Eu, branca
DIvulgação
Muitas vezes vou repetir que eu tenho 50 anos.
Eu repito para explicar que o melhor dos anos 80 era a música e talvez a lembrança que cada um de nós inventou, com a ajuda de um mórbido inconsciente coletivo, de que éramos pessoas tolerantes, abertas, justas.
Não éramos.
Fazíamos piadas de mal gosto sobre cor, sexualidade, defeitos físcos, excluíamos quem considerávamos diferente, feios, pobres, fracos e principalmente, negros.
Eu Branca. Eu Branca? Cinicamente me resumindo desta forma para tripudiar de fenótipos, que independem de construção moral, independem de processos de crescimento ou individuação.
Estou ridiculamente me descrevendo como branca, logo aqui, nesta terra onde todas as raças convergiram e meu tom de pele foi cartesianamente declarado dentro de uma média considerada branca, apesar da bisavó negra, o bisavô árabe e uma tal tataravó índia roubada, envergonhada de toda a cegueira à qual fui conivente.
Se o seu pai tem mais de 45 anos, e diz que pensava em privilégios, há duas hipóteses: ou ele estava mentindo, ou realmente por não ter nenhum, por alguma coincidência do destino teve a sorte de ouvir e poder refletir sobre o termo.
Eu, branca, mesmo entendendo hoje que não sou tão branca, entendo, redundantemente hoje, que tive uma infância materialmente e culturalmente (no que diz respeito à uma cultura clássica) privilegiada, o que não me faz melhor do que aqueles que usufruíram de uma cultura com menos influência eurocêntricas.
Me sinto infinitamente pior. Como uma índia vestida de seda.
Eu branca, assistia novelas. Geralmente os protagonistas eram poucos, dentre os coadjuvantes 0,1% era negro. Mas... Eu branca, e vocês brancos, nessa média de idade, naturalizaram um direito que consideraram de nascença: o do protagonismo.
Eu branca, ainda vejo até jovens ditos brancos, com sangue nos olhos divergentes de seus discursos descolados, de que tal protagonismo precisa ser dividido entre todas as raças. Dividido não por questões matemáticas ou geográficas, mas antropológicas, jurídicas, reparatórias.
Vai demorar algum tempo para que o discurso descolado enterre o sangue explícito nos olhos e se aceite que somos todos humanos.
Confesso, eu branca, com um misto de orgulho e vergonha de mim mesma, que consegui por algum motivo que não sei explicar, enxergar tais discrepâncias desde minha juventude mas não tive forças suficientes pra suplantar a omissão. Educação? Discernimento pessoal? Não sei.
Sempre vi no ser humano BRANCO uma extrema crueldade que cedo me acordou para a realidade de que que somos animais com a pretensão da civilidade.
Eu Branca, tive um período da infância, que durante as férias, ia numa cidade que era Valença - RJ. Eu ficava trancada dentro de casa, por que tinha medo dos cães.
Anos depois, eu Branca, passei anos trancada dentro de casa, por que tinha medo das pessoas.
Eu Branca, alego que para ser protagonista nesse mundo, basta ter consciência de que para a história ser justa, para os romances serem sinceros, para as amizades serem coerentes, não basta ser classificável por cor, credo, cultura, condição social.
Basta existir.
Este artigo foi escrito por Erika Pessanha e publicado originalmente em Prensa.li.