Driele Veiga: jornalismo sem limites
Driele: jornalismo na raça | Imagem: Instagram
Se você quer irritar qualquer jornalista, uma dica: impeça de realizar seu trabalho, restrinja informações, e se possível, tente expulsar do local. Se for com uma justificativa ilógica, melhor.
Alguns saem do local contrariados, cultivando úlceras estomacais, procurando antidepressivos, ansiolíticos, e engrossando a fila de atendimento para doentes cardíacos.
Já outros… bem, fazem o mesmo que a Driele Veiga, da TV Aratu.
Caso você não tenha visto, recomendo que clique aqui nesse link e assista. É imperdível.
Contingenciamento de crise
Uma das principais repórteres do SBT na Região Nordeste, Driele, fazia a cobertura ao vivo de um incêndio numa torre residencial da capital baiana. Moradores foram socorridos e transferidos, quando um funcionário do prédio mandou a equipe da TV Aratu sair do local.
A gente logo imagina que o bondoso funcionário estivesse pensando na segurança dos jornalistas. Afinal, labaredas cresciam dentro do edifício. Não é?
Driele reparou que a ordem de retirada não valia para a equipe da TV Record Bahia. Estranhando, fincou o pé e questionou o funcionário, que se esforçava para afastar a equipe, numa cena cômica.
Chegou a informação que um morador do 12º andar é noivo da apresentadora do telejornal local da Record, tentando garantir uma exclusiva para a futura esposa.
O porteiro também admitiu a história, e insistiu para a equipe de Driele se retirar. Afinal, estavam em um imóvel particular e, ao contrário deles, a equipe da Record Bahia estava ali como convidada.
A arte do improviso
A repórter o confrontou, questionando se esse era o problema. O porteiro confirmou, enquanto tentavam empurrar a equipe da TV Aratu para fora do pátio.
Num lampejo de oportunidade, Driele abordou um grupo de moradores que estava próximo e, naturalmente, pediu: “Poderia me convidar a ficar aqui dentro também como morador? Você pode me convidar?”. Era Bernardo, o agora famoso morador do 402.
Convite feito, convite aceito. "Pronto. Agora estamos convidados". Os funcionários do edifício não tiveram o que fazer, a não ser acompanhar a repórter e sua equipe trabalhando livremente. "Sou ousada, mesmo. Meu nome é Driele Veiga, não é bagunça", arrematou.
Tudo isso ocorreu em Salvador, longe das redações nacionais das grandes redes de televisão. Mas, graças às redes sociais, Driele – e o morador do 402 – abriram um novo capítulo na história do telejornalismo brasileiro, como defensores e símbolos da liberdade de expressão e de uma imprensa democrática.
De Salvador para o mundo, com axé e tudo
A história do incidente na Bahia viralizou e correu o mundo através da internet. Seus seguidores, se contarmos apenas o Instagram, já somam 156 mil, e aumentando. Dias depois, Driele foi entrevistada em rede nacional pelo apresentador Marcão do Povo, no telejornal SBT Notícias. E mais seguidores surgiram. Há pouco tempo, abriu seu canal no YouTube, e vem postando suas peripécias por lá.
A irreverência sempre foi sua marca registrada, sempre buscando se equilibrar para não escorregar para o popularesco (veja entrevista abaixo). Recentemente, em uma reportagem sobre a alta no valor dos alimentos, gravou em uma feira livre com um lindo colar de… tomates. “Ostentação? Temos! Com alta de 133% o tomate saiu da boca e parou na mira do povo. O que acharam do meu colar ouro 18 TOMATES?”, postou no Instagram.
O colar mais caro que você já viu | Imagem: Instagram
Bônus inesperado: o cantor Márcio Victor, vocalista da banda Psirico, resolveu transformar a história em Axé, numa mensagem enviada para Driele! E tem tudo para estourar no próximo Carnaval.
Driele nasceu e cresceu no terceiro bairro mais populoso de Salvador, Pau de Lima, na periferia da cidade. Segundo ela, vem dessa origem sua habilidade para conversar com qualquer um, pois sempre foi acostumada a se comunicar de forma clara e direta.
Essa habilidade lhe conferiu uma desenvoltura ímpar, podendo falar tranquilamente com o povão nas ruas, como com políticos do alto escalão. Aliás, Driele é mais uma das jornalistas brasileiras que foi agraciada com um xingamento do Presidente da República.
Bolsonaro inaugurava obras de duplicação da BR-101 na Bahia, em um dos momentos mais graves da pandemia de Covid-19. Poucos dias antes, havia feito um comentário chamando as vítimas de “CPF cancelado”. Driele o questionou sobre a afirmação, recebendo de volta: “Você não tem o que perguntar, não? Deixa de ser idiota”. Como, aliás, é bem do feitio do mandatário mor.
