Drive to Survive: a Fórmula 1 dentro da gente
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Nós, brasileiros que somos, temos nossa coleção particular de traumas nacionais, e um dos meus primeiros foi a morte de Ayrton Senna. Eu, que acompanhava o esporte por influência paterna (como muita gente, imagino), não conseguia acreditar que um super-herói da vida real tinha ido embora. E a partir dali o automobilismo nunca mais foi o mesmo na minha carteira de gostos pessoais, quanto mais a Fórmula 1.
Zoações à parte, Rubens Barrichello recebeu muito forte nos ombros o peso de ser o piloto brasileiro em ação, diante de um país órfão de seu ídolo maior nas pistas. Para qualquer um seria difícil demais corresponder às expectativas. Nem mesmo Felipe Massa, que também chegou perto de ser campeão, pôde escapar desse rescaldo. E então veio o tempo em que o Brasil não estava mais representado na categoria.
Sem Senna, sem brasileiros, com regulamentos que favoreciam além da conta as principais equipes, sem grandes emoções, foi difícil manter o interesse. Mas não foi um fenômeno apenas brasileiro. A Fórmula 1 viu seu público envelhecer e parecia não conseguir renová-lo. Mesmo com novos pilotos - como o carismático Lewis Hamilton, o primeiro negro em um cockpit - a distância da audiência parecia dar uma volta inteira no esporte em questão.
Até que os direitos de promoção e comercialização da Fórmula 1 passaram das mãos do “dinossauro” Bernie Ecclestone para a Liberty Media. E uma nova era midiática começava.
Netflix, sempre ela
Mais ousados, os novos donos do dinheiro queriam popularizar o esporte em mercados que sequer o conheciam ou o entendiam direito - como os próprios Estados Unidos, terra de tantas categorias de automobilismo. E usar de todos os meios possíveis para isso, dialogando com a geração atual e as futuras. De alterações no regulamento para aumentar competitividade - o que em si não era uma novidade - até saber se comunicar melhor e de forma mais pertinente.
A presença da Fórmula 1 em redes sociais, por exemplo, era a mais conservadora possível. Na nova fase, os takes dos Grandes Prêmios (como as ultrapassagens e disputas durante a corrida), além de interação com a audiência, foram cada vez mais frequentes nesses espaços. A aproximação dos pilotos com o público também teve na presença digital um bom caminho a partir desse período.
Daí para virar uma série da Netflix, não demorou muito. Mas como produzir um conteúdo visando buscar novos adeptos? Se fosse um documentário sobre a história da Fórmula 1, alcançaria mais quem já gostava. Era preciso uma linguagem e uma abordagem que pudessem cativar e, claro, fidelizar. Deixar aquele gostinho de quero mais que desaguaria nas transmissões das corridas e em tudo o que envolve o chamado “circo” da F-1.
Então que tal um reality show?
Drive to Survive: reality show de um tema só
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A série “Drive to Survive” (ou “Dirigir para Viver”, título em português) humaniza os pilotos como poucas vezes se viu na Fórmula 1. No máximo em documentários específicos ou em poucos filmes de Hollywood - como o excelente “Rush - no limite da emoção”.
Quem assiste adentra os bastidores e desafios de temporada das equipes, com entrevistas desde os chefes de equipe até a família dos pilotos, assim como áudios trocados entre engenheiros e os astros do esporte durante as corridas. As temporadas de 2018 a 2020 são mostradas não de forma cronológica, mas em função de se contar uma boa história a cada episódio. Os que não têm acompanhado a Fórmula 1 (como eu) se sentem surpreendidos com tantos plot twists baseados em circuitos reais.
As técnicas que vemos em reality shows estão bem presentes ali. A principal delas é a edição que vai conduzindo nossas emoções conforme a narrativa que se quer dar. Vamos identificando “mocinhos” e “vilões” (que vez por outra trocam de lugar) e somos levados a tentar depurar um perfil psicológico de cada um. Sem nos darmos conta, logo nos flagramos torcendo por um ou outro, e os mais carismáticos (ou que assim são mostrados) saem na frente.
Porém há fatores objetivos que limitam essas técnicas: as corridas aconteceram, e já se sabe o resultado final de todas aquelas trajetórias no campeonato. “Drive to Survive” vem acrescentar camadas que mesmo um aficcionado pela Fórmula 1 não teria acesso, ou não veria contado daquela maneira.
Gente como a gente, guardadas as devidas proporções
A humanização dos pilotos é bem feita, tanto que soa muito artificial quando eles respondem durante entrevistas que não têm medo, ou clichês como “estou aqui para vencer”. Considerando que estamos falando de uma elite de um esporte de elite, dizer que “eles são como nós” soa meio forçado. Mas há uma amostra de quando têm dúvidas em relação a sua capacidade, os dilemas na hora de fazer as escolhas profissionais, o fato de terem que lidar com expectativas de chefes, família, amigos.
Dá pra dizer que na maior parte do tempo - até para fazer o arco redentor ao final - os pilotos são mostrados “no perrengue” de seu dia a dia. Quem assiste tem a impressão que não é fácil chegar ali e que ser piloto tem um grande quê de vida adulta que muitos de nós conhecemos bem.
Há uma sutileza: a série não acompanha apenas as equipes top como Mercedes e Red Bull, como também as intermediárias que lutam pra se manter no grid ano após ano. Então, diferente da sensação de só ver quem foi pro pódio, saímos interessados pelos demais competidores. Quando o assunto é muito técnico, a série traz o repórter especializado Will Buxton pra explicar e deixar todo mundo o máximo possível “na mesma página”.
E “Drive to Survive” retoma o gosto pelo esporte, que é o objetivo principal.
Um efeito final é ficarmos na dúvida sobre o que dá mais curiosidade de assistir: a próxima temporada da Fórmula-1 ou da série na Netflix.
Este artigo foi escrito por Marcos André Lessa e publicado originalmente em Prensa.li.