Eu também vou reclamar
Virou moda reclamar! Todo mundo tem algo a dizer sobre alguma coisa. Isso, por si, não é depreciativo. Muitas reclamações estão amparadas em condições visíveis a olho nu. Qualquer um consegue ver.
Há diferença, porém, entre reclames condicionados a análises sérias e frias com base real e teorias da conspiração que depravam o que chamamos, carinhosamente, de inteligência. Estas não passam de junções, a esmo, de chavões interligados por sujeitos abstratos.
No entanto, atenção: uma boa análise da realidade social não garante verdade absoluta, busca, por outro lado, embasamento concreto. E este está sujeito às variações da própria dinâmica social.
Aliás, partir do princípio de que não encontraremos verdades absolutas, analisando uma sociedade, permite melhor visualização dos movimentos concretos. A política, por exemplo, é muito mais pragmática do que se pensa. A economia idem, interdepende dos movimentos políticos.
O cosmos de problemáticas do mundo moderno é tão vasto que leva a todos, sérios e conspiratos, a perceber que algo não anda muito bem no reino da Dinamarca. Todos escutam o galo cantar, nem todos sabem onde.
E nisso nos perdemos na constelação de decifres do cotidiano. O mundo digital exponenciou esse drama. No medo de não sermos enganados, acreditamos em quem vende melhor a certeza, quem repete mais vezes o que conforta.
A fábrica de mentiras não só modela o que quer que os outros pensem. O movimento é de mão dupla: em muitos casos é o que as pessoas querem ouvir.
A recente viagem do dispéptico da República à gelada Rússia é um bom ilustrativo.
Um maníaco no Leste
O movimento pragmático é tentar desesperadamente não parecer isolado da comunidade internacional, posta inexistente diplomacia. Para os russos, é a visita do “líder” de um país continental, aliado histórico dos EUA no continente, em plena queda de braço no caso Ucrânia.
Descendo do mundo real ao subterrâneo da midiosfera, vemos o que seus habitantes queriam que fosse a verdade, tomada ardentemente como tal.
Mal desceu do avião - indo direto ao hotel se testar e manter quarentena para ter o direito de encontrar o presidente russo - o cúmulo do ridículo, alçado a figura mitológica, já teria sido artífice da esperada paz mundial.
Teria convencido o alto escalão de uma das maiores potências bélicas existentes a simplesmente desistir de toda a estratégia geopolítica, num contexto de quase reinauguração da guerra fria, contra o maior complexo militar do mundo.
O fato é que houveram recuos das manobras militares do exército russo na fronteira com a Ucrânia. O que não significa que tenha sido por conta da atuação do insignificante da República, e sim da própria dinâmica da querela Rússia-EUA.
Putin rapidamente ocupou militarmente toda a fronteira com a Ucrânia para marcar posição direta contra a possibilidade de integração do vizinho à Otan. Esse ingresso traduz, na prática, mais bases militares norte-americanas muito próximas ao seu território, e à China.
Isso não significa que seu plano é necessariamente invadir, ainda que não duvide. É forçar os EUA a recuar, sem dar espaço a possíveis escaladas. Estes, por sua vez, tentam forçar situações esperando uma escorregada russa. É a diplomacia da casca de banana.
A Europa ocidental fica no meio do caminho, literalmente. É aliada da Otan mas depende diretamente da Rússia e suas plataformas de gás.
Tudo isso está atrelado ao novo contexto geopolítico mundial, com a emergência da China e a possibilidade real de um mundo multipolar. É uma disputa de hegemonias, políticas e econômicas.
Mas há quem queira acreditar numa predileção messiânica do mais despreparado dos presidentes, pois isto responde melhor aos seus anseios, símbolos e cosmovisões.
Talvez até uma forma de esperançar verdadeiramente a paz. O medo de uma terceira guerra mundial é sempre legítimo.
O canto do galo ensurdece a todos, é preciso cautela para não desnortear.
Este artigo foi escrito por Matheus Dias e publicado originalmente em Prensa.li.