Talento em família
A repórter tem laços estreitos com a comunicação desde muito cedo. O pai, Ubiratan Britto, hoje aposentado, foi um dos principais cinegrafistas da Band Bahia. Driele diz que viveu boa parte da infância e adolescência nos bastidores da emissora, então, TV sempre foi algo muito natural.
Benício e Driele: tal mãe, tal filho | Imagem: Instagram
Aos 36 anos, é mãe de Benício, um simpático garoto tão despachado quanto ela. Ao ser chamado “mulherzinha” na escola, por gostar de usar cabelos compridos, rebateu que era um elogio, porque seria como a mãe.
Sem apelar para o morador do 402, resolvi conhecer mais a fundo a história dessa jornalista, quase uma superstar dos noticiários regionais da Bahia. E descobrimos: Driele Veiga é uma figura. E um exemplo para o jornalismo.
CLARISSA: Como foi o início da sua carreira?
DRIELE VEIGA: Devendo! (risos)… O início foi na faculdade. Esse foi meu primeiro passo. Lá pagava a matrícula e devia o semestre inteiro. Quando passava, pagava a próxima matrícula e renegociava o semestre anterior. Depois vieram os estágios na “área”. Eu achava que ia estagiar numa TV, numa rádio, num jornal impresso. Mas quem disse? Meu primeiro estágio foi de atendente de telemarketing. Eu vendia toner de impressora. Depois fui estagiar como secretária. Até que surgiu a oportunidade de estagiar na TV Aratu, onde trabalho hoje.
CLARISSA: Sabemos que seu pai achava melhor você ter seguido outra profissão, mas o que sua família acha agora?
DRIELE VEIGA: Meu pai continua achando que devo buscar outros caminhos. Concurso de qualquer coisa. Pai é pai, né? Quer estabilidade e segurança para os filhos. Mas profissionalmente ele me acha uma repórter top! Isso pra mim é um mega troféu. Porque o painho é super criterioso e foi cinegrafista por anos a fio. Já passaram muitas repórteres nas lentes dele.
CLARISSA: Nas suas primeiras reportagens, você já arriscava essa informalidade?
DRIELE VEIGA: Eu sempre tive esse estilo. Eu o banquei. Não foi fácil porque comecei num momento que o jornalismo “quadrado” ainda era referência. Lembro que tinha uma editora que eu já sabia quando era ela quem editava minhas matérias. Se eu não começasse o texto de forma convencional e óbvia (seguindo o padrão quadrado a meu ver) ela cortava. Era uma briga constante que eu tinha. Mas eu sempre acreditei na minha forma de comunicar. Eu falo para o povo. Meu objetivo é fazer com que quem é doutor em alguma área e Seu José lá da roça me entendam da mesma maneira. Eu quero falar sobre alta de combustível e fazer Dona Maria, que nunca pegou numa chave de carro, saber que, apesar dela não ter veículo, o preço da gasolina interfere no preço dos alimentos que ela compra no mercadinho perto de casa.
CLARISSA: Sabemos que seu filho tem uma identificação muito grande com você. Como é para ele ser filho de uma jornalista tão popular?
DRIELE VEIGA: Ele não gosta muito. Principalmente com a pandemia. Fica preocupado. Diz que as mães dos amigos estão em home office e que a dele precisa estar nas ruas. Mas ele entende que é minha profissão, e que é do jornalismo que sai o dinheiro da mensalidade da escola dele, a merenda, etcetera. Por isso me apoia. Mas gostar, não gosta não!
CLARISSA: Como tem sido conciliar vida pessoal com o jornalismo?
DRIELE VEIGA: Uma loucura. Ser mãe, namorada, filha, dona de casa e profissional, não é nada fácil. Além disso, ainda tem a rede social que alimento, e desenvolvo trabalho de sororidade feminina, valorização pessoal e autoestima. Mas a gente se vira. Sou doutorada em improviso e deixa que me viro. (risos)
CLARISSA: Qual é o maior desafio de se fazer um jornalismo popular sem perder a credibilidade?
DRIELE VEIGA: O maior desafio é não se exceder. Não deixar a linguagem popular virar popularesca, esdrúxula. Falar de maneira clara e espontânea requer bom senso.
CLARISSA: Qual é sua maior influência no jornalismo?
DRIELE VEIGA: Rita Batista. Para mim não existe uma comunicadora tão bem informada, politizada, engajada, empática, debochada e dura (quando necessário) como ela. Sempre foi minha referência. Preta, vinda da periferia também, enfrentou muitos desafios e um deles que me marcou, quando li uma postagem dela no Instagram, foi sobre a resistência dela de manter os cabelos naturais no ar. Na época isso era algo quase impossível de se ver na bancada de um jornal. Hoje ela lança até turbante, meu bem! Ela é isso. Símbolo de resistência e vitória. Hoje minha amiga pessoal e eu tive o prazer de ser a repórter dela durante um tempo.
