Elizabeth Holmes: um dos maiores escândalos do Vale do Silício
Era bom demais para ser verdade.
Em 2003, o mundo presenciava o surgimento da “Apple da Saúde”. Com apenas 19 anos, Elizabeth Holmes fazia uma promessa: revolucionar o mercado de exames de diagnóstico. Apelidada de “nova Steve Jobs”, Holmes falava sobre um dispositivo de análises de sangue que aposentaria os famosos frascos por punção venosa.
Com apenas algumas gotas de sangue seria possível realizar dezenas de testes, como diabetes, colesterol e até câncer. As pessoas compraram rapidamente a ideia. E o mais importante para Holmes, isso incluía o Vale do Silício.
Mas como uma jovem tão promissora acaba banida do setor da saúde e agora se torna alvo de duas acusações de conspiração e nove de fraude?
Elizabeth Holmes vira um fenômeno e aparece em importantes publicações.
Uma ideia que valia demais
Em 2003, Elizabeth Holmes era uma estudante de engenharia química na Universidade Stanford. Ela chegou a fazer um estágio no Instituto Genômico de Singapura, onde fez parte do desenvolvimento de testes para detecção do vírus Sars-CoV-1, o antecessor da Covid-19.
Seu retorno para os Estados Unidos foi marcado pela ambição de revolucionar a medicina e democratizar o acesso ao sistema de saúde no país. Um desejo cheio de boas intenções a princípio. Para isso, Holmes deixou Stanford e fundou sua própria empresa, a Real-Time Cures, em 2004, que nove anos depois seria apresentada oficialmente ao mundo como Theranos, junção de “therapy” (terapia) e “diagnosis” (diagnóstico).
Através da sua empresa, Elizabeth Holmes conseguiu despertar o interesse de diversas pessoas, como investidores anjo. A possibilidade de fazer mais de 240 exames com uma coleta ínfima de sangue era atraente, barata, e na hora, uma opção muito confiável vinda de alguém como Holmes.
Quem comprou a ideia
O dinheiro de capital de risco inicial veio de seus laços familiares. Um dos amigos de faculdade de seu pai a apresentou ao super-investidor Don Lucas, que também trouxe para o investimento o fundador da Oracle, Larry Ellison, de acordo com o The New York Times.
Dentre os defensores das propostas de Holmes:
Tim Draper, da empresa de capital de risco Draper Fisher Jurvetson — Ele era vizinho de Holmes na infância. Draper foi um dos primeiros investidores de Theranos, e continua a ser um dos defensores mais fervorosos de Holmes;
A família Walton, fundadora do Walmart — Forneceu US$ 150 milhões, segundo documentos não selados das atuais ações judiciais movidas contra Theranos;
Rupert Murdoch — Investiu US$ 125 milhões;
Betsy DeVos, a secretária de educação do ex-presidente Donald Trump, e sua família — Investiu US$ 100 milhões;
Membros da bilionária família Cox de Atlanta;
Carlos Slim, magnata mexicano.
Até 2014, a Theranos levantou mais de US$ 700 milhões de capitalistas de risco e investidores privados, resultando em uma avaliação de US$ 10 bilhões, chegando no seu auge.
Edison e o começo do declínio
Os preços dos testes propostos por Elizabeth Holmes eram bem mais baratos que os tradicionais. Alguns custavam pouco mais de US$ 1, sendo o mais caro o de hepatite C, cerca de US$ 113. No sistema de saúde dos EUA um exame assim custava US$ 720.
As pessoas que desejassem mais facilidade na hora de fazer seus exames podiam simplesmente usar em suas casas uma pequena cápsula e lanceta (para perfurar a ponta do dedo) da Theranos e enviar depois a amostra para a empresa. A análise do material era feita pelo aparelho Edison, que ganhou o nome em homenagem a Thomas Edison
Material para envio de amostra de sangue para a Theranos - Divulgação
Os negócios da Theranos, bem como a reputação de Holmes ficaram abalados com as reportagens do jornalista John Carreyrou, do Wall Street Journal (WSJ) em 2015. A investigação de John levou cerca de 5 meses e afirmava que a tecnologia conhecida como Edison não funcionava e a Theranos diluía suas amostras de sangue para fazer os exames em máquinas de laboratório regulares, como as da Siemens.
