dos seus clientes e a restrição para captar recursos em nome próprio.
Tais restrições advém da preocupação que o legislador teve com a vulnerabilidade econômica que caracteriza os tomadores de microcrédito no país, esta vulnerabilidade, caso a atividade do microcrédito pudesse render lucros, poderia dar lugar a abusos.
No entanto, tais restrições também servem de obstáculo ao crescimento da oferta de microcrédito como um todo uma vez que diminui a atratividade do negócio em si.
O impasse entre a necessidade da expansão da oferta e a necessidade de controle, segurança e transparência faz com que a oferta do microcrédito, no Brasil, seja apenas mais uma política pública de democratização do acesso ao crédito, e não uma revolucionária ferramenta de superação da pobreza.
Desta forma, resta a questão: existe alguma maneira de expandir a oferta de microcrédito sem expor o público tomador à abusos?
Novos regimes de propriedade e tokenização da reserva de valor
A partir da perspectiva normativa, a possibilidade de abuso das instituições que ofertam microcrédito em relação aos tomadores diz respeito aos juros mais altos permitidos nessa modalidade de crédito e à dependência que os tomadores tem em relação a estas instituições.
Desta forma, parece pouco provável que uma vez flexibilizada a oferta de crédito os casos de abuso sejam poucos e que o judiciário não seja soterrado com ações oriundas destes abusos.
Até uns 5 anos atrás este impasse serviria de justificativa para a legislação mais restritiva, afinal o risco era grande demais para valer a chance do prêmio.
Hoje, com o avanço das tecnologias de controle fiscal, com o Open Banking e a tecnologia blockchain, temos boas razões para acreditar que as condições técnicas de superação de tal impasse já estão disponíveis.
No entanto, assim como o surgimento de tecnologias que nos permitem, enquanto espécie, superar a fome e as doenças mais impactantes não erradicou tais problemas, mais do que novas tecnologias são necessárias novas perspectivas.
O núcleo normativo de tais perspectivas pode ser bem resumido nas palavras de Roberto Mangabeira Unger na obra Economia do Conhecimento (2018): “Podemos e devemos nos recusar a tomar a ordem de mercado em termos de “pegar ou largar” como se fosse simplesmente uma escolha entre mais ou menos mercado e mais ou menos intervenção governamental no mercado.”
Em termos precisos, a mudança de perspectiva necessária diz respeito à discussão sobre os regimes de propriedade disponíveis para as ESC e a disponibilização do direito à criação de reservas de valor em uma maneira ao mesmo tempo descentralizada e transparente.
Desta forma, chegamos às questões que nossos representantes no Estado e as lideranças do mercado deveriam estar preocupadas em responder.
1. A partir do momento em que temos um sistema financeiro mais transparente com o advento do Open Banking, faz sentido impedir as instituições que provém microcrédito de receber depósitos de seus clientes?
2. Não seria razoável supor que os depósitos poderiam, por exemplo, servir para prover liquidez para tais instituições sendo os próprios clientes remunerados por tal prestação, seguindo o modelo já disponível às grandes instituições financeiras através do CDI?
3. Se há receio de que a estrutura das ESCs não seja suficiente para produzir e administrar tal rede, não seria o caso do Estado, através do Banco Central, atuar como facilitador e observador? Da mesma forma como já faz para as grandes instituições financeiras.
4. Se o receio justificado ainda é grande demais, não seria o caso de experimentar com um tipo de ativo com circulação restrita a um conjunto específico de entidades públicas e privadas previamente selecionadas? Em termos simples, tokenizar a reserva de valor de forma a possibilitar ainda mais transparência para sua gestão.
5. Será que, uma vez que o BC já tem proximidade com a tecnologia blockchain (que foi inspiração do sistema PIX), não seria o caso de utilizar tal recurso?
A resposta a tais questões pode ser vista como o primeiro passo em um processo que, além de ser condição de possibilidade da universalização do acesso ao crédito, também é o primeiro passo em um movimento de descentralização da atividade econômica e democratização do mercado.
Referências
[2]https://www.criptofacil.com/pix-sera-semelhante-tecnologia-blockchain-diz-especialista/
[3] YUNUS, Muhammad. Creating a world without poverty: social business and the future of capitalism. 1st ed. Public Affairs. New York, NY.
Este artigo foi escrito por Dr. Marcelo A. Silva e publicado originalmente em Prensa.li.