Discurso literário e direito
1. INTRODUÇÃO
Atualmente, o direito é considerado um instrumento para assegurar as liberdades fundamentais dos indivíduos que convivem em sociedade. Historicamente, porém, ele já foi considerado a instrumentalização da opressão. Essa constatação pode ser analisada sob diversas áreas do conhecimento, principalmente através da história. Também na literatura, o direito enquanto análise de certa preocupação social, tornou-se um tema interessante a ser discutido sob a forma de poemas épicos, peças teatrais e grandes romances universais. Harold Bloom, em O Cânone Ocidental, expõe que:
"Um poema, peça ou romance é necessariamente obrigado a nascer através de obras precursoras, por mais ávido que esteja para tratar diretamente das preocupações sociais" (BLOOM, 1994, p. 20).
Nesse sentido, há uma imbricação inequívoca entre direito e literatura. Esta, de maneira engenhosa, procura criar ou recriar os dramas universais inerentes ao ser humano. Por outro lado, o direito busca a legitimação de como proceder à normatização da convivência em sociedade, ou seja, de como regular o convívio social. Diante dessa perspectiva, é fundamental o papel exercido pelas obras literárias numa possível tentativa de “humanizar” o sistema jurídico. Antonio Candido se expressa do seguinte modo acerca da obra literária:
Uma obra literária é uma realidade autônoma, cujo valor está na fórmula que obteve para plasmar elementos não literários: impressões, paixões, ideias, fatos, acontecimentos, que são a matéria prima do ato criador (CANDIDO, 2000, p. 33).
Miguel Reale, por sua vez, menciona uma base fundamental e tripartite (fato, valor e norma) sobre a qual se estrutura o fenômeno do direito. Dessa forma, assim nos diz o referido jurista:
"Uma análise em profundidade dos diversos sentidos da palavra Direito veio demonstrar que eles correspondem a três aspectos básicos, discerníveis em todo e qualquer momento da vida jurídica: um aspecto normativo (o direito como ordenamento e sua respectiva ciência); um aspecto fático (o direito como fato , ou em sua efetividade social e histórica) e um aspecto axiológico (o direito como valor de justiça)" (REALE, 2015, p. 64-65).
Ambas as considerações, respectivamente de Candido e Reale, guardadas as devidas proporções, descrevem tanto os aspectos primordiais para a sistematização do estudo da literatura quanto da análise do direito. Há, pois, um elo entre o fenômeno literário e o sistema jurídico, tendo em vista que são descritos sobre uma base comum. Assim, questões-chave que transcendem, por exemplo, a ideia de verdade e de justiça, são problematizadas por grandes obras literárias, ao mesmo tempo em que tentam ser normatizadas pelo ordenamento jurídico.
2. VASTO MUNDO
A literatura ao retratar o meio social pode servir de base para dialogar com o direito aplicado em determinada época. A ideia universal de justiça, então, atrelada ao direito está presente tanto no “sertão” quanto numa “metrópole”. Todavia é por meio da linguagem que se dá tal manifestação. Veja-se o caso emblemático de Fabiano diante de uma “autoridade” em Vidas Secas, de Graciliano Ramos:
"Fabiano marchou desorientado, entrou na cadeia, ouviu sem compreender uma acusação medonha e não se defendeu" (RAMOS, 1998, p. 30).
Em outra passagem da mesma obra, é inquietante a postura do sertanejo diante da “autoridade” do soldado amarelo:
Afastou-se, inquieto. Vendo-o acanalhado e ordeiro, o soldado ganhou coragem, avançou, pisou firme, perguntou o caminho. E Fabiano tirou o chapéu de couro.
–– Governo é governo.
Tirou o chapéu de couro, curvou-se e ensinou o caminho ao soldado amarelo (RAMOS, 1998, p. 107).
A postura de Fabiano reflete seu duplo receio: o da linguagem e o da autoridade. A palavra é reverenciada pelo sertanejo, que não tem a mínima ideia de como usá-la para se defender diante de uma arbitrariedade. Vê-se, nesse contexto, que a linguagem é poder, exteriorizado na performance do soldado amarelo, o qual representa um instrumento de manutenção da lei e da ordem.
A manifestação teatral, em seu mais alto nível, na figura de William Shakespeare, também é propícia para um entrelaçamento com o direito. Com a peça Rei Lear, à guisa de ilustração, há uma importante referência à unificação do reino da Escócia com o da Inglaterra para a formação da Grã-Bretanha, em meio a inúmeras tensões políticas e, sobretudo, jurídicas quanto à criação de uma constituição que legitimasse ambos os reinos. Já em O Mercador de Veneza, Shakespeare traz à discussão o papel da juíza Pórcia no julgamento de um polêmico contrato. Neste diálogo entre Pórcia e Nerissa, há uma nítida menção ao caráter decisório de um juiz ao proferir uma sentença:
PÓRCIA –– Belas sentenças e ótima dicção.
NERISSA –– Melhores ainda seriam as
sentenças, se fossem postas em prática.
(SHAKESPEARE, Domínio Público, p. 11)
Ressalte-se que o direito, perpassando a figura do juiz, também é analisado em outras obras shakespearianas. Modernamente, convém ainda salientar a importante peça teatral O Círculo de Giz Caucasiano, de Bertold Brecht, na qual o juiz Azdak profere algumas falas intrigantes como esta:
"Vá me buscar o livro grosso em que me sento. Shauva apanha o livro na cadeira, Azdak o abre: Isto é um código, podem dar testemunho de que sempre me utilizei dele. Shauva: Sim, pra sentar-se em cima" (BRECHT, 2010, p. 166).
