Devemos tolerar os negacionistas?
Arte de Carmen Vivas
Se você tem um mínimo de senso crítico, possivelmente teve a paciência torrada por um negacionista. Negacionistas são indivíduos que negam algo até a morte, mesmo sem razão, mesmo sem pesquisa, baseados na própria opinião.
“Ah, mas opinião não deve ser respeitada? Todo mundo tem direito de ter opinião!”
A questão é que, opinião sem embasamento é o mesmo que nada. E se você utiliza desse tipo de “opinião” pra discutir e negar, por exemplo, o holocausto nazista, a ditadura militar no Brasil, o aquecimento global ou a esfericidade da terra, é hora de tomar chá de simancol e repensar seus posicionamentos.
Para que possamos elucidar melhor isso, trago ao debate o paradoxo de Karl Popper, com o objetivo de responder a pergunta primordial:
Devemos tolerar os intolerantes e, por aproximação, os negacionistas?
UM PARADOXO FÁCIL DE ENTENDER
O filósofo Karl Popper publicou, em 1945, seu livro The Open Society and Its Enemies. Nesta obra, ele defende os valores de uma democracia liberal e critica o conceito filosófico de historicismo teleológico. Popper era um crítico do socialismo e do marxismo, mas foi notadamente um defensor da liberdade de opinião, por mais que fosse contrária a si.
É nesta obra que Popper levanta discussões e reflexões sobre o que ele define como o paradoxo da tolerância. De acordo com o filósofo,
“Tolerância ilimitada culminará no desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada até para aqueles que são intolerantes […], então os tolerantes serão destruídos, e junto com eles a tolerância.”
“Nessa formulação eu não sugiro que devemos sempre suprimir os discursos de filosofias intolerantes; desde que seja possível contrariá-los através da argumentação lógica e desde que a opinião pública os mantenha quietos, suprimi-los seria imprudente.”
Da publicação do livro até hoje, passaram-se mais de 70 anos.
Contudo, o raciocínio de Popper mantém frescor no contexto sociopolítico atual, principalmente quando consideramos o crescente aumento de grupos da extrema direita com relevância política no cenário global contemporâneo.
O paradoxo da tolerância permanece extremamente relevante. Mais do que isso: necessário.
Exemplos não faltam. Tomemos como amostra o neonazifascismo materializado na forma dos Alt-right, um movimento ultraconservador e nacionalista branco americano. Em agosto de 2017, um protesto deste grupo demonstrou a versão prática da teoria de Karl Popper.
O ato nasceu como uma reação à votação em 2017 que decidiria pela remoção do monumento em homenagem ao general do Exército confederado Robert Lee. Este personagem é um símbolo para os supremacistas brancos norte-americanos por ter sido um herói de guerra dos Confederados durante a Guerra Civil norte-americana.
Lee, assim como a esmagadora maioria dos brancos nos estados do sul dos EUA, era escravista. Seu trato com os negros escravizados de sua propriedade era desumano.
Sua estátua, para além de um simples monumento, é uma representação dos anos de escravatura, um espaço memorial de exaltação aos anos de cárcere e exploração da mão-de-obra negra.
No ato em Charlottesville, no estado da Virgínia, os Alt-right reuniram as principais correntes autoritárias da extrema-direita norte-americana, como a Ku Klux Klan, os neonazistas e os neo confederados. O protesto foi recheado de referências ao nazismo, com palavras de ordem racistas, bandeiras fascistas e manifestações contra imigrantes, em especial muçulmanos. Muitos estavam armados.
O ato supremacista em Charlottesville (Imagem/reprodução: Folha de S. Paulo)
A reação ao ato veio com o movimento antifascista, que se organizou para impedir as ações autoritárias. O confronto foi inevitável e violento, resultando em 3 mortes e aproximadamente 38 feridos.
Enquanto isso, a mídia norte-americana colocava panos quentes, relativizando a violência e colocando em postos de equivalência tanto os neonazistas quanto os antifascistas.
O próprio presidente norte-americano à época, Donald Trump, chegou a dizer que “há ótimas pessoas dos dois lados”, como se se tratassem de grupos com valores democráticos e razoáveis.
Seria possível colocar genocidas nacionalistas na mesma categoria que antifascistas cujo objetivo é impedir os próprios atos fascistas, em defesa da democracia?
Essa equivalência é, no mínimo, injusta. Olhando de uma forma mais crítica, é de uma desonestidade sem tamanho.
SOBRE DEFENDER A INTOLERÂNCIA NUMA DEMOCRACIA
Foto do protesto do dia 31 de maio de 2020, liderado pela Gaviões da Fiel em São Paulo (Reprodução/Twitter)
No Brasil, em 2020, torcidas organizadas de clubes, movimentos populares e grupos minoritários tomaram as ruas pedindo democracia e respeito às instituições em reação aos protestos anti-democráticos que pediam, entre outras coisas, o fechamento do STF e intervenção militar com um AI-5.
Só pra recordar: o AI-5 foi um ato institucional ditatorial que destruiu as liberdades em nosso país. Em uma democracia, vale ressaltar, esse é o bem mais precioso: a liberdade. Se você me perguntar se eu vou tolerar essa “opinião”, minha resposta é não! Isso não é opinião, é ataque à democracia.
E sabe quem concorda comigo? Karl Popper. Vê só o que ele diz:
“Eles podem proibir seus seguidores de ouvirem argumentos racionais, e ensiná-los a responderem argumentos com seus punhos ou pistolas. Nós devemos portanto reivindicar, em nome da tolerância, o direito de não tolerar os intolerantes.”
Essa intolerância pode ser considerada como uma ideologia total restrita, de acordo com o sociólogo Karl Manheim. Segundo ele, essa categoria de ideologia questiona toda a visão de mundo dos grupos oponentes, menos ela própria. Ou seja, “todo mundo está errado, eu estou certo!”.
E o que acontece quando toleramos isso?
Na década de 1930, os alemães o fizeram com Hitler. O resultado seria a 2a Guerra Mundial. No Brasil, a normalização do discurso de ódio por parte do Bolsonarismo proporcionou um aumento de 270% de células neonazistas no país. Isso significa que existem 10 mil pessoas em 530 núcleos espalhados pelo país.
O negacionismo da ciência não está distante disso, porque é intolerante em sua concepção.
Para deixar claro: ideias que pregam o totalitarismo, que negam a ciência ou mesmo a realidade objetiva (como a esfericidade da terra, por exemplo), até mesmo aqueles que acham que o coronavírus é gripezinha, nenhum deles deve ser tolerado.
Suas opiniões são baseadas em nada, e essa intolerância pode, sim, destruir a tolerância em uma democracia.
Este artigo foi escrito por Pablo Michel Magalhães e publicado originalmente em Prensa.li.