Escritas contemporâneas e o contemporâneo: Paulo Bruscky e Giorgio Agamben
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“As aventuras de Paulo Bruscky” é um documentário gravado no Second Life, em modelo machinima [neologismo para machine cinema], dirigido por Gabriel Mascaro, em 2010. O documentário conta as aventuras do artista recifense Paulo Bruscky, que descobre uma nova forma de produzir arte a partir do jogo virtual.
O Second Life, para Bruscky, é uma representação do movimento de materialização e desmaterialização possibilitado pela tecnologia. No jogo, podemos tornar viável projetos inviáveis no mundo real e a forma com que o autor infere sobre essas questões vale a nossa atenção.
Durante o curta, o autor se joga de um prédio de dezenas de andares e não morre, se senta nas larvas de um vulcão e não se queima, se torna um objeto completamente amorfo [como na imagem abaixo] e volta a sua forma original, entre outras coisas. Explorar as materializações do inviável, ou as desmaterializações do viável, foi a maneira que Bruscky encontrou para refletir sobre a “escrita” presente nas realidades virtuais.
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Partindo da noção que vivemos num hibridismo entre os mundo online e offline, podemos entender que Bruscky se utiliza das multiplas possibilidades do Second Life para explorar a estética do seu tempo, isto é, de ser contemporâneo. Este, inclusive, é um movimento fundamental para o autor, já que, como ele mesmo fala “cada época tem a sua escrita e é importante você ser contemporâneo pelo menos de si próprio”.
Essa provocação, quando vista em conjunto com outra fala sobre a necessidade da arte como registro “mais real” da história, demonstra um diálogo interessante (mesmo que indireto) com as ideias do filósofo italiano Giorgio Agamben (2010) sobre o que é o contemporâneo.
Para Agamben, o “contemporâneo” não é o presente absoluto, mas o desconexo, dissociado, inatural, discrônico, deslocado, anacrônico. Um contemporâneo, no entanto, não vive em nostalgia perniciosa com outro tempo, ou em negação com seu presente; na verdade, a dissociação (deslocamento, anacronismo…) é uma negação como afirmação profunda. Por mais que o contemporâneo odeie seu tempo, ele lhe pertence irrevogavelmente e sabe que não pode fugir.
Por essa razão, a contemporaneidade tem uma relação singular com o próprio tempo e o contemporâneo “adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que este adere através de uma dissociação e um anacronismo” (AGAMBEN, 2010, p. 59).É isso que, de certa forma, faz Paulo Bruscky em suas aventuras pelo Second Life.
A busca pela produção de projetos inviáveis a partir da apropriação de “escritas” próprias do seu tempo, a fim de fazer um registro artístico da história, nada mais é do que a definição dada por Agamben do contemporâneo como poeta (ou como artista).
Para o italiano, “o poeta, enquanto contemporâneo, é essa fratura, é aquilo que impede o tempo de compor-se e, ao mesmo tempo, o sangue que deve suturar a quebra” (ibidem, p. 61). Ou seja, o contemporâneo é aquele que impede o tempo de entrar num estado de tédio, onde todas as coisas estão em normalidade. O contemporâneo tanto pertence ao presente que tem plena mobilidade entre os tempos, que se desloca, que não o pertence.
O Second Life, seguindo essa reflexão, foi deslocado de sua pretensão estritamente interativa e foi invadido por um impulso artístico de um “poeta” que se apropriou de sua “escrita”. O deslocamento, aqui, é feito a partir das reflexões sobre as possibilidades do espaço digital e sua relação com a ação real (como está descrita na sinopse do filme no Youtube).
Há, portanto, um impulso contemporâneo em Bruscky, quando o artista busca, para utilizar o vocabulário de Agamben, estar na fissura do seu tempo para observar o que não está claro: extrair de um jogo virtual reflexões sobre o estatuto da arte. Isso me parece um posicionamento bastante inatural.
É isso também o que acontece com a eu-lírico de Sophia de Mello Breyner em Arte Poética I (2008), quando ela entra numa loja de barros em Lagos, Portugal, para escapar do calor e, num movimento catártico de reencanto, se desloca para Creta, na Antiguidade. O que Sophia de Mello Breyner promove, ali, é uma solda entre os tempos a partir da eu-lírico: o estar no mundo do presente a partir do “religamento” com o passado.
(Escrevi sobre isso em outro momento, no texto “A ânfora, a ascese, a transitoriedade e o reencatamento”.
É certo que Sophia não está, assim como Bruscky, preocupada com as apropriações narrativas do espaço digital. Nem Agamben. O que me parece uní-los, no entanto, é uma preocupação eminente com a contemporaneidade, isto é, com o deslocamento como afirmação da presença.
Enquanto Bruscky se desloca para o mundo virtual para refletir sobre os alcances do mundo material; Agamben busca o que não está presente para reafirmar o contemporâneo. O movimento de negação como afirmação (que também está presente em Sophia de Mello Breyner) é a principal chave de diálogo entre os (as) contemporâneos(as).
É o que podemos tirar como reflexão final disso tudo.
Este artigo foi escrito por Guilherme Falcão e publicado originalmente em Prensa.li.