Leon Tolstói, em A Morte de Ivan Ilitch, expõe o “formalismo” rigoroso com que o juiz exerce o seu ofício, sendo uma espécie de contraponto ao modo de agir de Azdak:
Quanto ao trabalho em si –– isto é, os julgamentos –– Ivan Ilitch logo adquiriu a arte de eliminar todas as considerações irrelevantes ao aspecto legal e reduzir até mesmo o caso mais complicado a uma forma pela qual os fundamentos pudessem ser colocados no papel, excluindo completamente sua opinião pessoal e, o que era mais importante, cumprindo todas as formalidades (TOLSTÓI, 2010, p. 11).
Nota-se que a descrição literária no teatro de Brecht e na novela de Tolstói centraliza-se num tipo singular: o juiz. Porém, considerando as especificidades de Azdak e de Ilitch, o direito é vislumbrado em tais obras a partir da manifestação de vontade dos juízes, segundo a ótica que cada um deles tem acerca do modo “correto” de como deve ser aplicada a lei. Apesar da evidente complexidade em tentar uma abordagem mais profunda entre a arte literária e o direito, tem-se ao menos como objetivo primário deste artigo a ênfase de alguns pontos convergentes entre ambos. A partir de tal constatação, a matéria prima que delineia os contornos da literatura e do direito é esta: a linguagem. E a partir dela, o discurso literário pode contribuir para uma autocrítica da sociedade e, por extensão, do discurso jurídico. A esse respeito são extremamente oportunas as considerações de Antonio Candido em Vários Escritos:
"Chamarei de literatura, da maneira mais ampla possível, todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações. Vista deste modo a literatura aparece claramente como manifestação universal de todos os homens em todos os tempos. Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação. Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar as vinte e quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado" (CANDIDO, 2011, p. 176).
Destarte, o direito pode ser analisado, estudado e (re) interpretado a partir da literatura, porque ela também se debruça sobre estas questões universais: justiça, liberdade, igualdade, verdade, entre tantas outras. No entanto, apesar de as grandes obras jurídicas intentarem “explicar” o fenômeno do direito frente aos problemas da realidade, a literatura procura incorporá-lo à “fabulação”, dando-lhe vida por meio de grandes personagens universais, tais como Raskólnikov, de Fiódor Dostoiévski; Josef K., de Franz Kafka; Brás Cubas, de Machado de Assis; Riobaldo, de João Guimarães Rosa. Não há como se desincumbir da tarefa de enfrentar este “mundo vasto mundo” do Poema de sete faces, de Carlos Drummond de Andrade. Se o direito pretende regular, normatizar este “vasto mundo” que constantemente se modifica na esfera das relações sociais, então ele deve estar aberto, sensível, receptível ao fenômeno da arte literária, qualquer que seja o meio pela qual se manifesta. Nas palavras do jurista alemão Rudolf Von Ihering, “o direito é um labor contínuo, não apenas dos governantes, mas de todo o povo”. Sob este ângulo de vista, convém ressaltar uma passagem do livro Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, na qual há menção à força de um julgamento e sua posterior sentença:
–– “O julgamento é meu, sentença que dou vale em todo este norte. Meu povo me honra. Sou amigo dos meus amigos políticos, mas não sou criado deles, nem cacundeiro. A sentença vale. A decisão. O senhor reconhece?”
–– “Reconheço” –– Zé Bebelo aprovou, com firmeza de voz, ele já descabelado demais (ROSA, 2001, p. 296).
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Direito e literatura “amoldam” a realidade por meio da linguagem. É por meio dela que se criam “microssistemas de poder”. Isso fica patente na vida seca de Fabiano, na medida em que há uma “secura” de linguagem impedindo-o de reivindicar seus direitos. Assim, um certo “abuso de autoridade” do soldado amarelo remete-nos a pensar na dualidade entre uma linguagem “raquítica”, quase ausente na figura de Fabiano, e a linguagem “prolixa”, típica da tradição do direito. Aliás, em alguns aspectos, grosso modo, a linguagem literária diz “muito” em poucas palavras, ao passo que a tradição do direito não escapa à crítica de uma prolixidade que chega a beirar o absurdo por não dizer “quase nada” na tentativa de transcender o real por meio de uma linguagem “universalizante”. Neste aspecto, considerando as múltiplas realidades do Brasil, como o direito pode normatizar a vida de indivíduos inseridos em núcleos sociais diversos e distintos? Um possível passo em direção à resposta dessa complexa questão é uma reflexão acerca da linguagem do direito em um diálogo com o discurso literário. Nesse sentido, há que se estabelecer, por exemplo, como a justiça pode ser almejada sob a prisma do direito. Deve-se lançar mão de uma linguagem singular a cada estrato social de uma sociedade como a brasileira? Ou por meio de uma linguagem jurídica que transcenda a própria realidade? Como o próprio direito deve tecer uma autocrítica ao modo de decisão afeito aos juízes, entre os quais, ainda podemos encontrar os do tipo “Azdak” e os da espécie “Ilitch”? Tais questões podem, contudo, apoiar-se na literatura para uma tentativa de compreensão, para a formulação de novas diretivas sob as quais o direito possa agir e reagir frente ao “mundo vasto mundo” real em que as dinâmicas relações sociais regem a vida das pessoas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BLOOM, Harold. O cânone ocidental: Os livros e a escola do tempo. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2001.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 6ª ed. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 2000.
____. Vários escritos. 5ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Ouro sobre Azul, 2011.
IHERING, Rudolf von. A luta pelo direito. 8ª ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2014.
RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 74ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1998.
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27ª ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2015.
SHAKESPEARE, William. Domínio Público.
TOLSTÓI, Leon. A morte de Ivan Ilitch. Porto Alegre: Ed. L & PM, 2010.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 2001.
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Este artigo foi escrito por Celso Silva e publicado originalmente em Prensa.li.