Dez anos de financiamento coletivo com Catarse
O conceito crowdfunding não é novo, já que pessoas desde sempre têm compartilhado recursos para realizar ações. Com as inovações tecnológicas a prática encontrou maior abertura no mercado e assim surgiram plataformas com intuito de facilitar o encontro entre proponentes de uma ideia e seus futuros apoiadores.
Mesmo com algumas iniciativas pontuais de crowdfunding, essa atividade chegou oficialmente ao Brasil em 2011 com a criação da plataforma Catarse, que trabalha com o financiamento coletivo de recompensa, no qual o projeto oferece contrapartidas não financeiras para cada valor de apoio, que por sua vez apresenta em dois modelos: Tudo ou Nada e Flexível.
Outra plataforma que também foi fundada no mesmo ano foi a Benfeitoria, que também segue o modelo de recompensas.
Confira a seguir o que será explicado neste artigo:
Origem do crowdfunding
O termo Crowdfunding é bem recente quando comparado a um dos seus primeiros casos. A primeira menção a essa prática ocorreu depois dos anos 2000 no ambiente online. A ideia por trás do financiamento coletivo é viabilizar projetos de uma maneira menos burocrática e mais independente.
E para quem não sabe, uma das primeiras campanhas de financiamento coletivo envolveu a Estátua da Liberdade. Esta era um presente da França para os Estados Unidos. O problema estava justamente no valor que seria necessário para produzir a base e o pedestal da estátua.
A falta de recursos da organização responsável fez com que as obras entrassem em um período de hiato.
O ponto de virada foi a campanha criada pelo editor Joseph Pulitzer — o mesmo que deu nome ao prêmio — em seu jornal na qual pedia aos cidadãos americanos uma quantia entre 1 e 5 dólares.
A campanha deu tão certo que a Estátua da Liberdade ficou pronta dentro do prazo, em 1886. No total foram arrecadados mais do que os U$ 100 mil necessários.
A quantia pode parecer bem simplória para o monumento em questão, mas na época 1 dólar equivale a aproximadamente 25 dólares hoje.
Crowdfunding: uma solução para a crise do Mercado Editorial
Um dos principais tipos de projetos criativos lançados por plataformas de financiamento coletivo são relativos a publicações de livros. Trata-se de um mercado concorrido, no qual os autores muitas vezes dependem financeiramente as editoras para publicar suas obras. Alguns podem até se arriscar e fazer um empréstimo bancário para arcar com os custos envolvidos.
Dentro desse cenário podemos acrescentar a crise do mercado editorial, que em 2018 entrou em retratação pela quinta vez seguida, segundo pesquisa Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro. O levantamento é feito pela Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas), em conjunto com a CBL (Câmara Brasileira do Livro) e o Snel (Sindicato Nacional dos Editores de Livros).
Saraiva teve prejuízo líquido, atribuíveis aos controladores, de R$ 51,2 milhões no terceiro trimestre de 2019 - Foto: Divulgação.
Ainda em 2018, duas das principais redes de livrarias brasileiras, Cultura e Saraiva – responsáveis por 40% das vendas do varejo livreiro nacional – entraram em processo de recuperação judicial.
Como consequência, várias lojas fecharam em dezenas de cidades, levando a demissão em massa e um calote de mais de R$ 300 milhões nas editoras.
Mas esta é apenas a ponta do iceberg.
A série Desempenho Real do Mercado Editorial aponta a queda de 20% no faturamento total de 2006 a 2019. Apesar do crescimento de 6% em 2019, a quantia não foi suficiente para repor as perdas de 14 anos, que teve uma expressão maior em 2015, quando começou a crise econômica.
Dessa forma, a crise no setor varejistas de livros direciona muitos autores e editoras independentes, os mais afetados, para soluções menos burocráticas, mais sustentáveis e criativas de viabilização de projetos, como o crowdfunding.
Mercado de crowdfunding
Apesar do movimento ter sido iniciado no Brasil em 2011, os Estados Unidos saíram na frente. Em meados de 2009, era fundado o Kickstarter, hoje uma das referências mundiais de financiamento coletivo.
Outro exemplo é o Indiegogo, plataforma na qual o brasileiro Gabriel Picolo fez história. A campanha de seu livro ilustrado Icarus and the Sun atingiu a marca de R$ 2.554.462.
Hoje nos Estados Unidos, o crowdfunding já é visto como um importante centro de inovação, lançando diariamente novos produtos, artes e serviços. Esse sucesso consegue chamar bastante atenção para esse modelo de negócios.
De acordo com o Statista, o financiamento coletivo arrecada US$ 17,2 bilhões anualmente apenas na América do Norte. E este número vem aumentando constantemente.
