Elis & Tom diante da inovação e do legado
Personagens ativos nas revoluções da arte e da comunicação, o que podemos refletir sobre inovação, modernidade e comunicação com os Encontros e Despedidas de Elis & Tom?
Quando o assunto é Elis Regina, inevitavelmente lembramos do recente episódio onde a montadora Volkswagen recriou a imagem da cantora com o uso das inteligências artificiais. Ao lado de Maria Rita, embaladas pelo hit atemporal Como Nossos Pais. A mãe Elis dirigindo a vintage - nunca velha - Kombi dos anos 50, e a filha Maria Rita com as mãos na versão moderna batizada de VW ID.Buzz.
Essa não foi a primeira controvérsia tecnológica que serviu de encruzilhada na carreira da cantora que recebe o título de maior do Brasil até os dias de hoje. Do rádio à TV, do banquinho e violão à guitarra elétrica, da metade do século passado ao ano de 2023. De Tom à Elis.
O documentário Elis & Tom: Só tinha de ser com você apresenta imagens inéditas do encontro da cantora Elis Regina com o maestro Antônio Carlos Jobim e dá sequência ao resgate da memória da musica brasileira através do cinema.
Os Encontros e Despedidas de Elis Regina e Tom Jobim
Rio de Janeiro, 1964
Vinicius de Moraes e Carlos Lyra convidaram Tom Tobim em 1964 para participar do disco do musical ‘Pobre Menina Rica’, a protagonista da história seria Elis Regina, que na última hora foi vetada por Tom. Na época, surgiu um boato de que Tom dissera que a música de Elis tinha gosto de churrasco. Tom também acabou não participando do disco. Foi o primeiro desencontro dele com Elis.
São Paulo, 1967
No dia 17 de julho de 1967, em defesa das “raízes” musicais brasileiras, Elis marchou pelo Largo São Francisco em direção ao Teatro Paramount, na Avenida Brigadeiro Luís Antônio em São Paulo, onde aconteceria o programa Frente Ampla da MPB. Segurando cartazes com os dizeres “Defender o que é nosso!”, Elis e os mpbistas protestavam contra a adoção da guitarra elétrica na música brasileira.
Entoando o discurso de que o instrumento estrangeiro trazia consigo um novo gênero fundamentado na “eletricidade” e que isso mancharia a identidade da música brasileira.
Na mesma época, os Beatles e a Jovem Guarda faturavam fortunas com o uso do instrumento. Na passeata com Elis estavam Geraldo Vandré, Zé Keti, Gilberto Gil e outros nomes vencedores de festivais da canção que aconteciam nos teatros com a realização das estações de rádio e emissoras de televisão. Alinhados à uma ideação musical que pretendia suceder os caminhos trilhados, até certo ponto, pela bossa nova.
A bossa sempre foi alvo da crítica ferrenha de Elis, que nunca se conformou em conter a voz para o canto minimalista típico do gênero, de Nara Leão, João Gilberto e Antônio Carlos Jobim. Outro desencontro.
Brasil, nos últimos anos
Na cinebiografia Elis, lançada em 2016, há uma cena onde uma jornalista pergunta à cantora porque ela passou a usar guitarra elétrica em suas músicas. A personagem de Elis então rebate: “Artista muda de ideia. Ainda bem!”. As músicas dos discos Ela e Transversal do Tempo registram na história que Elis mudou de ideia em relação à guitarra elétrica, no entanto, será que Elis mudou de ideia sobre a bossa nova e Tom Jobim?
É essa resposta que o filme Elis & Tom: Só tinha de ser com você busca responder partindo do ano de 1973, num momento de extrema popularidade na carreira de Elis e uma certa repercussão de sua imagem em declínio. Anos antes, se tornou desafeto do Governo Médici por criticar a condução do Brasil pelos militares durante uma entrevista no exterior. Ao mesmo tempo, duramente criticada pela elite cultural e os veículos de comunicação que enfrentaram a censura, como por exemplo, quando foi simbolicamente enterrada no cemitério de um dos personagens das histórias do cartunista Henfil no jornal O Pasquim. O motivo da morte de Elis? Ter cantando nas Olimpíadas do Exército daquele ano. Ser enterrada no cemitério das charges de Henfil, naquela época, era como ser cancelado nas redes sociais nos dias de hoje, só que com um pouco mais de prumo.
Ao mesmo tempo, Tom sentia na pele um suposto desprestigio pelo surgimento de novos gêneros brasileiros e o hipotético ostracismo da bossa nova. Ao mesmo tempo que era, ao lado de Pelé, um dos brasileiros mais reconhecidos mundialmente. A Philips e os profissionais da Industria Fonográfica que guiavam a carreira de ambos os artistas, encontraram no disco colaborativo a modernidade que faltava à obra de Tom e o bloqueio à decadência do prestígio de Elis.
A possibilidade de gravar um disco com Tom Jobim foi dada como presente para Elis Regina por seus dez anos de contrato com a Philips. Existem muitas versões conflitantes sobre a produção de Elis & Tom, com gravações realizadas entre 22 de fevereiro e 9 de março do mesmo ano no MGM Studios de Los Angeles, Califórnia.
Havia diferenças entre Elis e Tom, o histórico de desencontros e o fato de que o disco não era de Tom, mas de Elis convidando Tom participar de um disco dela. O pianista e o arranjador Antônio César Camargo Mariano era uma das exigências da direção pessoal de Elis. Jobim, conhecido por seu extremismo com detalhes, temia que os arranjos não saíssem de acordo com seu senso artístico.
Enfim um encontro, Elis e Tom só souberam aliviar a tensão da insegurança que tinham um com o outro quando passaram a traduzir suas contradições em música. No entanto, toda a trajetória que construímos de um ou do outro não deixa de ser uma artificialidade típica do artista que tem sua imagem transformada em marca.
A passeata contra as guitarras elétricas não deixou de ser uma ação promocional para o programa de TV; assim como o encontro entre dois cânones da música popular de um país também não deixou de ser uma gestão de crise combinada a um reposicionamento de marca, ou como a publicidade anda preferindo - um rebranding. Assim como Elis Regina Versão IA no comercial de TV, ainda que distorcida, também não tenha exposto contradições ao mesmo tempo que arrepiou fãs emocionados que a acompanham até hoje.
Sair da vida para um cemitério é comum, é o ciclo natural da vida. Mas sair de um cemitério para a vida, só mesmo simbolicamente. E Elis faz isso desde quando estava viva e ainda existiam pasquins.