O Metaverse do Facebook Horizon - Ready Player 0.5
Lembra do livro Ready Player One?
Aqui foi traduzido como Jogador Número Um. É sobre um futuro onde a humanidade está decadente, sofrendo com isolamento e pobreza, mas pelo menos ela tem um videogame.
OASIS é um jogo multiplayer online ultra detalhado, cujo “cenário” tem o tamanho do universo e as pessoas interagem via realidade virtual. E este “joguinho” se tornou mais do que um game. Virou uma rede social. Uma ferramenta de trabalho. Se transformou na escola para as crianças, no escritório para os adultos.
Toda a atividade humana se concentrou nas dependências de uma versão 1980 de World of Warcraft. E é nesse cenário que o protagonista parte numa busca por um tesouro que vai render fama, glória, dinheiro e um sem fim de referências à Galaga, Space Invaders e Dungeons & Dragons. Steven Spielberg lançou um de seus filmes medianos adaptando a história em 2018.
O livro, o filme, e mais notavelmente a segunda parte da história, Ready Player Two, falham em perceber que essa é uma história não muito alegre. O autor Ernest Cline constrói a aventura como se fosse mais uma Sessão da Tarde. Não como um destino trágico para a humanidade, de precisar desesperadamente do produto de uma empresa para que toda a infraestrutura social, econômica e cultural exista.
“Mas pelo menos é uma infra-estrutura gamificada, cara!”
No final de agosto de 2020, foram lançados alguns vídeos promocionais de um produto intitulado Horizon. Tinha todos os aspectos de uma novidade saída da cabeça de game developers japoneses. Avatares cartunescos de pessoas interagindo num ambiente colorido, controlados via realidade virtual, com capacetes, óculos e controladores manuais de interação.
A surpresa para o desavisado (e para quem pulou os primeiros segundos do vídeo) é que a marca assinando a peça não era a Nintendo, mas sim o Facebook.
O horizonte do metaverse
Anunciado em 2019, e já profetizado quando o Facebook comprou a desenvolvedora VR Oculus por 2 bilhões de dólares, o Facebook Horizon mostrou a primeira parte do quão longe Zuckerberg quer entrar no que o sci-fi reconhece há décadas como “o futuro”.
E agora, após um ano funcionando somente para convidados, o Horizon volta a chamar atenção com uma declaração do próprio Zuckerberg, enquanto relatava os números do trimestre para a organização. Ele quer construir um metaverse.
O termo nasceu (é claro) em um livro de sci-fi, Snow Crash, publicado por Neal Stephenson em 1992, onde um hacker samurai enfrenta ameaças digitais e reais. Metaverse seria a união de realidades distintas, tanto a virtual quanto a física, num ambiente online.
É como um Second Life com utilidade. Mesmo que seja (primariamente) para diversão. O tremendo sucesso de 2020 da (agora sim) Nintendo, Animal Crossing - New Horizons, além de empreendimentos como Fortnite, também traz elementos de um ambiente compartilhado onde os usuários podem trocar experiências e - talvez o mais importante - criar.
Zuckerberg descreve, numa longa entrevista para o The Verge, o conceito como “Uma Internet ‘encarnada’, onde ao invés de só visualizar o conteúdo você está nele. E você se sente presente com outras pessoas como se você estivesse em outros lugares, tendo experiências diferentes que você não poderia necessariamente fazer num aplicativo em 2D ou numa página de web, como, por exemplo, dançar, ou tipos diferentes de exercícios”.
Ele fala sobre como nós estamos num nível de interação com a internet, pelo menos em termos de tempo, que já domina nossas vidas por completo. Se todos nos conectamos à uma rede social (ou várias) do minuto que acordamos até quando vamos dormir, não há como estarmos mais engajados com a internet. “... é sobre estar engajado mais naturalmente”.
Distopia boa é distopia em que a população acha tudo maneiro. (Imagem - Divulgação)
Há um sol no horizonte
Um futuro onde - como Zuckerberg descreve na entrevista - as pessoas terão a liberdade de construir uma workstation completamente virtual, e poderão acessá-la de qualquer lugar. É isto o que o chefe do Facebook quer para o mercado de trabalho, de entretenimento, de comunicação.
Já era tentador imaginar um futuro assim antes. Quando a pandemia atingiu praticamente o planeta inteiro, se tornou mais do que fantasia. Transformar o home office em uma opção viável, confortável e produtiva agora é algo necessário para todas as organizações.
E a tendência é que não voltemos aos escritórios da mesma forma como antes. Grande parte das pesquisas indicam não só um aumento na produtividade, mas um aumento na felicidade geral dos trabalhadores que podem trabalhar de casa (que precisamos sempre lembrar, está longe de ser a maioria).
O próprio Zuckerberg admite que um futuro fluido e funcional a esse ponto vai demorar um pouco. Não só por conta das dificuldades de conexão, de resolução, de projeção, mas também de um hardware que você possa usar confortavelmente por oito horas seguidas. O aparelho atual é ainda um pouco “desajeitado”, nas palavras do próprio.
Nada impede pessoas de sonhar com aplicações mais imaginativas do que só “uma maneira de você trabalhar de mais lugares”. São ferramentas de ensino que podem ser criadas. Maneiras de desenvolver ambientes interativos que podem transformar completamente indústrias inteiras.
Sem falar da acessibilidade. Se o céu é o limite, dá para imaginar várias pessoas com deficiência tendo acesso a experiências de fisicalidade virtual que podem transformar a vida e a presença social delas. Imagine o que significaria, para pessoas de mobilidade limitada, um ambiente de aprendizado, de interação social, onde todos teriam o mesmo alcance e capacidades.
Há uma cela no horizonte
Zuckerberg menciona que pessoas estão mediando suas vidas e comunicação através de retângulos pequenos, e que não fomos feitos para interagir assim. É importante lembrar que também não fomos feitos para ficarmos conectados num ambiente virtual do momento em que acordamos ao momento em que dormimos.
E claro, posso parecer um boomer reclamão aqui. Deus sabe que nesta luva eu caibo muito bem. Mas não é só o fã de ficção distópica em mim que vê, sem alegria, um risco aí. O de desenvolvermos uma ultradependência social, física, profissional e psicológica em um CNPJ, se investirmos em “maneiras mais holísticas de usufruir da internet”.
Os defensores do metaverse como uma nova fronteira tecnológica e econômica trazem várias definições para o conceito. Uma delas é exatamente a descentralização. Um espaço virtual que traria tanta inovação e criaria (por bem ou mal) tamanha necessidade de uso diário não pode pertencer a uma única entidade.
A entrevista até aborda este aspecto. Zuckerberg defende que há espaço para influência pública no assunto. Mas todos precisam agir com precaução: mesmo com vitórias recentes nas cortes, a filosofia corporativa do Facebook vai demorar para mudar a memória de alguns.
Zuckerberg precisa reconquistar muita confiança ainda antes de propor mais uma transformação no jeito que nos relacionamos. Ainda estamos nos recuperando das últimas.
Ernest Cline, com seu Ready Player One, e Zuckerberg, com seu horizonte de “encarnação virtual”, imaginaram mundos fantásticos. A apreensão aqui é o risco de que o segundo cometa o erro do primeiro. De não perceber que criou uma distopia, e que está ensinando a humanidade a amar sua prisão, e a esquecer, em casos muito mais extremos, que as pessoas ainda precisam de contato real.
Por mais gente real, vacinada, depois da pandemia. E menos avatares coloridos fora dos videogames.
Imagem de capa - Facebook