O final de Round 6 é muito ruim
(que fique claro - SPOILERS de Round 6)
Faz mais de dez anos que eu assisti Oldboy pela primeira vez, e fiquei fascinado pelo gênero cinematográfico que hoje eu chamo de crueldade coreana desproporcional.
É o gênero de série, cinema e histórias onde personagens que vivem na Coréia do Sul enfrentam… Bem, demonstrações extremas de crueldade por parte de outros seres humanos. A criatividade para adaptar (Oldboy é, originalmente, um mangá) ou criar contos nos quais a maldade das pessoas fala muito mais alto parece sem fim, especialmente quando aliada à Hallyu, a temida “onda coreana”.
Ao ponto dela chegar e arrebatar o Oscar 2020, com um dos melhores exemplos do gênero, Parasita. No filme, uma família de pessoas muito pobres armam uma arapuca para enganar uma família de ricos. Note-se que a crueldade aqui não está nas ações individuais das pessoas, ou pelo menos na ação direta das pessoas.
Mas do sistema inteiro. Tem um poder invisível, que orquestra as ondas do mundo, que deixou a família Kim numa situação miserável. É como uma força da natureza. De uma hora para outra, chove, e você perde tudo.
“Que chuvinha gostosa!” -— Você já usou este meme. (Imagem - Divulgação - via IMDB)
O próprio Bong Joon Ho, diretor do filme (e vencedor de um monte de prêmios) comentou, ao se surpreender com o sucesso do projeto no mundo todo:
“Eu tentei expressar um sentimento específico à cultura Coreana, (mas) todas as respostas de públicos diferentes (no mundo) foram as mesmas. Essencialmente, todos nós vivemos no mesmo país, chamado Capitalismo”. - Bong Joon Ho, diretor de Parasita
O sistema, parceiro, o sistema é f…
No megassucesso da Netflix, Round 6, ou como o pessoal internacional chama, O Jogo da Lula, acompanhamos o infeliz Seong Gi-Hun (Lee Jung-jae). Ele está devendo muito mais que as calças para gente de poucos escrúpulos, tem uma mãe doente, está prestes a perder contato com a filha, e não vê saída alguma. Quando é abordado por um sorridente homem bem vestido que tem uma proposta: jogue um jogo, ganhe dinheiro.
O resultado você já deve saber: ele entra num jogo coletivo onde centenas de pessoas competem em brincadeiras infantis. Vencedores passam para a próxima fase e concorrem a um prêmio milionário. Perdedores são sumariamente executados, sem conversa, sem perdão.
Num momento, os participantes têm a oportunidade de sair de lá, voltarem ao dia a dia normal, e avaliarem o quanto querem arriscar suas vidas por dinheiro. Praticamente todos decidem que mais vale arriscar uma morte violenta por dinheiro do que continuar no inferno das dívidas.
A série constrói o conceito de maneira bastante direta, simples e sem tempo para papas na língua. Existe uma competição, com poucas oportunidades para vencer, e perder significa a morte. É uma competição sistemática, controlada por pessoas sem rosto, sobre a qual os participantes não têm poder algum.
Um doce de trabalho. (Imagem - Divulgação - via IMDB)
Há maneiras de trapacear, existem atalhos. Tem como aprender sobre o sistema e manipulá-lo, mas o sistema vence sempre. Tudo o que um indivíduo pode fazer é acatar que o sistema existe, e jogar o jogo.
Seong Gi-Hun consegue fazer uso de um instinto de sobrevivência incrível, sorte, habilidades secretas e a determinação de “não quero morrer”. Eventualmente, ganha o jogo. O único sobrevivente entre 456 participantes.
Só que ele não sai de lá rico, feliz, leve. Ele não é um herói de ação. Ele é um ex-Uber, agora traumatizado pelo que o sistema é capaz de fazer — pelo que o sistema o obrigou a fazer — que ele não quer tocar naquele dinheiro amaldiçoado, ganhado com baldes e baldes de sangue inocente.
Mas um tempo passa e ele se conforma. Até que algo acontece, e sua vida — e a do criador da série, Hwang Dong-Hyuk — são transformadas.
O poder de uma pessoa
Especialmente nas histórias estadunidenses — os projetos de Hollywood, as séries, HQs, games — o que é mais fortalecido, em termos de valores, é o individualismo.
É uma coisa que começa na religião (à espera de Um salvador) e acaba na política (onde tudo reside na escolha de um presidente). Quantos filmes e séries, quantas estruturas narrativas contam a história de um indivíduo singular, alguém que concentra uma habilidade, uma moralidade superior, um ponto de vista transformador. Alguém capaz de salvar o dia, custe o que custar?
“Bom dia madame. Vim resolver o seu problema.” (Imagem - 20th Century Fox - via IMDB)
Quando aprende-se a roteirizar séries, sempre se fala que o protagonista precisa ser responsável por resolver o problema de cada episódio. Por quê?
Porque “precisamos” de alguém (tradicionalmente, um homem branco forte, másculo e bem paramentado) onde podemos depositar toda a confiança. Alguém que pode aguentar toda a responsabilidade. Onde depositaremos nossa fé.
Olha só quanto filme de super herói. Olha o que o cinema de ação dos anos 80 (e 90 (e 2000)). Ou o cinema de drama mesmo. Um alguém sempre vai vencer. Mesmo quando luta contra um sistema, por definição, invencível.
