Êxodo Brasil: país perde pensantes
O Êxodo Brasil converte progresso científico em atraso social (Arte feita a partir de imagens Google Creative Commons).
Recentemente vocês, leitoras e leitores do site Prensa, se indignaram com as informações do artigo “Universidades públicas: fonte de grandes mentes ou antro de maconheiros?” (há link logo abaixo). Nele, notaram como as autoridades competentes ignoravam e até menosprezavam a comunidade acadêmico-científica do país, propiciando o que se chama aqui “Êxodo Brasil”.
Teria o cenário melhorado? Teriam as autoridades competentes atuado positivamente? Desenvolvido alguma ação para combater ou minimizar a má impressão que notícias semelhantes causam? Teriam conseguido criar ambiente adequado de aproximação com as cabeças pensantes do Brasil?
Acadêmicos e cientistas brasileiros sempre sonharam em assimilar experiências no exterior. Até então, a base dos sonhos era técnica. O objetivo era calcado na possibilidade de maior sucesso.
Afinal, muitos países são muito mais bem instrumentalizados para desenvolvimento de ideias científicas tanto empírica quanto dogmaticamente. Nesse sentido, o termo “êxodo” não seria bem empregado para identificar o movimento de saída.
Êxodo Brasil, etimologia certeira
Mas hoje o termo é mais que adequado, pois se encaixa perfeitamente nas circunstâncias. Os dicionários indicam três significados para a palavra. Êxodo é:
No teatro, remate da tragédia grega ou farsa que se seguia à tragédia romana
Livro da Bíblia em que se relata a saída dos hebreus do Egito
Abandono de uma localidade, de um país, por parte de grande massa populacional em razão de conflitos sociais ou de busca de condições mínimas de sobrevivência
De certa maneira, a situação dos acadêmicos e cientistas brasileiros é concernente aos três significados:
A postura anticiência do atual governo brasileiro desemboca em verdadeira tragédia para as cabeças pensantes de qualquer área de estudo (sem recursos instrumentais e pecuniários, sem motivação, sem incentivo prático, sem ambiente para pesquisas)
Segundo historiadores, o êxodo bíblico se deu por fome (se cientistas brasileiros não buscarem saída, terão passado fome)
A destruição do ambiente de pesquisa instaurada pelas autoridades brasileiras aponta as comunidades científicas internacionais como único destino para os brasileiros
Certamente, há muitos fatores que empurram a linha do gráfico do “Êxodo Brasil” para cima. Estes vão de simples vontade do cientista a questões políticas. Entretanto, é consenso entre analistas que o desinteresse governamental é o mais preponderante.
O Êxodo Brasil em números
Observadores da revista Exame garantem que o Brasil está ficando para trás no fluxo de trabalho da comunidade científica mundial. De 2020 a 2021, o país desceu para a 80ª. posição na escada de expressividade em pesquisas. São 08 degraus perdidos perante 132 nações analisadas.
Essa perda na escala é devida à piora em cinco dos seis pilares indicativos de importância científica. É essa a conclusão de um dos incumbidos pela efetividade do levantamento, Felipe Monteiro. Ele é professor associado da Insead, instituto educacional europeu com mais de 60 anos de vida útil.
Por sua vez, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq dispõe do menor nível de recursos há décadas. Dessa maneira, segundo o jornal O Globo, entre 2011 e 2020, metade das ofertas de bolsas deixou de disponibilizada — de 2.445 para 1.221. Houve redução de mais de 30% das bolsas de mestrado e de 20% de doutorado.
Indicadores do Êxodo
Em entrevista de 2020 ao O Globo, Monteiro lembrou que, em um ano, o indicador “Fuga de Cérebros” referente ao Brasil saltou da 45ª para a 70ª posição. O fator "empregabilidade" foi o que mais pesou. No caso de cientistas e pesquisadores, é fator fortemente associado aos governos.
Já o indicador “Relevância do Sistema Educacional para a Economia” revela que o Brasil teve nota 15,86. Assim, está ocupando o 126º lugar, o que significa o pior resultado em décadas.
Brasileiros cuja atividade é considerada intensamente relevante aumentaram em mais de 10% a quantidade de pedidos de visto de trabalho somente com destino aos EUA. Foram exatamente 3.387 o ano passado, ainda segundo a revista Exame.