Depois de sua investigação, o jornalista afirmou em artigo que era provável que os resultados dos exames feitos pela startup e seus equipamentos não fossem precisos o suficiente. Nessa época a Theranos já havia admitido que alguns dos testes precisavam de uma coleta completa de sangue, e não somente poucas gotas.
Durante a reportagem do WSJ, Theranos excluiu uma frase em seu site que dizia: "Muitos de nossos testes exigem apenas algumas gotas de sangue."
Elizabeth Holmes, que já havia sido mencionada na lista de bilionários da Forbes, se deparou com o começo da queda. Após as acusações de falsificação de exames de sangue, a empresária perdeu sua licença de realizar os testes nos Estados Unidos.
Em janeiro de 2016, os Centros dos EUA para Serviços Medicare e Medicaid (CMS) lançaram relatório sobre uma das instalações da Theranos, afirmando que ela apresentava riscos para a saúde e segurança dos pacientes. Quatro meses depois, a rede Walgreen encerrou sua parceria com a Theranos.
Escândalos à parte… Theranos lança nova máquina
Ainda em 2016, Elizabeth Holmes compareceu à reunião anual da Associação Americana de Química Clínica, e no lugar de justificar as investigações criminais e civis federais contra sua empresa, Holmes decide anunciar um novo produto: Theranos Sample Processing Unit, ou "miniLab”, que surgia como sucessor do controverso e aparentemente fracassado Edison.
Diante de uma plateia de cientistas, médicos e profissionais de laboratório, Holmes alegou que o miniLab era capaz de realizar uma série de testes, incluindo a detecção do vírus Zika, a partir de uma 160 ml de sangue.
O miniLab era do tamanho de uma impressora de computador, e, ao contrário de suas máquinas Edison, não estaria presente nas lojas. Em vez disso, Holmes disse que seria usado em ambientes hospitalares, mas fora do laboratório - em locais como unidades de terapia intensiva neonatal.
Geoffrey Baird, professor associado da Universidade de Washington, declarou ao The Wall Street Journal, que "cada peça de tecnologia que eles apresentaram é conhecida há muitos anos, e existe em outras plataformas em grande parte na mesma configuração, ou em alguns casos em forma muito mais compacta nas plataformas concorrentes".
Em outro momento, Baird também comentou que Holmes fez uma apresentação de "isca e troca", argumentando que Theranos estava mostrando um protótipo em estágio inicial, distraindo as pessoas dos problemas da máquina Edison.
Durante o evento, Holmes apresentou publicamente alguns dados antes da nova máquina ser lançada, demonstrando uma mudança de abordagem, quando antes mantinha tudo em torno de suas operações em completo sigilo desde 2003. Entretanto, os dados clínicos apresentados no palco não puderam ser verificados, e a máquina miniLab não foi aprovada pela Food and Drug Administration dos EUA.
MiniLab, equipamento apresentado em agosto de 2016 para supostamente substituir o Edison - Divulgação
Os depoimentos no caso Theranos
Em 2018, após tantas dúvidas quanto a real eficácia dos aparelhos da Theranos, em Holmes finalmente foi acusada de fraudar investidores em US$ 700 milhões. E agora, três anos depois iniciou-se o julgamento de um dos maiores escândalos do Vale do Silício.
James Mattis, o general aposentado do Corpo de Fuzileiros Navais e ex-secretário de defesa dos EUA, durante o governo de Trump, testemunhou em 23 de setembro, no julgamento de Elizabeth Holmes. Segundo Mattis, a empresária o enganou, fazendo-o acreditar no lançamento de um dos maiores avanços de testes sanguíneos do mundo. Testes que, para Mattis, poderiam salvar vidas de tropas em batalha.
O depoimento de Mattis no 6º dia de julgamento durou mais de 3 horas, nas quais ele teceu duras críticas à Holmes, sendo o mais condenatório até agora. Holmes foi retratada como a pessoa que estava no controle total da Theranos e não seu companheiro na época, Ramesh “Sunny” Balwani, ex-presidente e diretor de operações da startup.