Um mix de fantasia e realidade (Spoilers do filme de 2021, Bela Vingança)
O vencedor do Oscar de Melhor Roteiro Original de 2020 foi Bela Vingança. O filme é um fantástico grito contra a cultura do estupro, contando a história de Cassandra, uma jovem vingativa que quer assombrar abusadores sexuais “corriqueiros”, homens “de bem” que curtem um encontro quente com uma bela mulher bêbada. Sabe, aquela que não pode dizer não.
E o filme mostra que Cassandra decide ir até as últimas consequências para se vingar e “resolver o problema”. Ela está lutando contra um problema sistemático, de uma maneira individual.
O final explosivo do filme, no entanto, deixa um gosto amargo. Não só pelo lado trágico e perturbador, tanto do plano de Cassandra quanto do choque que a conclusão do filme traz. Mas… Porque é o momento onde o filme entra no mundo da fantasia.
Uma mulher com uma missão. (Imagem - Reprodução - via IMDB)
Cassandra arma uma cilada para o farialimer que havia humilhado e estuprado sua amiga, anos antes, e inclui no plano a possibilidade dela mesma ser assassinada pelo sujeito. Exatamente o que acontece.
No final, a armadilha funciona, e a mensagem fantasmagórica de Cassandra manda beijos, não me liga, para o patético macho que vai para a prisão por assassinato.
O final do filme não é feliz, mas a protagonista atingiu seu objetivo. Classicamente, é o final positivo para uma história.
Só que… O vilão da história não era o fratboy babaca. O vilão da história é a cultura de estupro. A missão de Cassandra nunca poderia ser cumprida — especialmente se ela agisse sozinha — porque ela não está enfrentando uma pessoa. Nem mesmo uma comunidade. Uma família, um estado, um planeta. Ela enfrenta algo maior. Um sistema.
Mas o que isso tem a ver com Round 6?
Round 6 é muitas coisas. É colorida. É pesada. É cruel. É surpreendente. É caricata (estamos falando de um dorama, afinal). Mas a série não é sutil.
Todos os participantes do jogo estão presos dentro de uma prisão da qual, mesmo fora da ilha demoníaca, não conseguem fugir.
(Aliás, aplausos para a Netflix e a produção toda — o design da série é impecável.)
Todos em fila. Todos num caminho, sem saber para onde vão. (Imagem - Reprodução - via IMDB)
Não dá para vencer o sistema. Não dá para quebrar as regras. Todos que tentaram morreram. A conformidade é a única maneira de escapar dali. E essa é a mensagem da história toda.
Seong Gi-Hun não tem saída, e logo no final da série, se conforma com isso.
Para não dizer que a série é um poço completo de niilismo, ele obtém uma pequena vitória moral contra o verdadeiro vilão: numa última aposta, onde o que estava em jogo era o espírito humano, Gi-Hun vence colocando suas fichas na bondade humana. Algo que, normalmente, representa uma engrenagem defeituosa na grande máquina moedora de pessoas.
Mas Gi-Hun sai, pega sua grana, pinta seu cabelo de magenta, e parte para curtir a vida… Até que decide que vai lutar contra os cruéis organizadores do jogo.
E aí, mais uma vez, quebramos uma barreira. Porque toda a trajetória da série estava indo na direção contrária. De que lutar (pelo menos, solitariamente) é inútil e que não há esperança de vencer um sistema da maneira “te pego lá fora”.
A decisão de Gi-Hun de, bravamente, se transformar num herói é contraditória e totalmente inesperada. Não há dúvida alguma que ela foi colocada ali, ou pelo criador da série, ou por sugestão de produtores (quem sabe da própria Netflix), para dar um gancho para uma segunda temporada.
E… Convenhamos. A série quebrou todos os recordes possíveis. Teremos uma segunda temporada.
Mas a troco de quê? De um final que não faz sentido com aquele conto sobre como construímos um sistema que existe só para o prazer e entretenimento de alguns poucos animais mascarados, ricos e tarados.
Sistemas e Esperança
Lembra quando o Spike Lee ficou fulo da vida quando um filme impossivelmente medíocre — Green Book — ganhou o maior prêmio da noite?
Não é só porque Green Book é brega, filmado de uma maneira mediana, e com muito pouco a dizer. Mas porque é mais um filme onde um cara (bonitão, pele clarinha, olho claro, bruto) “resolve o problema” de uma forma fantasiosa — e historicamente questionável.
É porque quando vamos criar uma narrativa séria, que tenha algo relevante, impactante e real a dizer, precisamos prestar atenção nos detalhes de quem estamos retratando.
Round 6 é uma ótima paráfrase de como estamos todos dentro de um sistema corrupto, hediondo e quebrado, que não tem o menor apreço pela vida humana. Não é uma história sem esperança, mas é uma história que retrata, com cores e formas variadas, o horror de quem está na base da máquina.
Só que o final faz uma promessa irreal de se cumprir. E nisso, deixa a peteca cair.
E você sabe o que aconteceria, nessa série, se alguém deixasse uma peteca atingir o chão, né?
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Imagem de capa - Oh não o que o capitalismo me fez fazer dessa vez - (Divulgação - Via IMDB)