Visto permanente
O Departamento de Imigração norte-americano confirmou que o Êxodo Brasil se tornou mais intenso nos últimos 24 meses. A solicitação de visto permanente EB1 e EB2 cresceu 40% em 2019-2020 comparados com 2017-2018. Esse percentual triplicou se comparado a 2015- 2016.
Esses tipos de vistos referem-se a profissionais com experiência longeva cuja habilitação comprovada mostre histórico de contribuições relevantes.
“Quem quer ser cientista…
…sai do Brasil; quem não quer sair do Brasil, sai da ciência”. Com essa ideia, Sidarta Ribeiro resumiu a situação dos cientistas brasileiros em entrevista ao Bitniks. Ele é neurocientista e vice-diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN. Vê com certo pessimismo as condições em que o pesquisador brasileiro luta por melhorias.
Ribeiro passou mais de 10 anos nos Estados Unidos e lá fez doutorado e pós-doutorado. Na mesma entrevista, alega que “a diferença de recursos, de insumos e de capital humano é brutal. A rapidez das coisas é muito diferente e benéfica para o pesquisador. Se eu compro um anticorpo, por exemplo, no dia seguinte ele está na minha porta e eu consigo dar andamento na pesquisa”.
Luta antiga
"Cortar bolsas de pesquisa é amputar as pernas intelectuais do país". Essa é outra visão impactante sobre a luta dos pensadores brasileiros. E é luta antiga. É o que já indicava a percepção de Miguel Nicolelis em entrevista ao jornalista Leonardo Sakamoto para seu blog em 2019.
Nicolelis é - se não o maior - um dos maiores neurocientistas do Planeta. E é brasileiro com o nome principal no universo da pesquisa científica em sua área. Gerencia uma equipe de estudos na Universidade Duke, nos Estados Unidos, para tornar possível interação entre máquina e cérebro humano em corpo com paralisia.
Com seu trabalho, Nicolelis fez duas pessoas com mobilidade limitada conseguirem quase 5 mil passos por meio de um dispositivo de estimulação muscular. A entrevista foi concedida pouco tempo depois de 5.613 bolsas de estudo serem cortadas.
O corte foi feito pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes referentes a mestrado e doutorado, órgão ligado ao Ministério da Educação. A função principal da instituição é avaliar pós-graduações stricto sensu, além de possibilitar acesso e divulgação da produção científica.
Trata-se do maior corte de recursos. Por lamentável “coincidência”, justamente na gestão de Abraham Weintraub, que foi um dos mais controversos ministros da Educação. Dessa maneira, a quantidade de bolsas indisponíveis chegou a 11.811 unidades somente em 2019.
Sim, houveram mudanças
Mas para pior, lamentavelmente. É a resposta possível para as questões levantadas no início deste artigo. Acima, mencionou-se que ignorância circunstancial por parte das autoridades não é o único fator que faz a linha do gráfico do Êxodo Brasil ascender.
O clima político-social em que o Brasil chafurda mascara com cores horríveis a imagem da Ciência como um todo. O tom negacionista pelo qual temas diversos são tratados por muitos do alto escalão alcança os cientistas.
Não raramente, instruções científicas quanto à Covid-19 e estratégias de combate a ela são contrariadas pelo Planalto. Recentemente, a mídia rasteira de direita extremista deu voz à decisão do Governo de adiar a vacinação em crianças. O Presidente pediu em público que os nomes dos técnicos-cientistas da Anvisa que autorizam o procedimento fossem divulgados.
Não se sabe exatamente qual foi a intenção do Presidente. Entretanto, o ambiente de perigo para aqueles técnicos já estava em sobressaltos. Eles publicaram mensagens recebidas com ameaças claras - inclusive de morte - se a vacinação fosse autorizada.
Nesse cenário aterrador, tenha sido qual for a intenção do Presidente, o efeito foi maléfico tanto para aqueles profissionais quanto para a Ciência como um todo.
Afinal, em sociedade governada por autoridades “impensantes”, os cérebros pensantes têm pouco espaço. Autoridades que associam a vacina a Aids e à metamorfose biológica de humanos em jacarés, que alegam que hipotético evento de ansiedade é causado por máscaras, que distorcem instruções da Organização Mundial da Saúde - OMS em prol de ideologia própria, que desestimulam isolamento em pleno processo de contágio social etc. certamente têm pouco o que oferecer à Ciência.
Este artigo foi escrito por Serg Smigg e publicado originalmente em Prensa.li.