Fleabag - Quebrando a quarta parede
Imagem - Divulgação
Nas artes dramáticas, a quarta parede é uma convenção segundo a qual uma parede imaginária separa os atores do público. Graças a ela, o público é convidado a penetrar num universo que existe, supostamente, a despeito de sua presença. Os atores, mergulhados na ficção, agem como se a plateia não estivesse ali. Esta, por sua vez, assiste à ação que se desenrola diante de seus olhos sem se envolver ativamente com ela, mas, paradoxalmente, mais envolvida pela ilusão cênica, que ela fortalece.
A quebra da quarta parede acontece quando a plateia é convidada a interagir criticamente com a ação, por meio de um personagem que dirige sua atenção a ela, ou quando os próprios personagens expressam de alguma forma a consciência do jogo cênico. Quebrada a ilusão, o público é instigado a uma atitude menos passiva e mais reflexiva.
No teatro e no cinema, são inúmeros os exemplos de obras que usam a quebra da quarta parede para provocar os mais diversos efeitos. Pelas reflexões que me suscitou sobre liderança, comunicação e atenção genuína numa era de dispersão, trago aqui uma cena do filme “Um Lindo Dia na Vizinhança”, dirigido por Marielle Heller e estrelado por Tom Hanks. São 60 segundos de silêncio absoluto. Sim, 60 inimagináveis segundos, numa cultura de imagens que se sobrepõem cada vez mais freneticamente. O que, a princípio, poderia gerar apenas surpresa, transforma-se num convite à reflexão com a quebra da quarta parede – e a atuação de um ator do quilate de Hanks.
A cena traduz o poder da atenção genuína e é uma das melhores do filme, cujo grande trunfo é justamente trazer à vida, na estrutura narrativa, a principal mensagem do personagem real que retrata. A tal ponto que ele deixa de ser o protagonista da própria história.
Na série de televisão Fleabag (2016 - 2019), disponível no Amazon Prime Video, o público é o melhor amigo da protagonista. Isso acontece porque a série usa um dispositivo para criar e manter uma relação íntima com os espectadores. É através da quebra da quarta parede que a série consegue estreitar a relação do espectador com a personagem.
Fleabag não só quebra a quarta barreira da forma correta, mas vai além ao extrair algo novo do dispositivo. É uma comédia dramática e acompanha uma mulher sarcástica, sem filtro e de raciocínio seco, a Fleabag. Durante toda a série a personagem tem consciência de que o público está assistindo e constantemente quebra a quarta parede, confessando seus pensamentos pessoais apenas para o espectador. Vamos aos principais aspectos da quebra da quarta parede na série:
Relação única
A excelência na quebra da parede está justamente no nível de conexão que ela consegue estabelecer com o público. Ela cria uma relação singular com o espectador, sendo a única da séria a quebrar a barreira, sem que qualquer outra personagem perceba. Isso demonstra uma preferência por quem está assentindo, colocando o público em vantagem, pois são os únicos que realmente conhecem suas verdadeiras opiniões sobre o que acontece com ela.
Informalidade
Fleabag conversa com o espectador como se ele fosse seu melhor amigo, sempre informal.
Ela é sempre direta e sem filtro, sem vergonha alguma em verbalizar seus pensamentos genuínos.
O pronome de tratamento “você” com o público
Ela usa o “você” quando conversa com a audiência. Ao usar o você, a câmera passa a ser substituída por cada espectador, como se ela estivesse realmente falando com quem está assistindo. Impulsionando ainda mais o espectador a acompanhar a vida da personagem.
Realismo
A série consegue manter uma representação realista, mesmo quebrando a quarta parede. Fleabag aborda a câmera sem que o fluxo da narrativa seja interrompido. Seus comentários e expressões são sempre ligados a narrativa da cena que continua a se desenvolver. Não há um congelamento de quadro, intensificando a imersão da audiência e a sensação de realismo. O que também contribui com uma das caraterísticas mais importantes para o sucesso da série: a intimidade.
Intimidade
Como não há uma quebra no fluxo da narrativa, o imediatismo dos comentários de Fleabag, ao abordar a câmera, diminui a distância entre a audiência e a personagem. A forma cômica como a parede é quebrada, permite romper os constrangimentos das cenas e, ao olhar para a câmera durante esses momentos, Fleabag demonstra que precisa do espectador para superar esses momentos, o que leva a criar uma atmosfera ainda mais intimista.
Segredo
E com a mesma simplicidade que ela aborda o espectador, a personagem também consegue se virar e se afastar, voltando para sua interação com as demais personagens em cena. O relacionamento do espectador com a Fleabag é um segredo. Só ela conversa com com ele e só ele sabe os verdadeiros pensamentos dela sobre os demais. Quando essa bolha é ameaçada Fleabag se sente envergonhada, pois ela não quer que a intimidade e a privacidade da sua relação com o espectador sejam afetadas.
Frequência e Tempo
A base para que todos esses aspectos da quebra da parede na série funcionem está na frequência e no tempo de todos suas abordagens. Fleabag conversa com o espectador incessantemente, colocando-o em um estado constante de ansiedade esperando pelo o que ela tem a dizer.
A série também sabe usar muito bem o tempo das abordagens que depende da narrativa e da comunicação da personagem com a audiência, que é muito bem ritmada em todo o texto. Pode acontecer antes de uma cena para entregar algum contexto, ou mesmo durante alguma específica para atualizar o espectador sobre os seus pensamentos. Por fim, pode acontecer depois de uma cena para pontuar o momento.
Dessa forma, o sucesso da série está diretamente ligado à forma eficaz e inovativa do uso da quebra da quarta parede. A personagem Fleabag consegue criar um nível de intimidade com a audiência que faz com que o espectador conecte-se com a personagem, conhecendo-a de forma mais profunda a cada episódio.
Este artigo foi escrito por Giovani Pacheco e publicado originalmente em Prensa.li.