CLARISSA: O “caso do 402”: foi a primeira vez que tentaram te preterir em relação à outra emissora? Ou isso é recorrente?
DRIELE VEIGA: Comigo foi a primeira vez. Nunca antes tinha acontecido.
A equipe do canal de Driele no YouTube, Bernardo e o cachorro. Todos no 402 | Imagem: Instagram
CLARISSA: Você já tinha em mente pedir “asilo político” para algum morador, quando começaram a pressionar para que sua equipe saísse, ou foi improviso?
DRIELE VEIGA: Improviso total. Minha mente ali só estava em passar e buscar informações sobre o incêndio. O gerenciamento de crise, ao vivo, foi na hora ali. Repórter tem que ter raciocínio rápido.
CLARISSA: Qual foi o desfecho do caso?
DRIELE VEIGA: Eu fiquei, dei todas as informações e só sai depois que a concorrente saiu.
CLARISSA: Como ficou o clima entre vocês (TV Aratu) e Record TV Bahia depois do ocorrido?
DRIELE VEIGA: Do mesmo jeito de sempre. Normal!
CLARISSA: Ser xingada pelo presidente da República ao vivo dá um up na carreira?
DRIELE VEIGA: O que dá up na carreira é você trabalhar e focar no seu serviço. O resto será apenas apresentação para quem ainda não conhece o seu trabalho.
CLARISSA: Como você encara o atual momento do jornalismo?
DRIELE VEIGA: A Internet está roubando a cena. Acredito que as emissoras de TV precisam compreender isso e passar a usar os canais de rede social para estender a visibilidade.
CLARISSA: E o futuro?
DRIELE VEIGA: A Deus pertence!
CLARISSA: Você tem posição e opiniões bem claras a respeito do papel feminino na sociedade. O que as mulheres precisam fazer para ter um protagonismo maior no jornalismo e na TV?
DRIELE VEIGA: Estudar e correr atrás. Elas precisam entender que podem estar em qualquer cargo. Mas para isso, o primeiro passo tem que ser dado. A caminhada é longa mas a vitória é certa. Não parem!
Cara limpa e notícias sem filtros | Imagem: Instagram
CLARISSA: Qual é o momento favorito da sua carreira?
DRIELE VEIGA: O dia seguinte. Saber que você tem seu emprego e que no dia seguinte você vai acordar para fazer o que ama é, realmente, o meu momento favorito.
CLARISSA: O que você diria para quem está começando na carreira ou pensa em cursar jornalismo?
DRIELE VEIGA: Faça o seu sem se preocupar com o do outro. Porém, não deixe de cobrar o direito de igualdade. Não pense quão longo é o caminho para se tornar jornalista. Pense que depois que você deu o primeiro passo o caminho já ficou mais perto que longe. Nunca foque no problema. Se ele já existe, não tem mais o que ser feito. Bote o cérebro para providenciar a solução. Problemas foram feitos para serem resolvidos e na vida existem dois tipos de problemas: os que são e os que não são nossos.
CLARISSA: O que você gostaria de dizer que ainda não teve oportunidade para dizer em outra reportagem?
DRIELE VEIGA: Criem nosso piso salarial, aumentem nosso piso salarial. Está muito defasado e a notícia não para. Sendo assim, nosso salário precisa acompanhar a velocidade dela. Por mais valorização dos profissionais de comunicação. Afinal, informação é poder. E esse poder todos da área precisam também ter na conta bancária. Costumo dizer que “tapinha nas costas” é bom! Afinal, quem não gosta de ser elogiado? Mas reconhecimento financeiro paga boletos.
CLARISSA: Como é criar um filho homem numa sociedade machista e racista para ele ser um diferencial?
DRIELE VEIGA: Fazendo ele entender que a mãe dele é uma mulher que briga por equidade. Trazendo autores negros para a leitura, como a coleção da Editora Mostarda que fala sobre personalidades como Martin Luter King, Conceição Evaristo, Obama etc. Trazendo autores como Djamila Ribeiro e Carla Akotirene para casa. Ensinando que a obrigação dos afazeres domésticos é de quem vive na casa. Dando a ele tarefas como lavar banheiro, forrar a cama e lavar os pratos. Levando a ele situações do cotidiano, e perguntando de que forma ele vê aquilo e mostrando outras vertentes de pensamento. O conhecimento liberta.
*colaboração de Arthur Ankerkrone
Este artigo foi escrito por Clarissa Blümen Dias e publicado originalmente em Prensa.li.