Filantropo-capitalismo, caridade com terceiras intenções?
Os filantropos capitalistas parecem ter alvo já determinado - Imagem - masinversiones.com
Movimento mundial importante e interessante se criando já há vários anos, a filantropia aliada ao capitalismo tem gerado reações das mais diversas. Trata-se de questões humanitárias em sua essência. Como tal, o filantropo-capitalismo cria climas extremos: de um lado, detratores; de outro, admiradores.
Assim, eventuais críticas ou visão mais parcimoniosa dirigidas a ele podem resultar em tiro no pé ou hosanas a quem expressá-las. Os críticos vão ser cancelados - para se usar a palavra da moda -; os encantados vão ser exaltados - para se usar a palavra da Bíblia.
Por outro lado, a tecnologia oferece enorme conjunto de instrumentos de marketing e publicidade. Dessa maneira, é normal que se obtenha a maior quantidade possível de informação sobre determinado tema. O paradoxal da ”coisa” é que parece haver muito menos opinião ampla por mais instrumentos informativos de que se disponha.
Nesse sentido, “a meta do marketing é conhecer e entender o consumidor tão bem que o produto ou serviço se molde a ele e se venda sozinho”, teria dito Peter Drucker.
Um aparte: o verbo acima (“teria”) foi usado no subjuntivo porque não se pode assegurar que Drucker tenha mesmo dito a frase. A dúvida potencial é resultado da disponibilização de tantos instrumentos informativos. Seria, então, justamente esse excesso de informações que ampara o tipo de marketing usado por filantropo-capitalistas.
Aliás, o pensamento de Drucker emoldura bem a questão deste artigo. Afinal, o movimento filantropo-capitalista pode criar peças de divulgação que explorem o lado, diga-se, fraternal. Recursos para isso, não faltam (conforme se vê mais abaixo) para moldar a aparência do produto ao gosto do freguês.
Filantropo-capitalismo e o marketing moldante
Drucker é considerado o Pai da Administração Moderna. Foi inspiração para tomada de decisões por parte de grandes empreendedores de seu tempo e dos tempos atuais. Escritor, professor, consultor, palestrante e conselheiro, ocupou a mente de idealistas como Bill Gates e Henry Ford, com seus mais de 30 livros publicados.
Ou seja: o homem sabia sobre o que falava. Qualquer leve associação entre seu pensamento acima e o filantropo-capitalismo leva à identificação sólida de sua visão. Com toda certeza e em se considerando o potencial financeiro desses seres altruístas, é comum imaginar-se que a moldura esteja mais bela que o quadro.
Assim, ainda que estudantes e profissionais de marketing não adiram ao tripé abaixo, o fato é que:
publicidade se ocupa de mostrar as qualidades de um produto ou serviço
marketing tenciona ocultar as falhas
relações públicas busca afastar responsabilidades
Para muitos analistas de mercado de investimento, é o que acontece com a maioria dos megainvestidores da filantropia capitalista.
Tragédia e filantropia em Alagoas
É também o caso da Braskem e as tragédias das Alagoas (entenda mais logo abaixo). A empresa tem anunciado na mídia suas ações fraternas e sua visão sobre responsabilidade social. Nas peças de marketing (e não de publicidade), mostra que tem investido milhões de reais em ações voltadas ao bem-estar dos cidadãos e das comunidades.
A presença da empresa nos encontros da Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima de 2021 - COP26 (veja mais aqui e aqui) já rearranja certa área de sua fachada perante a sociedade. Ainda, indica compromissamento com sustentação da natureza e com redução do efeito estufa.
Além disso, a empresa fechou acordos milionários para manutenção de sua imagem de atuante na melhoria social. É o que se vê na publicação do próprio Ministério Público. Ou seja, o marketing moldante acomoda essa imagem ao que o mercado quer ver.
Cartilha, lições, aprendizado
O artigo “Plástico e sustentabilidade: as lições na cartilha da Braskem”, de Laziê L. da Silva, publicado por ocasião do 7o. SBECE - Seminário Brasileiro de Estudos Culturais e de Educação em 2017 já preparava o mercado de consumo de plástico para eventuais problemas. Termos como “lições” e “cartilha” associados à empresa indicam que havia algo a ser aprendido bem antes dos problemas de Alagoas.
No texto, vê-se que “...a Braskem reafirma o compromisso com o desenvolvimento social e com a sustentabilidade perante a sociedade, junto às ações na qual ela atua, compreendidas, aqui, desde a educação até uma amplitude de empresas transformadoras de plástico, responsáveis por empregar e contribuir para o sustento de várias pessoas e, assim, para o desenvolvimento do país”.
Semelhanças com a Vale
O caso da multinacional petrolífera não é o único. Não é o primeiro. Não é o último. O marketing da brasileira Vale tem se esforçado a graus descomunais para vender ações filantropo-capitalistas como postura habitual.
A contar pela adaptabilidade do gosto do mercado, o objetivo tem sido alcançado. Publicidade a custos altíssimos mostram o sentido altruísta da empresa perante questões ambientais. “As mesmas questões que ela própria, como agente direta e consciente, conspurcou”, comentou o geógrafo Lourival Santos, da cidade de Praia Grande/SP.
Críticos do filantropo-capitalismo
Michael Edwards foi diretor do Programa de Governança e Sociedade Civil da Fundação Ford em Nova York. Inglês, é escritor e ativista. Atua há décadas em empresas do Terceiro Setor voltadas ao desenvolvimento internacional, filantropia e transformação social. Ou seja: também sabe o que fala.
Seu longo artigo “Os mitos e realidades do filantropo-capitalismo” ainda de 2008 já mostrava preocupação com o movimento capitalista na filantropia. O aspecto “salvação do mundo” aliado a tal movimento é, para o autor, meio discrepante. Isto é, faz “que as organizações sem fins lucrativos operem como negócios”.