A receita total adquirida por meio do crowdfunding está projetada para chegar a US$ 300 bilhões até 2030. E de acordo com a Business Wire, esse crescimento deve gerar US$ 89,72 bilhões incrementais até 2022.
As plataformas brasileiras Catarse e Benfeitoria lançaram, em 2019, uma pesquisa sobre financiamento coletivo no país. A pesquisa O Coletivo do Financiamento contou com o apoio de mais 177 pessoas, além das duas plataformas.
A força está na comunidade
Raíssa Pena, Gerente de Novos Negócios no Catarse, acredita que há diferentes olhares para classificar uma campanha como marcante na história do Catarse. Uma das principais delas é o valor obtido para viabilizar o projeto.
"Falando sobre as grandes campanhas temos o Tormenta 20, da Jambô Editora, do ano passado; temos Ordem Paranormal do Cellbit; e tivemos agora recentemente a campanha recordista, que bateu todos os recordes do Catarse e crowdfunding na américa latina que é o Jovem Nerd", comenta Raíssa.
Tormenta 20 bateu a marca de R$ 1.918.106 arrecadados em somente dois meses de campanha. Na verdade, era a primeira vez que uma campanha ultrapassava a marca de 1 milhão na plataforma. Porém, mais do que o sucesso de viabilização de um projeto, temos algo muito maior, algo que os responsáveis por campanhas que atingem as metas entendem muito bem: o engajamento.
Sonhar em tirar sua ideia do papel é algo que muitos artistas almejam, o sonho de ter o seu trabalho reconhecido. Mas como Raíssa Pena pontua "uma campanha não começa no dia um", no caso o dia em que é dada a largada nos apoios. É preciso saber conversar e se fazer presente na sua comunidade.
Como foi o caso de Tormenta 20. A campanha teve como base duas décadas de história do maior sistema de RPG nacional já criado. Foram muitos anos de Reinos, novas raças e classes sendo adicionadas para serem material na imaginação dos jogadores. Todo um universo em expansão, formado por publicações, entre livros de regras, romances e quadrinhos.
Créditos: Ângelo Bortolini
E como uma campanha bem feita de RPG pode durar anos, há muitos jogadores bem ativos nas redes sociais e a Editora Jambô soube se aproveitar muito bem dos anos de relação construída com seu público.
Isso não significa que você precisará de 20 anos construindo uma comunidade de fãs para lançar uma campanha.
Em um primeiro momento um autor de ficção pode até pensar que possui uma obra incrível, com personagens marcantes e um final arrebatador, e talvez ele tenha mesmo uma receita de sucesso dentro daquelas páginas amarelas. Mas ele precisa saber se há demanda pelo seu livro. Há um público interessado? Quem é meu público-alvo?
Estatísticas do Catarse indicam que campanhas que atingem 10% de arrecadação no primeiro dia têm mais chances de bater a meta até o final do prazo de arrecadação, cujo limite máximo permitido na plataforma é de 2 meses.
Vale a pena se debruçar sobre algumas questões bem importantes antes de abrir a seu champanhe comemorando a abertura da campanha. No caso de um projeto literário, o autor deve ter as respostas para estas perguntas antes de começar:
Qual o gênero da minha obra?
O que as pessoas buscam nesse tipo de leitura?
Qual a faixa-etária do meu público?
O que levaria elas a apoiar meu projeto?
Quais seus autores favoritos?
Que livros tem na estante?
Essas são apenas algumas das perguntas que permeiam a superfície.
Por isso, um dos primeiros passos que um artista independente deve fazer é justamente encontrar sua voz perante seu público, se conectar com o mesmo antes do projeto ir ao ar e ainda mais, saber escutar o que as pessoas têm a dizer sobre seu trabalho. Como foi no caso da capa da HQ Arlindo.
A webcomic da ilustradora Luiza de Souza foi criada em 2019, mas é ambientada nos anos 2000, no interior do Rio Grande do Norte, e conta a história de Arlindo, um adolescente gay se descobrindo e amadurecendo, enquanto compartilha suas experiências com seus amigos. Esse ano a Editora Seguinte (Grupo Companhia das Letras) decidiu trazer as histórias de Arlindo para um livro físico.
Capa escolhida para a publicação de Arlindo
Segundo Raíssa, o plano inicial era uma capa dura rosa e durante as conversas com a comunidade foi visto que a maioria dela era LGBTQ, jovens que moravam ainda com os pais. Então a editora decidiu por uma capa preta, para não incitar nenhum problema ou nenhum tipo de violência ou mesmo constrangimento do leitor.
“Esse tipo de troca e tomada de decisão, junto com a comunidade não é muito comum no processo tradicional de produção de livros”, explica a Gerente de Novos Negócios. Isso implica em editoras e autores entendendo o valor da conversa com o leitor.
