Encarceramento em massa: a trágica experiência do negro americano
Encarceramento em massa: a trágica experiência do negro americano
O espetacular documentário, A 13ª Emenda, da diretora Ava DuVernay, conta com a participação da jurista Michelle Alexander. O filme, vencedor do prêmio de Melhor Documentário no BAFTA de 2017, nos mostra dados impactantes acerca das condições de vida da população negra americana ao longo dos anos até nossos dias.
A professora Michelle Alexander nos contemplou durante o filme com algumas revelações aterradoras sobre a situação dos negros estadunidenses. No entanto, é no seu livro “A nova segregação: racismo e encarceramento em massa”, que a jurista se aprofunda sobre genocídio do qual os negros são acometidos.
Após a leitura dessa obra, podemos afirmar com todas as letras que a famigerada "Guerra às Drogas" nos EUA é - como diria o mano MV Bill - "armadilha pra pegar negão". A América é o país que mais encarcera sua população no mundo, e sobretudo as suas minorias raciais. Os cerca de 350 mil presos em 1982, passaram para aproximadamente 2,3 milhões em 2011.
O racismo estadunidense se reinventa a cada momento histórico para subjugar os negros. Após a abolição da escravidão vieram as Leis Jim Crow de segregação racial. Com o advento do Movimento de Direitos Civis dos anos 1950 e 1960 e a derrocada do Jim Crow, o Encarceramento em Massa veio para substituí-lo. Esse último, entretanto, é muito mais perverso que seus antecessores, pois passa quase despercebido por conta de uma suposta igualdade racial perante a lei.
O primeiro aceno à Guerra às Drogas nos EUA foi dado pelo presidente Richard Nixon - um racista confesso - nos anos 1960, no contexto de protestos violentos por direitos civis que associavam o negro a "vagabundo", "baderneiro", "revolucionário" e "violento". Essa retórica racista foi utilizada como uma ferramenta para restabelecer "a lei e ordem".
Entretanto, é no governo de direita neoliberal de Ronald Reagan que a Guerra às Drogas ganha um impulso extraordinário. Nos anos de 1980 é quando se reduz em milhões o investimento para tratamento, educação e prevenção relacionado a drogas, e se aumenta em bilhões o investimento para repressão ao tráfico e consumo de drogas.
Para vocês terem uma ideia, apenas o DEA - órgão federal de repressão ao tráfico - passou de um orçamento de 33 milhões de dólares em 1981 para mais de 1 bilhão em 1991. O curioso de tudo isso é que o índice de consumo de drogas estava em declínio em 1982 quando a guerra foi declarada. E ainda mais insólito é que a droga mais devastadora que poderia justificá-la, o crack, só chegou às ruas em 1985, três anos depois de a guerra ter sido declarada. Curioso, não?
Nenhum Estado autoritário consegue perpetuar um projeto dessa magnitude sem seu principal aliado: a grande mídia. É nesse período que os noticiários de TV são abarrotados de reportagens acerca da degradação humana causada pelo consumo de crack.
É quando proliferam-se programas, ao estilo Polícia 24hrs, em que negros são humilhados, espancados e presos pela polícia por consumirem e venderem drogas. Associando de forma sensacionalista a imagem do negro à viciado e criminoso, o que habita até hoje o imaginário coletivo da população estadunidense.
Em nome da Guerra às Drogas são cometidas as piores atrocidades jurídicas que vocês possam imaginar, o que caracterizaria absolutamente um Estado de exceção. Se você for acusado - eu disse acusado, não condenado - de envolvimento com drogas, você pode ter sua casa, seu carro e seu dinheiro confiscados pelos órgãos de repressão do governo sem base jurídica nenhuma, justamente para perpetuar o financiamento dessa guerra.
Indubitavelmente, essas atividades são realizadas contra negros e/ou pobres, pois muitas vezes o custo de contratar um advogado é maior que o bem perdido. O ônus da prova de inocência é do acusado. Há algo mais ditatorial do que isso?
Há sim. Se você tiver algum parente ou conhecido que more contigo, condenado por crime de entorpecentes, mesmo se você não fizer a mínima ideia dos delitos do seu colega. Você é despejado da sua habitação pública sem ter cometido crime algum. Preciso dizer qual perfil étnico/social de quem mais depende dessas habitações?
A Guerra às Drogas é racista em todos os seus aspectos. Uma condenação por tráfico de meio quilo de cocaína - droga associada à elite branca, sobretudo nos anos 1980 - é passível de apenas 5 anos de reclusão. De modo que, uma condenação por apenas 5 gramas de crack - droga associada aos negros do gueto - é passível da mesma sentença.
Quando a maconha era associada apenas a negros até os anos 1950, o porte de maconha era passível de até 5 anos de reclusão. Nos anos 60, a erva proibida passou a ser consumida e associada a jovens, roqueiros, universitários e hippies "paz e amor" da classe média branca.
Já na década de 1970, a maconha foi diferenciada das demais drogas. Houve redução de penas por seu consumo, foi estudada para uso medicinal, e hoje é legalizada com esse fim em 11 estados americanos.
