Eventualmente, seremos nós os fantasmas?
Como ilustrador, eu tenho o prazer e desprazer simultâneo de participar de grupos sobre o assunto. É sempre muito bacana e inspirador ver gente nova ou gabaritada trocando ideia sobre o ofício. Em contraponto, é mais um espaço permeado por discussões insossas e inúteis sobre uma miríade de temas. O tema da vez é a Inteligência Artificial.
Por mais que eu seja fascinado pelos mundos hipotéticos da ficção científica, devo admitir um grande fastio por uma vertente específica do gênero que explora o medo humano da tecnologia. Asimov tentou, mas nos livrar do véu de ignorância que nos permite enxergar além do medo ainda é uma impossibilidade, e revolve (ironicamente) nos bytes e dados da internet volta e meia, no mesmo espaço ocupado por gente reclamando da meteorologia e frases motivacionais com imagens desconexas. A comunidade artística se encontra agora em uma cruzada quixotesca contra o AI. A insatisfação dos artistas em assistirem algoritmos criando ilustrações ou animações se deve ao fato de acreditarem que tais ferramentas poderão roubar seu espaço no mercado de trabalho. E eu me pergunto: será?
Não quero fazer papel de advogado do diabo, de modo algum. Mas é difícil entender como a gente pode cair nessa armadilha de novo e de novo. Eu estudei Artes Visuais na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, na primeira década deste século. Em minha formação, apliquei horas e horas de treinamento em diversas técnicas tradicionais de produção artística. Ao ingressar no mercado de trabalho (quando havia esse mercado, desmantelado nesse pesadelo que foram os últimos 4 anos brasileiros), migrei todo meu conhecimento para o meio digital. Lembro de um professor da faculdade que era completamente avesso à ideia de "empurrar pixels em uma tela" para produzir arte. Já falecido, é uma pena que eu não possa conversar com ele e perguntar o que ele acha de trabalhos tão fantásticos quanto os que vemos hoje em dia, tanto na publicidade quanto em profusão nas redes sociais. Outro professor era muito mais aberto às transições dos espaços e fazeres artísticos, contanto que se entendesse e respeitasse a ideia de que uma tecnologia nova surge a partir de e para substituição de outra. Foi ele que me ensinou os primeiros conceitos do Photoshop, relacionando tudo a processos anteriores e artesanais que o programa almeja emular.
É irônico que grande parte dos detratores da arte produzida pro AI sejam artistas que jamais experimentaram produzir arte em qualquer outro meio que não fosse digital. A cereja desse bolo é que, possivelmente, eles mesmos colaboraram com a estética e técnicas que os pensadores digitais usam em suas obras. Talvez eles também não percebam que o fato de jamais termos nos organizado de forma coesa como classe trabalhadora, e o fato de que muita gente no mercado destrói qualquer chance de sermos pagos justamente quando preferem cobrar pouco para trabalhar mais é um motivo muito mais emergente da derrocada do mercado de ilustração. Alguns poucos paladinos, como o admirável Victor Beuren, continuam um esforço para educar novos ilustradores nesse sentido. Gostaria que a difusão destes fosse maior.
Ao contrário da febre do ano passado (as famigeradas NFTs... cara, não quero nem começar a falar sobre essas), o AI veio para ficar. Eu não vejo essa como uma situação de "embrace or die". Eu acho que ela não diz respeito a nós, artistas. Acredito que o AI vai encontrar seu espaço entre nós organicamente. Talvez em um primeiro momento seja desconfortável como entrar mais uma pessoa em um elevador lotado, mas com o tempo, as coisas se ajeitam. As possibilidades de inteligências artificiais em diversos campos da nossa vida são infinitas. E nós, enquanto humanidade, pouco podemos fazer, senão relaxar e torcer pelo melhor. Ou encarar o pior. Vai saber.
Disclaimer: este artigo não foi escrito por uma inteligência artificial. Limitada, mas natural. Contudo, se você está lendo este artigo, agradeço à sua inteligência artificial que o entregou em segurança.
Este artigo foi escrito por Marcel Trindade e publicado originalmente em Prensa.li.