Uma das maiores vantagens que o financiamento coletivo proporciona aos seus desbravadores é a possibilidade de aumentar o contato com os fãs e criar uma comunidade em torno do seu produto ou marca.
Além de recordes de valores, há campanhas significativas que mostram como a comunidade evolui ao longo dos anos. Umas das campanhas mais emblemáticas foi Placas para Marielle Franco, levantada pelo Sensacionalista, uma campanha que mostrou a força do coletivo.
Mas não são apenas artistas independentes que se aventuram no mundo do financiamento coletivo. Algumas das grandes editoras nacionais já estrearam projetos na plataforma, como a Aleph, uma editora consagrada no mercado com 30 anos de existência. Há três anos ela lançava a campanha 2001: Uma Odisseia no Espaço.
Imagem promocional da campanha "2001: Uma Odisseia no Espaço"
Uma das maiores obras-primas de Stanley Kubrick, “2001: Uma Odisseia no Espaço”, baseado na obra de Arthur C. Clarke, havia completado 50 anos. Dessa forma, em parceria com o Catarse e o artista João Ruas, a Aleph propôs um projeto que vai além do próprio livro e faz o leitor ser parte da saga literária Clarke.
A ousadia da Aleph teve resultados no mínimo promissores na opinião de Raíssa, já que a iniciativa da editora representa um passo importante para o mercado editorial brasileiro, especialmente quando pensamos na crise que o setor enfrenta. A Aleph conseguiu R$ 460.567 na campanha.
Sair do tradicional e experimentar algo novo não foi exclusividade da Aleph. Tal mudança, quanto a viabilização de um projeto gráfico da editora, serviu de influência para que outras também tivessem interesse em lançar seus títulos de uma forma inteligente, ainda permitindo que seus leitores se aproximassem da realização do projeto.
Segundo Raíssa o sucesso da Aleph inspirou editoras como a Record e Seguinte a testarem esse modelo de publicação de livros. No caso da Editora Seguinte sua campanha de Arlindo se tornou a maior campanha de HQ na história do Catarse "Eu pessoalmente fico muito feliz que esse recorde seja de uma menina ilustradora, por se tratar de um nicho tradicionalmente muito masculino, e é um dos maiores grupos editoriais do Brasil", comenta Raíssa.
Arlindo surgiu como webcomic em 2019 e foi adaptado para uma HQ pela Editora Seguinte
O que foi iniciado pela Aleph é um movimento no qual editoras passam a ver o financiamento coletivo como estratégia de comunicação. Elas possuem meios de financiar seus projetos, porém ao trazê-los para o crowdfunding , é criado um vínculo muito mais forte entre autor e leitor. A própria campanha do Arlindo é um exemplo disso.
Editora Wish
Uma das editoras referências quando se trata de financiamento coletivo e engajamento de comunidade é a Editora Wish. Conhecida por seu catálogo formado, principalmente, por clássicos da literatura fantástica, a Wish teve sua origem no projeto de TCC de Marina Ávila, Produtora Editorial e Fundadora da editora. O projeto se tratava de um livro de Contos de Fadas em suas versões originais.
Tamanha foi a receptividade que o projeto serviu de pedra angular para a fundação da Editora Wish em 2013. 3 anos depois, a editora adotou de vez o financiamento coletivo como modelo de negócio para suas publicações.
Até o momento a editora conseguiu arrecadar R$ 1.386.578 em 13 campanhas únicas bem-sucedidas.
Todas as campanhas têm como base a relação com a comunidade. Quem é apoiador assíduo da editora sabe que sempre há alguma enquete onde o leitor poderá escolher a capa, as ilustrações, os mimos e até mesmo as famosas metas estendidas. Isso implica em tratar a comunidade como esfera viva, mutável e capaz de crescer com o tempo.
Para Marina Ávila o trabalho de engajamento com o público é constante, mas o essencial é amar o projeto apresentado. "Somos fãs de suspense, fantasia e boas histórias, então temos orgulho de participar de cada campanha. Buscamos apenas repassar essa paixão pelos livros para nossos apoiadores, e criar um objeto de arte e entretenimento que cause bem-estar ao ser recebido".
A criação de uma base de confiança entre idealizador e apoiador requer entrega e cuidado com cada exemplar, segundo a produtora editorial.
A Wish desde o início de sua jornada sempre trabalhou com produtos físicos, entretanto a pandemia de COVID-19 fez com que a editora repensasse suas entregas, especialmente quanto ao formato. O mercado editorial como um todo viu a crise recente aprofundar-se ainda mais com a pandemia.
