Descentralização da estrutura monetária como forma de explorar o potencial da moeda
Nas últimas décadas, a sucessão de crises financeiras de alcance global gerou uma série de preocupações acerca do trato dado à moeda pelas diversas formas de autoridade monetária.
Em sentido estrito, a moeda é definida pelo seu poder liberatório (em relação à obrigações equivalentes) e de aceitação forçada. A partir do ponto de vista legal, a moeda é emitida pela autoridade monetária de cada país que concentra a responsabilidade por construir o equilíbrio entre sua oferta e demanda.
Jernej Furman DEFI
A nível global, a autoridade monetária é responsável por fomentar a liquidez do câmbio global, estipular metas de inflação, construir mecanismos de contenção de crimes financeiros internacionais e aumentar a transparência. Já no nível nacional, a autoridade monetária máxima é o Banco Central (BC) e sua autoridade é exercida em conjunto com as instituições financeiras do país. [1]
No Brasil, por exemplo, o BC executa a política monetária em parceria com as instituições do Sistema Financeiro Nacional (que auxiliam na execução) e com o Conselho Monetário Nacional, que formula políticas públicas e regulamentos para o funcionamento das instituições e para o mercado financeiro como um todo.
O contexto de surgimento do Banco Central na modernidade remonta ao Tratado de Westfália (1648) que definiu a Suécia como Guardião da Europa. Tal posto, no entanto, não condizia com o fato da Suécia ser um país com industria e força militar tímida. [2]
O chanceler Axel Oxenstierna sugeriu que o país deveria ter um banco central ao qual responderiam vários bancos presentes em cada cidade. Assim resolveriam dois dos principais desafios do desenvolvimento da indústria e do comércio: o suprimento de moeda física e o suprimento de crédito.
Após alguns séculos de experimentação institucional, o modelo da autoridade monetária centralizada se consolidou nos países europeus e nos EUA antes de ser espalhado para o resto do mundo. A forma de manter a estabilidade cambial global, até 1914, era através do rastreamento do valor de cada moeda com base em um peso fixo em ouro. Neste período, os BCs ainda não estavam vinculados à chamada ‘economia real’, ou seja, desemprego, fome, desigualdade, etc, não eram parte de suas preocupações.
Tudo isso mudou na primeira metade do século XX, quando duas guerras mundiais obrigaram os bancos centrais a priorizarem problemas sociais e da economia em geral. No que diz respeito à atualidade, os objetivos prioritários mais comuns aos bancos centrais são a estabilidade dos preços, o desenvolvimento econômico e a estabilidade financeira.
A natureza paradoxal da moeda
A preocupação acerca da natureza e gestão da moeda também pode ser encontrada no século 4 a. C., nos textos de Aristóteles. Partindo do pressuposto de que o dinheiro surge da necessidade de estabelecer justiça nas transações, o filósofo grego dispunha que o medo de ter seus bens do lado menos valioso da balança faz com que indivíduos tendam à tentativa de acumulação infinita de valores na forma da moeda. [3]
Isso ocorre pois, mesmo que a moeda em si tenha pouca utilidade prática (você não consegue comer, vestir ou se transportar usando o material físico que compõe a moeda), o seu valor convencional pode superar o valor de todos os demais bens.
No entanto, esta posição da moeda gera uma fragilidade, pois a forma econômica que centraliza na moeda valor superior aos produtos distorce a riqueza total disponível em uma relação comercial. Quando a moeda assume o posto de finalidade de todas as transações comerciais, é dito que sua natureza foi corrompida. A função da autoridade monetária, segundo Aristóteles, é evitar essa corrupção garantindo que a moeda seja um valor intermediário.
Atualmente a busca pela acumulação irrestrita gerou formas sociais caracterizadas pela escassez de acesso à bens produzidos em excesso. Por isso, podemos intuir que as preocupações de Aristóteles não foram sobrepujadas. Porém, ao mesmo tempo, o avanço tecnológico potencializou o experimentalismo em relação ao trato das finanças e à gestão monetária. Diante de tal avanço, nos resta questionar se é possível ‘descorromper’ a moeda.