O ex-secretário também comentou como ficou impressionado com Elizabeth ao conhecê-la em 2011. Dois anos após o contato inicial, Mattis já integrava o conselho da Theranos e também investia algumas de suas próprias economias na startup.
Outra testemunha foi Adam Rosendorff, antigo diretor do laboratório Theranos, sendo ele o segundo funcionário da empresa a dar seu depoimento.
Apesar dos termos de confidencialidade bem restritos impostos por Holmes, impedindo qualquer divulgação não autorizada sobre a Theranos, Adam mesmo assim encaminhou os e-mails de trabalho para uma conta pessoal. Seu medo de levar a culpa pelos problemas da empresa eram bem maiores do que a quebra de sigilo.
A partir daí, novos e-mails foram introduzidos ao caso, tornando evidente o fato de que Holmes tinha conhecimento dos problemas. O ex-funcionário afirma que em vários e-mails tentou fazer com que os laboratórios da empresa executassem testes aprovados pela FDA, no lugar dos desenvolvidos internamente.
A lista de potenciais testemunhas para o caso abrange mais de 200 nomes, incluindo ex-senadores, funcionários que viraram denunciantes e pacientes que dizem ter sido impactados por resultados imprecisos dos testes Theranos.
Aqui estão alguns dos maiores nomes que podem testemunhar no caso:
Ex-secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger — membro do conselho de administração da Theranos.
Ex-secretário de Defesa dos EUA, William Perry — membro do conselho de administração da Theranos.
Presidente executivo da News Corp, Rupert Murdoch — investidor na Theranos.
Ex-CEO do Grupo Bechtel, Riley Bechtel — membro do conselho de administração da Theranos.
Ex-CEO da Wells Fargo, Richard Kovacevich — membro do conselho de administração da Theranos.
Ex-diretor do Escritório de Diagnóstico In Vitro e Saúde Radiológica da FDA, Alberto Gutierrez — Investigadores da FDA visitaram a sede e instalações de laboratório da Theranos para uma inspeção em 2015, de acordo com a Vanity Fair.
Irmão mais novo de Elizabeth Holmes, Christian Holmes V — Elizabeth Holmes contratou seu irmão para trabalhar na Theranos em 2011.
Ex-repórter do Wall Street Journal, John Carreyrou — deu a notícia do escândalo dos testes Theranos em 2015.
Ex-senador dos EUA, Sam Nunn — membro do conselho de administração da Theranos.
Ex-chefe de operações navais dos EUA, Gary Roughead — membro do conselho de administração da Theranos.
Ex-senador dos EUA, William Frist — membro do conselho de administração da Theranos.
Ex-diretor do CDC, William Foege — membro do conselho de administração da Theranos.
Advogado de alto perfil, David Boies — representava Theranos e também era membro do conselho de administração.
Professor da Universidade de Stanford Channing Robertson — Robertson foi um dos professores de Holmes em Stanford e um dos primeiros membros do conselho de administração da Theranos.
Fundador da Duquesne Capital, Stanley Druckenmiller — Druckenmiller e Holmes foram nomeados membros do conselho curador do think tank do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais em 2015.
Cerca de 11 ex-pacientes da Theranos que dizem ter sido afetados por resultados imprecisos do exame de sangue da empresa.
Banco de dados destruído?
De acordo com informações da CNBC, um banco de dados SQL da empresa chamado Laboratory Information System (LIS), que apresentava três anos de resultados de testes da Theranos, ainda está desaparecido.
Os promotores federais do caso alegaram que os executivos da antiga unicórnio deliberadamente destruíram o LIS, para depois compartilharem com os investigadores uma cópia pouco útil, após a intimação de 2018. Eles ainda declararam que a taxa de falha do sistema de exames de sangue Theranos foi de 51,3 %.
Sem os dados precisos de exames de sangue da Theranos fica difícil estipular o número exato de pacientes que receberam resultados errados.
Caso seja condenada, Elizabeth Holmes, que deu à luz a seu primeiro filho em 10 de julho deste ano, pode enfrentar até 20 anos de prisão e uma multa de US$ 250 mil por cada acusação de fraude.
Ela se declarou inocente de todas as acusações.
Este artigo foi escrito por Luana Brigo e publicado originalmente em Prensa.li.