FAHRENHEIT 451 - Uma ignição Consciente
Em 1933, os nazistas erigiam enormes piras incandescentes alimentadas por um combustível bem peculiar: livros. E eles tinham especial predileção por todo e qualquer papel onde constassem as ideias de intelectuais como Marx, Kafka, Thomas Mann, Albert Einstein. Isso levou Sigmund Freud, o criador da psicanálise, a fazer o seguinte comentário a seu amigo Ernest Jones: “Que progresso estamos fazendo! Na Idade Média, teriam queimado a mim; hoje em dia, eles se contentam em queimar meus livros”.
Paralelamente, em Tucson, Arizona, o então adolescente Ray Bradbury, que começava a ganhar um dinheirinho escrevendo pequenos contos, horrorizou-se tanto com a notícia que atravessava o Atlântico que maturou uma ideia por anos, uma ideia que viria a ser, junto com 1984, de George Orwell e Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, um dos três pilares da moderna ficção científica distópica.
Em 1951, já com muitos textos curtos publicados, entre eles Crônicas Marcianas, Ray aluga uma máquina de escrever e redige em nove dias o conto O Bombeiro, entre outras histórias curtas que parecem ser parte de um mesmo universo ficcional, onde há a presença constante do elemento fogo, censura, destruição e crítica social.
Dois anos depois, a pedido de seu editor, Bradbury expande aquelas ideias iniciais numa novela onde todos aqueles elementos são incorporados. Um momento que parecia perfeito, o contexto em que a Guerra Fria culmina para seu auge, com muitas ações como o Macartismo, que promoveram ações terríveis que censuraram, estigmatizaram e perseguiram em meio a uma verdadeira paranoia institucionalizada no mundo. E, assim, nasceu Fahrenheit 451.
Há quem diga que a distopia é a coisa mais próxima da realidade que a ficção conseguiu criar. Ela caiu como uma luva na literatura. De fato, o futuro sempre pode nos parecer promissor na teoria mas, até que isso se concretize, parece que temos de repetir os mesmos erros do passado.
Na história, num futuro nem tão distante, todos os livros são proibidos, opiniões próprias são consideradas antissociais e hedonistas, e o pensamento crítico é suprimido. O protagonista, Guy Montag, trabalha como "bombeiro" (o que, na história, significa "queimador de livro"). Guy é um homem deslocado na vida, casado, mas solitário e infeliz, faz parte de um braço opressor importante do regime vigente.
Neste mundo, o ódio e a barbárie venceram, e qualquer tentativa de se ater ao conhecimento pode fazer o cidadão ir parar numa instituição correcional e o objeto de seu crime, o livro, ser queimado. Essa narrativa é dividida em 3 partes:
A primeira delas é sobre o despertar da consciência de Montag que, ao conhecer sua nova vizinha Clarisse, que é uma livre pensadora, acaba questionando seu papel naquilo tudo. Ao retornar para casa ele encontra a sua mulher morta, depois de uma overdose de remédios. Abalado com a morte da esposa e tendo que retomar seu papel na conjuntura, Guy vai à casa de uma mulher onde tem de realizar o serviço de "limpeza".
Enquanto revistava a casa repleta de livros de uma senhora para depois incendiá-la, Montag acidentalmente lê uma linha de um de seus livros, a qual dizia: “O tempo adormeceu sobre o sol da tarde”. Esse trecho o incita a roubar o livro por pura curiosidade, e muitos outros mais tarde. A mulher, que se recusa a deixar a casa e seus livros prefere riscar um fósforo e queimar junto com eles, agonizando na combustão. Isso perturba grandemente Montag, que se pergunta por que alguém cometeria suicídio por livros que, ao menos para ele, eram inúteis.
A descoberta do bombeiro, insuflada pela curiosidade e os encontros com a vizinha questionadora, acabam transformando o personagem principal e todo o romance, que segue uma linha vertiginosa até o seu desfecho.
A coisa mais interessante no livro, além da forma e conteúdo fantásticos, está na maneira ágil como o autor narra sua trama, conferindo doses de suspense à medida em que ela desenlaça. Além disso, estão as frases pinçadas dos livros roubados pelo protagonista, que acabam instilando ideias e suas ações.
O título do livro remete ao número que é a temperatura (em graus Fahrenheit) da queima do papel, equivalente a 233 graus Celsius. A simbologia mais do que apropriada na obra de Bradbury repete outras obras do gênero, onde um elemento libertador e um agente catalisador se tornam oposição à realidade que oprime.
Um grande livro, um clássico dos nossos tempos que mostra o amor do autor pelos livros e explica por que deveríamos lê-los com mais frequência para não nos tornarmos feras. Em tempos em que, cada vez mais, um determinado pensamento parece se opor a todos os outros, sem a menor possibilidade de diálogo, o mote de Fahrenheit 451 parece cada vez mais atual e sua mensagem ainda muito resistente ao tempo.
Seja nas recorrentes republicações, adaptações de Hqs ou filmes, que vão da visão peculiar do Cult de Truffaut ao mais recente e digerível, com Michael B. Jordan como protagonista. Até mesmo no videoclipe “Red Alert” do duo de música eletrônica Basement Jaxx, onde os livros são substituídos por discos de vinil. Não importa a releitura, a mensagem permanece: que tipo de "bombeiro" estamos sendo neste exato momento?
Este artigo foi escrito por Marcelo Pereira e publicado originalmente em Prensa.li.