As Finanças Descentralizadas (DeFi) podem ser descritas como um dos mais importantes experimentos de gestão de valor propiciados pela tecnologia blockchain. Potencializadas pelos contratos inteligentes das redes, algumas das possibilidades das DeFi, até o momento, incluem operações de crédito, financiamento coletivo, governança e derivativos. [4]
Todas estas funcionalidades não seriam tão interessantes caso mantivessem o aspecto fundamental da autoridade monetária centralizada: ser objeto de uma elite financeira e inacessível (do lado da oferta) para a maioria da população.
O que nos interessa especialmente é saber qual tipo de contribuição as DeFi podem nos oferecer no sentido de ‘descorromper’ a moeda, mas para responder a esse tipo de indagação é necessário decidir quais critérios definem uma resposta adequada.
Se a corrupção da moeda surge quando esta deixa de ser o valor intermediário para ser um valor superior aos bens, a forma de reverter seria conter o valor da moeda na intermediação das transações de forma que, embora os indivíduos pudessem acumular riqueza através da reunião de bens ou serviços, não o poderiam através da moeda.
Conquanto a desigualdade em si não seja um problema, mas um fato da diversidade humana, um tipo específico de desigualdade (associado ao acúmulo de riqueza) gera desafios para todas esferas da vida. Esta desigualdade faz com que as vantagens que um sujeito pode acumular em uma única esfera (a financeira) garanta vantagens em todas as demais esferas da vida (saúde, cultura, segurança, etc). [5]
Ou seja, o caráter transcendental do dinheiro em relação às esferas possibilita que a desigualdade interna a uma delas, que por si não é um problema, se converta em uma desigualdade em todas elas.
O potencial da moeda
A forma social alternativa à esta que descrevemos seria uma onde as esferas fossem relativamente autônomas em relação ao valor intermediário que utilizam em suas transações, assim a vantagem em uma delas não implicaria na vantagem em todas as demais. Em termos concretos, uma cadeia de valor comum a todos indivíduos e instituições que constituem cada esfera, que por sua vez é autônoma em relação a algumas outras esferas.
A acessibilidade da tecnologia blockchain torna o experimentalismo das DeFi acessível nos mais diversos contextos de forma que hoje temos exemplos funcionais desta realidade. O mais notável talvez seja a iniciativa da CELO de distribuir microcrédito para grupos de imigrantes excluídos do acesso ao crédito nas instituições tradicionais do sistema financeiro.[6]
A plataforma aproxima o microcrédito concebido por Muhammad Yunus à tecnologia blockchain e das DeFi para desvincular a desvantagem na esfera financeira (que caracteriza a vida de imigrantes desbancarizados) de uma desvantagem também na esfera do crédito, ao criar um sistema de crédito que utiliza o pertencimento comunitário como ferramenta para diminuir o preço e o risco do crédito.
O resultado imediato é o fortalecimento do tecido social e a promoção do desenvolvimento econômico, porém ainda mais importante é a oportunidade de prover autonomia monetária para que uma comunidade possa definir o valor do que produz e como este valor será alocado. Essa realidade só é possível fora do sistema financeiro tradicional onde o valor de tudo o que é produzido já é pré-definido por estruturas monetárias globais convenientes à elites financeiras.
Em termos simples, a autonomia para que as comunidades possam definir o valor daquilo que produzem só é possível com a descentralização da estrutura monetária. Isso não implica em abolir ou necessariamente reduzir a atuação da autoridade monetária centralizada, mas abrir espaço para novos regimes de propriedade e de valor intermediário.
*Uma versão acadêmica deste texto está pronta e será publicada no próximo ano.
[1] Bordo, Michael. “A Brief History of Central Banks”. Economic Commentary.
[2] International Monetary Fund. "Monetary Policy and Central Banking”.
[3] Antunes, Jadir. “Aristóteles e o problema do dinheiro e da justiça nas trocas”.
[4] Schmidt, John, Napoletano, E. “Descentralized Finance is building a new financial system”. Forbes.
[5] Esta perceção foi elaborada originalmente pelo filósofo Michael Walzer no livro “Esferas da Justiça”.
[6] Downer, James. Field Notes Undercollateralized DeFi Pilot in Colombia.
Este artigo foi escrito por Dr. Marcelo A. Silva e publicado originalmente em Prensa.li.