Emma. é irritantemente real
Quando Jane Austen publicou “Emma.” a autora deixou claro que a personagem não iria agradar quase ninguém além dela.
A autora estava certa. Para aqueles que nunca leram a obra em questão, a versão adaptada para o cinema, dirigida pela jovem diretora Autumm de Wilde e lançada em 2020, pode ser extremamente cansativa. E a personagem, muito mais irritante do que o normal.
Jane Austen descreve Emma como uma jovem rica, bonita e inteligente, e se temos somente esses adjetivos superficiais nos levam a pensar em Emma de forma preconceituosa.Ela é uma jovem livre, dentro dos limites da sociedade inglesa do séc. XIX, que não almeja se casar e passa parte do seu dia bancando a casamenteira com as pessoas que conquistam seu seleto afeto.
Se Emma vivesse hoje, ela seria descrita como intrometida, fofoqueira, alguém de nariz empinado. Dito isso, me arrisco a dizer que De Wilde e sua roteirista, Eleanor Catton, atingiram de forma excêntrica o objetivo.
Isso porque nessa nova adaptação da obra de Jane Austen, ao invés de as qualidades da heroína serem destacadas, o foco aqui foram seus defeitos.
Emma não é uma heroína comum de Austen. Ela é cheia de defeitos, falhas e cercada da ingenuidade de uma vida com privilégios. Emma é a heroína imperfeita.
Depois que sua amiga (e governanta) se casa, Emma se vê sozinha e sai em busca de casar mais uma pessoa. E suanova vítima é a Srta. Harriet, uma jovem humilde que vive em um internato.
Logo as duas se tornam grandes amigas. Emma ensina Harriet a se vestir, se portar, selecionar seu círculo de amizades e inclusive encontrar o melhor pretendente possível para se casar.
Neste momento do filme, é impossível não ficar com raiva da inocência de Harriet e o senso de superioridade que Emma carrega no olhar que, sem sombra de dúvidas, é mérito exclusivo da intérprete Anya Taylor-Joy.
No decorrer do filme, Emma passa dos limites, e causa uma imensa bagunça com sua ingênua amiga Harriet. É particularmente curioso ver a personagem se segurando para não perder a postura em meio à confusão criada.
O ápice do longa metragem é exatamente a exibição de erros tolos. Como dito antes, Emma é uma personagem peculiar de Austen por expressar de forma natural gestos e posturas reais.
Ainda na tentativa de fazer Emma mais humana, a personagem aparece de costas à lareira, levantando o vestido para aquecer suas partes traseiras.
Sua arrogância é seu maior charme — por mais curioso que pareça — e, quando a personagem se dispõe a pedir desculpas, seu arco redentor se completa, embora nenhum telespectador consiga segurar o “ranço” por Emma.
Apesar da direção possuir alguns desvios como cortes secos sem necessidade, para a autora que aqui vos fala, o maior elogio vai para a fotografia apresentada.
As paisagens britânicas extraordinárias, as cores delicadas e quase infantis (quase um filme com cores de algodão doce) caem como luva para preencher os pequenos alívios cômicos presentes.
De Wilde soube aproveitar seu talento como diretora de vídeo clipes e fotógrafa de forma excepcional. Graças a sua narrativa visual, algumas cenas falam não precisam de diálogos. Uma ação, um olhar, um gesto falam horrores.
O roteiro é bem fiel ao livro de Austen. A única mudança mais expressiva é a coadjuvante, ao final do filme, ser diferente. Mas não é nada que traga estranheza para o espectador.
A única pontuação para o roteiro é a sensação de que algumas falas estariam arrastadas demais, justamente por serem tão fiéis ao livro.
Um grande deleite em Emma. é a necessidade da produção feminina de desconstruir as expectativas de gênero e época. O charmoso Sr. Knightley (Johnny Flynn) é visto nu e vulnerável, invertendo a tradição comum de mostrar mulheres nuas em filmes de época. Esta autora não reclama de certos avanços em expressividade das diretoras modernas no cinema!
Emma. é um filme que irá causar estranheza e raiva àqueles que estão acostumados com Elizabeth Bennet e seu senso de justiça. Mas são exatamente os defeitos de Emma que a tornam real e adequada para o mundo atual.
Ver a protagonista falhando por sua teimosia, arrogância e se redimindo após enxergar seus erros, o final feliz seria só questão de tempo.
Mas a Emma de Autumm de Wilde é irritantemente real, doce e amarga.