A maioria dos analistas de mercado prediz que o movimento filantropo-capitalista não é exatamente uma cilada. Ou seja, ele em si não tenciona burlar leis ou regras sociais, não obstante haver falcatruas envolvidas como há em qualquer área de atividade. Trata-se de conjunto de boas intenções que acaba gerando benefícios também para os próprios terceiro-setoristas.
Leis favoráveis
Entretanto, é fato que a gama de leis, regras e regimentos são intensamente variáveis de país a país. Até mesmo entre regiões do mesmo país. Assim, os empreendedores filantropo-capitalistas absorvem benefícios permitidos pelos meandros das legislações.
O caso das centenas de igrejas brasileiras e americanas exemplifica bem a situação. A fuga de impostos originada nas atividades religiosas desses países é conhecida por muitos. E combatida também.
Um dos favorecimentos legais para o capitalismo filantropo é a falta de transparência. Parece haver certa despreocupação por parte de autoridades por ser atividade humanista, ao menos aparentemente. Despreocupação e, em muitos casos, interesses políticos. Nesse horizonte, gera-se desnecessidade de esclarecer as aplicações dos recursos.
Estruturas que nascem frágeis
“[...] esse movimento é falho tanto nos meios que propõe quanto nos fins prometidos. Ele vê os métodos dos negócios como resposta aos problemas sociais, mas oferece poucas evidências ou análises rigorosas para embasar essa alegação e ignora as fortes evidências que indicam o contrário”, diz Edwards em seu texto. Resume, assim, a fragilidade das estruturas do movimento.
E encerra: “O modismo que cerca o filantropo-capitalismo é muito maior do que sua capacidade de conseguir resultados reais. É hora de mais humildade”.
Tentáculos do filantropo-capitalismo
Dados oficiais disponíveis em diversos sites de órgãos associados à saúde mundial humana atestam que a Fundação Bill e Melinda Gates é a maior financiadora filantrópica de projetos nessa área. Figura como a maior fonte de caridade do Planeta.
As fontes são de sites vinculados a governos diversos; portanto, acessíveis facilmente. O empreendimento tem destinado bilhões de dólares às causas que objetivam descobertas científicas, projetos sociais, ações emergenciais etc. A fundação está atrás somente do governo dos Estados Unidos em valores de oferta.
Se este artigo se encerrasse aqui, a impressão que vocês, leitora e leitor, teriam sobre a FBMG seria a mais límpida possível. Contudo, o caráter informativo que fundamenta esta exposição não tende à crítica ou à hosana; apenas à informação em si.
Alcance dos projetos
A postura da FBMG é aparentemente bom exemplo do conceito sobre marketing ocultar defeitos. A instituição é alvo de muitas críticas por motivos dos mais diversos. O mais potencialmente evidente é pretensão de redesenhar a imagem da MicroSoft e da própria FBMG.
O casal fundador é bilionário, como se sabe. Apenas por isso, atrai interesse de apoiadores de, no mínimo, mesmo nível. O megainvestidor estadunidense Warren Buffett é um deles. Com isso, chegaram também os vícios do empreendedorismo mercenário.
Gates deixou o conselho de administração da empresa, há alguns anos, para se dedicar à filantropia. Consta na mídia americana, porém, que a intenção foi proteger a imagem da Microsoft perante seus acionistas e seu mercado. Afinal, a empresa estava enfrentando ações judiciais por movimentos administrativos ilegais, como criação de monopólio.
Certa investigação da equipe da Nation chega a alegar que há “riscos morais que cercam a empresa” hipoteticamente fraternal de caridade de Gates. Caridade que ultrapassa os US$ 50 bilhões.
Assuntos globais
Outro tentáculo-vício próprio do mercenarismo é envolvimento pessoal e corporativo em assuntos globais. Os megainvestidores em filantropo-capitalismo são, geralmente, agentes silenciosos que interferem em decisões governamentais tanto de países economicamente carentes quanto abastados.
Essa é a conclusão também do site Outras Palavras. Dessa maneira, à guisa de denúncia, muitos detratores do movimento alegam que tais investidores têm terceiras intenções. A principal delas é mostrar ao mundo - em especial as faixas comunistas - que o capitalismo é solução para os problemas mundiais e não a fonte.
Sobre o caso Braskem
Mencionado no início deste artigo, saiba mais sobre o caso Braskem, ocorrido em 2018.
As informações são do Ministério Público. O fato veio a público por causa de tremores de solo que resultaram em rachaduras nas residências e nas vias públicas. O ápice deu-se no antigo bairro Pinheiro e arredores, de Maceió, Alagoas.
De início, imaginou-se hipóteses possíveis: acomodação natural de camadas no subsolo, rede de esgoto antiga em fase de deterioração, lençol aquático desconhecido etc.
O Serviço Geológico do Brasil - SGB/CPRM enviou equipe de especialistas para avaliar a situação. Aos poucos, eventual fenômeno natural foi sendo afastado. Também aos poucos, o motivo para a tragédia foi sendo desvendado: captura e recolha, por parte da multinacional Braskem, do mineral sal-gema, abundante no local.
O resultado das análises foi apresentado em audiência pública promovida pelo Ministério Público. Constatou-se que a extração do produto ao longo de meio século promoveu o deslocamento de quantidade massiva de terra no subsolo.
Como mostrado ao longo deste artigo, não se pretende apontar más intenções nem boas no filantropo-capitalismo. Apenas expor peças de xadrez, cartas de baralho e pontas ocultas para que os leitores construam seu próprio parecer.
Este artigo foi escrito por Serg Smigg e publicado originalmente em Prensa.li.