Em 1989, os 93% dos condenados por envolvimento com crack eram negros, no entanto, mais de 50% dos condenados por envolvimento com cocaína eram brancos.
Outro exemplo da perversidade racista do Estado americano. Nos anos 1990, o álcool era responsável por 120 mil mortes anuais, só os motoristas embriagados eram responsáveis por 22 mil delas. As drogas ilícitas eram responsáveis por 21 mil mortes anuais, só os motoristas embriagados matavam mais que toda a letalidade relacionada às drogas ilícitas.
Entretanto, uma droga fatal como álcool é legalizada. Também pudera, 78% dos condenados por dirigir embriagados eram brancos em 1990. Contudo, perante esse perfil étnico, os envolvidos em acidentes, no máximo, como forma de punição, pagavam multa, assinavam uma contravenção e perdiam a carteira de motorista por cometer esse delito mortal.
Em alguns estados, 90% dos condenados por delito com narcóticos são negros, lembrando que os afro-americanos não chegam a 14% do total da população. Em bairros negros como North Lawndale em Chicago - tido como um das cidades mais democráticas racialmente por já ter eleito prefeitos negros - 70% dos homens entre 18 e 45 anos de idade são ex-criminosos.
Vocês devem estar pensando que o pior que pode acontecer é ser preso. Não, pelo contrário, o pior é estar em liberdade, pois ao menos na cadeia você tem algum amparo do Estado.
Em liberdade total, condicional ou assistida é quando realmente o ex-presidiário se torna um pária social. Nessa situação você é desprovido do direito a ser jurado, de ter vale-alimentação, direito ao voto, habilitação, oportunidades de emprego e habitação pública. Sem a última você perde também a guarda dos seus filhos.
Baseado no ideário de Estado mínimo, o ex-condenado ainda deve arcar com dívidas processuais. Quando o infeliz consegue um emprego, obviamente, um sub-emprego que muitas vezes não paga nem um salário mínimo. O egresso tem uma dívida para com o Estado, que o faz praticamente trabalhar de graça para quitá-la.
Isso quando o ex-detento já não trabalhou de graça em uma prisão privada. Ou seja, o mesmo regime de escravidão dos recém libertos do século XIX. Estamos falando de um ex-presidiário que pode ter sido condenado por portar uma quantidade ínfima de entorpecente para consumo próprio - o que boa parte dos estudantes brancos de classe média também fazem -, não de um Pablo Escobar. Agora, me respondam, como esperar a ressocialização de alguém nessas condições? É um círculo vicioso!
Vocês devem estar se perguntando: mas essas pessoas escolheram cometer crimes. Se os negros sabem que o sistema é cruel com eles, deveriam optar por não cometê-los? É aí que mora a raiz do problema. Estudos apontam que cerca de 14% dos negros, latinos e brancos são envolvidos em delitos com drogas.
Portanto, se a população americana é mais de 70% branca, então temos muito mais brancos cometendo crimes relacionados a narcóticos do que o restante da população. O que explica, então, em muitos estados os negros chegarem a ser até 90% dos condenados por crimes de drogas?
A polícia em conluio com o Judiciário estão empenhados em perseguir e prender negros como uma nova forma de controle social racista. Mesmo que alguns queiram crer que isso se dá inconscientemente devido ao racismo estrutural.
Ademais, a professora Alexander alerta, devemos tomar cuidado para não cairmos na armadilha da representatividade e ações afirmativas, ambas são extremamente importantes mas precisamos ir muito além disso.
Um presidente negro conviveu naturalmente com esse regime racista de encarceramento em massa e investiu mais em repressão na Guerra às Drogas do que o governo Bush. Como grande estadista que é, Obama combateu a Guerra às Drogas apenas na retórica.
No entanto, republicanos e democratas - embora para alguns acadêmicos, esses partidos representem, respectivamente, a direita e a esquerda - são duas faces da mesma moeda. O republicano Ronald Reagan deu início à Guerra às Drogas, e o democrata Bill Clinton a ampliou significativamente.
A representatividade e ações afirmativas contribuíram para a ascensão de uma classe média negra nas últimas décadas. Todavia, involuntariamente, esse pequeno grupo de pessoas negras bem sucedidas, legitimou a suposta neutralidade racial desse sistema de castas raciais nos EUA.
Como sempre digo, um Estado racista tolera alguns negros em posição de destaque para legitimar a subjugação da grande maioria de sua população. Entretanto, para a construção de uma sociedade realmente democrática na esfera racial, até o momento, foram e são criados subterfúgios para impedir esse processo.
Bibliografia:
ALEXANDER, Michelle. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. Tradução de Pedro Davoglio; Revisão técnica e notas Silvio Luiz de Almeida. 1.ed. São Paulo: Boitempo, 2017.
A 13ª Emenda. Direção: Ava DuVernay. Produção de Kandoo Films. Estados Unidos: Netflix, 2016.
Este artigo foi escrito por Célio Roberto e publicado originalmente em Prensa.li.