Com a distribuição de livros pelos Correios afetada, e mais a instabilidade e insegurança de manter as entregas, era preciso repensar o produto viabilizado. A solução veio na forma da campanha de assinatura recorrente "A Sociedade das Relíquias Literárias". A campanha oferecia recompensas mensais em formato digital e com preços acessíveis.
O resultado foram vendas mais estáveis, a garantia de um mínimo capital de giro mensal e a relação com a comunidade permanecia ativa.
Contos raros disponibilizados pela campanha "A Sociedade das Relíquias Literárias" - Créditos: Marina Ávila
Os desafios e cuidados na criação da campanha
O financiamento coletivo envolve muito mais do que a emoção de bater a meta de 100% de campanha. Ele envolve custos, trabalho, pesquisa de mercado e muito planejamento.
Raíssa Pena acredita que é obrigatório ter o domínio do quanto custará o seu projeto criativo. O que em um primeiro momento pode parecer um pouco banal, mas a questão é que nem todo profissional domina o assunto.
"Eu vejo muita gente falando que não sabe mexer em planilha, mas não pode ter pavor de Excel. Quem tem pavor de Excel não faz campanha bem sucedida", deixa claro Raíssa.
É importante, enquanto empresário ou mesmo autor independente, saber o tamanho do seu projeto. Um projeto no valor de R$ 40 mil é bem diferente de um que custa R$15 mil.
Imagine construir toda uma campanha, arrasar na divulgação, fazer a comunidade estremecer. Tudo para no decorrer da campanha se deparar com a infelicidade de ter errado no cálculo dos custos e perceber que no final, a prometida capa dura e ilustrações precisarão ser descartadas por falta de dinheiro, mesmo a campanha tendo atingido o sonhado 100%.
Logo, noções de métricas e tornar o projeto palpável para o apoiador é fundamental.
E quando Raíssa afirma que é preciso entender de métricas para trabalhar bem sua campanha é porque nem sempre ela foi uma das colaboradoras do Catarse. Em 2016 ela lançou o projeto criativo Casa e Chão.
Foi preciso tempo para ler materiais sobre o assunto, e como ela bem diz no prefácio do livro Crowd: o guia de financiamento coletivo para autores e editores de livros, ela se sentiu "saltando de um trampolim com os olhos vendados".
O sentimento de Raíssa não fugia do que muitos outros artistas independentes sentem em suas campanhas de estreia. O que mais para frente culminou na criação do livro Crowd, que contou com o desenvolvimento de Marina Avila e Valquíria Vlad, outra responsável pela Wish, e edição da própria Raíssa.
O guia apresenta o passo a passo como estruturar um projeto, cobrindo os principais pontos desse universo como design, marketing, metas, prazos e envios. "Quando Crowd, o guia, foi criado, nossa intenção era repassar tudo que conhecíamos até então, sem guardar qualquer segredo. O método de iniciar uma campanha não tem uma 'sacada', é apenas um trabalho constante e apaixonado com cada detalhe, uma atenção especial ao leitor e um crescimento sustentável de engajamento", explica Marina.
Na visão da fundadora da Wish, quanto melhores forem as campanhas no ar, mais conhecido e confiável será o financiamento coletivo, beneficiando a todos.
A campanha do Contos de Fadas Celtas (capa verde) foi a maior da Editora Wish, captando R$ 352.595 e contando com apoio de 3330 pessoas. - Créditos: Marina Ávila
Diante das opções existentes no mercado para viabilizar um projeto criativo, o financiamento coletivo abre as portas para uma relação única entre o idealizador e os apoiadores. O público-alvo não irá apenas pesquisar pelo produto em questão. Mas terá uma participação bem mais ativa em todos os processos.
A voz do apoiador conta e muito em cada campanha lançada.
Outro benefício, além da criação e aproximação com a comunidade, é que pequenos empreendedores podem captar recursos sem precisar de um empréstimo bancário. Um escritor independente não fica dependente de uma editora para publicar seu livro.
Logo, o financiamento coletivo permite maiores iniciativas de nicho: produtos direcionados para um certo público e financiados pelos próprios consumidores finais, possibilitando um diálogo muito mais próximo.
Foi uma década muito difícil para o mercado editorial como um todo e 2020 não começou com facilidade para ninguém. Mas isso não elimina a necessidade que escritores tem de publicar, muito menos o quanto leitores precisam ler.
O Crowdfunding é um daqueles momentos onde o pioneirismo da internet dá o salto necessário para encontrar um caminho que transforme mercado, linguagem e meio.
Estamos todos rumo a um futuro incerto, mas teremos algo para ler até chegar lá.
Veja mais detalhes sobre projetos que fizeram história
Este artigo foi escrito por Luana Brigo e publicado originalmente em Prensa.li.